Capítulo 27

242 27 0
                                    

     Raquel acordou algumas horas depois sentindo fortes dores pelo corpo afora, a anestesia já estava passando.
   Os médicos disseram que foi pura sorte ela ter sobrevivido ao acidente apenas com um braço quebrado, um corte na testa e, se a haste de ferro tivesse entrado mais alguns centimetro abaixo da sua costela, poderia ter sido fatal.
   Raquel estranhou quando entraram no quarto, o médico, a sua mãe, uma assistente social e uma psicóloga.
   _A onde está o meu pai? -pergunta para a sua mãe não vendo ele ali.
   Ela não responde olhando para o outro lado.
   _A onde está o meu pai? Por que ele não está aqui? -insiste não obtendo respostas da primeira pergunta.
   Desde quando acordou ele não foi vê-la hora nenhuma.
   _Oi Raquel, eu me chamo Flávia, sou a assistente social do hospital -apresentou se vendo que a sua mãe não falava nada- esta aqui é a Fernanda, psicóloga e este é o médico que você já conheceu...
   _Eu quero o meu pai! -insiste.
   _Bom... -continua a assistente- você sabe que vocês sofreram um acidente de carro, certo? E este acidente foi... foi muito grave...
   _Eu quero o meu pai! Por que ele não está aqui? O que vocês fizeram com ele?
   Raquel perguntava sem dar ouvidos ao que a assistente dizia sobre eles fazerem de tudo para tentar salva-lo mas ele não resistiu aos ferimentos e veio a falecer.
   _Mentira! Ele não morreu. Você é uma metirosa! -gritou ela procurando por sua mãe para que ela também dissesse que era mentira- Mentira...
   A assistente aproxima se para tentar conforta-la.
   _Olha Raquel, eu sei que não é fácil...
   _Você não sabe de nada!
   Raquel tentou se livrar dela mas como o seu corpo ainda doía ao se mexer, parou de se debater.
   Deitada olhando para o teto, Raquel ouvia elas conversando com a sua mãe.
   _Se precisar de alguma coisa é só me avisar... -dizia uma.
   _Vou acompanha-la de perto enquanto estiverem aqui... -dizia a outra.
   "Pai! Pai! Papai!" chamava ela em silêncio.
   Uma mancha do teto tinha o formato do PONGO com as suas orelhas pontudas que mais pareciam duas antenas.
   "PONGO, PONGO, eu sou o PONGO, você é o PONGO, ele é o PONGO..." a música veio a sua cabeça.
   "Por favor Raquel, não grita...", ouviu a voz do seu pai.
   E então...
   O seu estômago embrulha.
   "A culpa foi minha!... Foi a minha culpa. Minha. Minha culpa. É minha culpa... desculpa papai, eu não faço mais. Por favor..."
   Mesmo não sendo culpa de Raquel e sim do outro motorista que dirigia em alta velocidade, se ela não tivesse cantado alto de mais aquela música, o seu pai não teria se distraído e talvez veria o outro carro avançar o sinal vermelho vindo na sua direção, e talvez desse para ele se desviar não sendo atingido em cheio na lateral do seu lado fazendo com que capotasse varias vezes.
   De nada adiantou o psicologa no hospital, mesmo assumindo ser culpada, a psicologa dizia à Raquel que não era, era aquele sentimento de incapaz que fazia com que pensasse que ela era culpada por não ter feito nada para salva-lo.
   Mas Raquel não contou o porque que achava ser a culpada. Sentia nojo, vergonha de si mesma por gostar daquele boneco idiota do PONGO.
   "Ele nem é real, não passa de um boneco idiota!"
   A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi jogar tudo o que tinha do PONGO fora, não queria mais saber dele por fazer ela se lembrar do seu pai.
   O jeito era aprender a viver sem ele. Como ele não foi busca-la no hospital no dia da sua alta e nem estava lhe esperando em casa quando chegou, ele também não estaria mais lá para leva-la para passear, não contaria mais as mesmas histórias do seu avô que Raquel gostava tanto de ouvir e nem a tiraria as escondidas dos castigos que sua mãe a colocava.
   Para uma criança de 9 anos que amava e idolatrava o pai, que queria ser igual a ele quando crescesse para que não tivesse mais medo de aranhas e nem medo do escuro, perde-lo assim tão drasticamente e repentinamente, era certo que ela não cresceria normal.
   Mas o que é ser normal?
   Para Raquel, ser normal era, se isolar, não deixar ninguém se aproximar para que não descobrissem nada. A sua mãe até tentava se aproximar -nunca foram proximas- mas Raquel se afastava mais ainda.
   Como o seu pai ja não existia mais, Raquel, aos poucos, foi jogando fora tudo que a fazia se lembrar dele. Não cabia mais guardar algo de alguém que já não existia mais.
   O seu braço podia já ter sarado, podia já não sentir mais dores pelo corpo, os pontos da testa e abaixo das costelas já podiam ter cicatrizados e, mesmo as cicatrizes não aparecendo, uma por te sumido com o tempo e a outra escondida debaixo de uma tatuagem, as feridas causadas pelo vazio dentro dela, nunca iram cicatrizar e nem desaprecer.
   Até tentava não pensar nele, fingia que ele nunca existiu fazendo força para esquece-lo, mas, mesmo proibindo a sua mãe de falar nele, ouvindo o seu nome por aí ou qualquer coisa que a faça se lembrar dele, trazia a tona tudo que tentava esquecer.
   Mal lembravasse do seu rosto, só a sensação de cócegas do bigode em suas bochehas.
   Mesmo quando ouvia uma notícia que fulano havia morrido, mesmo mal o conhecendo, Raquel pegava pensando no seu pai, na sua culpa por ele ter morrido e, consequentemente, achava que também era a sua culpa.
   "Isso é da sua cabeça!", dizia ela.
   Mas aquilo era mais forte do que ela.

