O Fantasma do Passado

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O já muito conhecido som das rodas da carruagem rodando pela estrada trouxeram as lembranças de Naiáde de volta, os dez dias de Cargia até Belfort foram um martírio, não pelas varias paradas que atrasavam o progresso, pelos guardas atrevidos que acompanharam a caravana ou pelos vários “caminhos alternativos” que Otto autorizava o cocheiro a seguir que, de tão irregular, faziam até sua alma sacudir dentro do corpo. Mas não se parecia nada com a viagem de agora, a estrada para o pequeno país ao sul era plana e bem construída, a carruagem dificilmente sacudia, tanto que conseguia cochilar mesmo quando Reed estava guiando os cavalos. Contudo, mesmo que a revelação do seu companheiro de viagem a tivesse pego de surpresa, não estava irritada ou incomodada, Reed era um soldado de confiança do rei e até onde ela bisbilhotou, um homem decente. Riu com o pensamento ao se lembrar do episódio no bosque, era otimismo demais acreditar que ele poderia continuar se contendo agora que não haveria uma testemunha ou impedimento a quilômetros deles. Por via das dúvidas decidiu manter a pequena adaga do lobo sempre ao alcance, mas não confiava em si mesma com a mesma intensidade que desconfiava do guarda real, já havia muitos dias que não podia acreditar totalmente em si própria, a sensação do aperto pelas mãos daquele homem, a pressão e o calor que pôde sentir mesmo através das roupas, o hálito quente contra seu pescoço, todas essas sensações ainda povoavam sua mentes sem a menor intensão de ir embora. Não era raro que alcançassem seus sonhos e que acordasse ofegante e quente, em certo momento passou a desejar que o sonho fosse um pouco além, mesmo que minimamente, para ao menos sanar a curiosidade, afinal enquanto permanecesse nos sonhos não poderia ser considerado um erro e não se culparia por ele.

Os dias passaram vagarosamente, a carruagem os obrigou a fazer uma viajem lenta mas não achou ruim, conversou muito com o soldado e mesmo que as vezes se deparasse com alguma contradição estava contente pela distração antes da missão mais difícil. As paradas pelo caminho fizeram-na conhecer um pouco mais do país e começava a se apaixonar por ele. Algumas noites passaram em hospedarias nas vilas e nenhum dos dois disse ou fez algo alarmante, mas a tensão começava a se solidificar. Grande parte dos arredores de Belfort era banhada por um oceano de águas tão límpidas que pareciam sair de um livro, as rochas na costa onde as ondas colidiam durante a maré alta, as histórias e lendas dos habitantes das vilas, que a trataram como filha mesmo nunca a tendo visto antes, a imagem das costas de Reed na roupa simples com detalhes em couro, ficava cada vez mais difícil encontrar um motivo para voltar para sua casa em Cargia.



— Podemos trocar se quiser descansar um pouco.— propôs ao homem que parecia totalmente focado na estrada, estavam viajando a mais de uma semana, tão acostumados que os leves solavancos nem a incomodavam mais.



— E a senhorita sabe guiar?— perguntou com humor, Naiáde percebeu a inquietação do homem antes de entender que a estava desafiando.



— O que foi?— indagou com preocupação e olhou ao redor procurando algum sinal de perigo, mas além da estrada na encosta de uma montanha não havia nada de errado, nem mesmo um som de que pudesse suspeitar.



— Quero que fique atrás de mim, não se distancie e não se distraia.— instruiu o homem soltando uma das rédeas para alcançar a espada. O olhar de Reed era diferente de todos que Naiáde havia visto antes, mas não tão desconhecido, afinal seu pai costumava ter o mesmo, constantemente esperando o perigo chegar de surpresa.— É melhor que mantenha o arco por perto.— disse antes de perceber que ela já estava alerta, com a aljava presa as costas e o arco ao alcance do braço.

Estava pronta, Reed guiou a carruagem por mais alguns metros em total silêncio, focados nos rochedos a frente até ouvirem. Primeiro o assovio de uma flecha contra o vento, o som tênue mal pareceu ter existido mas a reação de Reed foi rápida, quando se deu conta a ponta da flecha já estava fincada contra o escudo que o homem levantou. Não podiam ficar tão expostos, seriam alvos fáceis.

— Quero que corra e se esconda, eu devo tratar disso.— ordenou ele mas Naiáde não podia obedecer dessa vez, ladrões de carga nunca estavam sozinhos, e era mais arriscado estarem separados.

— Vou te cobrir.— disse sem emoção e se esgueirou para o fundo da carruagem que agora estava parada, desceu e correu para a floresta. Esperando não ter sido vista, observou com atenção enquanto preparava uma das aljavas amarrada na cintura, para puxar cada flecha rápido caso precisasse e posicionou uma no arco.

Nem ousava piscar, o coração batia rápido e fazia seu máximo para acalmar a respiração, nervosismo não a ajudaria em absolutamente nada. O reflexo da luz na espada de Reed anunciou o início da disputa, os cavalos se aproximaram a toda velocidade, a dúvida se eram realmente ladrões se dissipou no instante em que ouviu o grito de um sobre o som dos cascos dos cavalos. “ Vamos matar o homem e levar a carruagem.” Foi quando sua razão também se dissipou, mirou e soltou a flecha em um instante, não pensou ou hesitou, não poderia. Foi mais rápido do que alguma vez cogitou, enquanto Reed desferia golpe após golpe fazendo o som ecoar e os homens caírem, Naiáde protegeu sua retaguarda, atirando flecha após flecha com precisão quase perfeita, afinal não estava a mais de 20 metros do grupo.
Mas estava concentrada demais, desatenta a si mesma, assim que Reed puxou a espada do corpo do último homem em pé, sentiu a pressão de uma mão contra a boca e outra puxando-a pela cintura. Soltou o arco em reflexo pelo susto e se agitou, tentando se desvencilhar do aperto, a mente apitando sinais de perigo. Era fraca demais pra se soltar mesmo esperneando com todas as forças, com a mão livre tentou alcançar, um tanto desesperada, a adaga escondida mas não pôde. A figura desconhecida pegou antes e tirou do seu alcance, frustrando sua esperança de se por conta própria. Só então realmente sentiu medo, indefesa para alguém que podia machucá-la ou muito pior.
Sentiu asco a sensação do corpo pressionado ao seu, a mente confusa e os pensamentos embaralhadas, sabia que não podia se render, precisava escapar daquilo, custasse o que for.

— Me solta, desgraçado.— bradou com fúria e jogou a cabeça para trás na tentativa de atingi-lo. Mas não conseguiu, o homem segurou-a enquanto puxava mais para o fundo da floresta, onde não podia mais ver com clareza os raios do sol por entre as folhas.

— Mas que bichinho corajoso. Não acha justo que eu tenha alguma diversão com você? Seu companheiro matou meus homens. Posso não ter conseguido a carga da sua carruagem mas terei esse corpo jovem.— disse, cada palavra do homem fazia o estômago de Naiáde revirar e o pânico se instalou.— Quieta. Eu não esperava que fosse uma mulher, tem sorte. Eu poderia só ter cortado a garganta mas você tem uma chance, talvez até goste.— completou empurrando-a contra a terra.
A garganta fechou e tentou se desvencilhar outra vez, nunca sem lutar, todo o treinamento era pra evitar aquele acontecimento, não podia ter sido em vão. Pensou em seu pai, nas lições, em sua mãe e em todas as vezes que ela aconchegou Naiáde no seu abraço, em Reed olhando-o a como se fosse a joia mais rara que já existiu e uma lágrima escapou a contra gosto e escorreu pela face.
Se desesperou ao falhar outra vez, estava terminado, não conseguiria evitar que ele a manchasse, Reed não a olharia outra vez se aquilo acontecesse, nenhum homem o faria. A mancha de um estupro perduraria por toda a vida, ainda mais quando a pureza de uma mulher é arrancada.

— Eu vou matar você. Nem que seja a última coisa que eu faça.— ameaçou com ódio em cada palavra.

— Calma passarinho, vai saber o que é um homem de verdade. Se gritar eu corto a sua garganta.— ameaçou o homem com humor, Naiáde choramingou, não estava com medo disso, sentia nojo, as mãos que tentavam tirar suas roupas pareciam queimá-la toda vez que encostava na pele, o cheiro de tabaco e suor. Não era assim com Reed, o toque dele não causava nenhuma daquelas sensações asquerosas.
A floresta pareceu estranhamente silenciosa por um instante, como se soubesse que o mal estava para acontecer, e então ouviu, primeiro o som cortado de folhas sendo pisoteadas e então o assobio de uma flecha e o peso se chocou contra seu corpo fazendo-a perder o ar.
Forçou o corpo a virar e tossiu quando finalmente pôde respirar novamente, engatinhando para longe. Os olhos arregalados e a respiração ofegante, a sensação das mãos ainda presentes. Olhou-o tentando entender o que havia acontecido, ele ainda estava vivo, ainda estava se mexendo. Correu os olhos até às costas do sujeito e viu a causa, a flecha longa havia entrado fundo, pela localização havia perfurado alguns órgãos e ele não sobreviveria. Observou com a mente ainda nebulosa ele tentar engatinhar, rezando por ajuda divina como se merecesse algo do tipo e se levantou com dificuldade. Os joelhos estavam doendo pelo choque contra o chão, as mãos arranhadas e os olhos ainda marejados.

— Piedade.— pediu em desespero, Naiáde quis rir.

— Isso dói?— perguntou fria ao vê-lo se virar para ela.— Eu espero que sim, seria péssimo se tivesse uma morte rápida.— completou se aproximando. Se agachou e pegou sua adaga de volta da cintura do homem, levou a mão a flecha e remexeu fazendo-o soltar um grito rouco.— Isso mesmo, mais alto.— sussurrou com ar divertido.

— Maldita prostituta.— praguejou quase sem forças, Naiáde pensou por um momento, parecia tão vil quanto o bandido caído mas o pensamento se esvaiu tão rápido quando veio. Repetiu o ato com a flecha fincando-a mais fundo, o homem não tinha mais forças nem mesmo para gritar agora, seu rosto contra a terra fazendo parecer exatamente como ela a pouco tempo, ele merecia. Que valor tem um homem capaz de obrigar uma mulher a se submeter de forma tão cruel? Quantas outras ele havia ferido como estava prestes a fazer com ela?

— Eu deveria ficar magoada com isso?— disse com leve humor e sorriu fraca, observando atentamente quando a vida deixou os olhos do agressor e suspirou chorosa.

— Parece que me deve mais uma.— ouviu a voz vir e olhou na direção, o susto foi quase tão intenso quanto o interior quando a figura masculina saiu de trás de uma das árvores, sorrindo petulante, um rosto tão familiar que reconheceria em qualquer lugar, Athos, que deveria estar morto.

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