   _... mas ai ela cresceu e nunca mais foi a mesma -completou a dona Miranda.
   _Mas você não a levou em um psicólogo depois disto? Deve ter sido um truma muito grande para ela.
   _Eu até tentei leva-la nessa fase rebelde dela, mas você sabe como aquela garota é cabeça dura, né? Dizia que psicólogos era coisa de gente doida e ela não era doida.
   _Entendo. -disse Marina.
   Só que Marina não entendia, se ela quisesse mesmo leva-la, a levaria mesmo que fosse amarrada, Raquel era teimosa mais acabava cedendo uma hora ou outra.
   _Sabe... -suspirou a sua mãe sorrindo- eu morria de ciúmes dessa aproximação dos dois, eles lá e eu aqui... poxa, eu carreguei aquela menina por 8 meses e meio... 8 meses e meio porque ele ficou me atazanando tanto para que ela nascesse rápido que ela acabou nascendo... aquela coisinha pequena... até parecia que ele quem era a mãe, melhor do que eu na verdade...
   A dona Miranda olhava para o relógio com um olhar distante. Continuou.
   _Eu nunca soube me aproximar dela. Quando ele morreu, eu vi uma chance, mas toda vez que eu tentava, ela se afastava cada vez mais.
   _Por que você não conta pra ela o que sente? -pergunta Marina se ajeitando na cadeira.
   _Eu acho que tenho medo, sabe? -disse depois de pensar um pouco- de dizer algo errado, que ela me entenda mal... Eu falo as coisas para ela, e ela acha que estou sendo chata, rabugenta, que eu não gosto dela... eu só tento ajudar, dizer o que é certo, o que ela tem que fazer... eu não vou estar aqui pra sempre, ela tem que tomar um rumo na vida dela. Ela acha que a vida é só comer, dormir até tarde, ficar na rua a noite toda, não trabalha... e eu não sei até hoje o por que ela se demitiu daquela lanchonete. Não estuda. Vai fazer o quê dessa vida?
   _Talvez o seu jeito de falar não seja o certo... digo, a Raquel é um campo minado, você tem que chegar nela aos poucos, tem que saber como chegar, sabe?
   _Você parece conhece-la bem...
   _Só pareço! É errando que se aprende, né? Ela é uma caixa cheia de mistérios, mas aos poucos vamos desvendando.
   Depois que Marina deu mais algumas dicas de como lidar com o temperamento difícil da sua filha, ainda mais neste momento de luto pelo seu gato, ela subiu para o quarto para ver se Raquel estava bem.
   Chegando lá, a porta estava fechada mas não trancada. Bateu duas vezes, não havendo resposta, entrou.
   Raquel dormia pesadamente em sua cama.
   Marina verificou se dormia mesmo. Cobrindo a com um lençol, deitou ao seu lado. Notou umas manchas avermelhadas em seus pulsos.
   _Ah Raquel, por que você faz isso? -perguntou Marina tirando as gominhas de elástico dos seus pulsos. 
   Chegando mais para perto dela, Marina a aninha em seus braços acariciando os seus cabelos. Ficou ali um bom tempo mesmo com cãimbras no braço.
   Lá fora já estava escuro a um tempão quando Raquel acordou.
   Com os olhos desconfiados, Raquel encarava Marina que estava deitada ao seu lado.
   Marina sorriu limpando os seus olhos inchados e cheios de remela.
   _O que você faz aqui? Eu não mandei você embora? -pergunta Raquel afastando a sua mão.
   _Eu fui, mas estava com muita saudade de você que acabei voltando.
   Raquel suspira fechando os olhos, depois se ajeita em seus braços.
   _Desculpa.
   _Pelo o quê? -pergunta Marina.
   _Desculpa por eu ter te mandado ir embora... não queria que você me visse naquele estado...
   _Voce não precisa se desculpar, eu entendo que você precisava de um tempo.
   Raquel se ajeita mais uma vez na cama ficando cara a cara com Marina.
   _Promete pra mim que você nunca vai me deixar?
   Marina não respondeu, fitava aqueles grandes olhos verdes. Como poderia prometer algo assim a Raquel?
   _Promete pra mim! -insiste.
   _Tá... eu prometo nunca te deixar.
   Raquel a beijou aninhando se em seu peito.
   Se dependesse de Marina, nunca abandonaria Raquel, mas, não dependia dela. Não deveria ter lhe prometido tal coisa.
   Marina queria lhe contar mas faltou coragem.

NÃO É A MINHA CULPA SER ASSIM!!!  (Volume 1)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora