Capítulo 1

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     Já passava das 2h da manhã. Raquel sabia que já era tarde e que ela não iria gostar nem um pouco disto, mas precisava fazer. Agora. Aquilo estava a matando por dentro, sufocando a preso em sua garganta. Raquel precisava botar para fora aquilo que estava sentindo antes que fosse tarde demais.
   As paredes finas do banheiro mal abafavam a música alta vinda do outro lado. Raquel olhava o seu reflexo no espelho sujo e manchado, mal reconhecia-se. Estava mais magra e pálida do que o habitual, uma expressão vazia e solitária estampava seu rosto. E ainda por cima a luz daquele pequeno banheiro não a ajudava em nada.
   Sem mais unhas para roer ou esmalte preto para descascar, Raquel tamborilhava as pontas dos dedos,  nervosa, na pia encardida.  Com o celular na outra mão, criava coragem para discar o número que já sabia de cor.
   Ligará do celular de um amigo pois o seu estava descarregado, e por ser um número desconhecido e, ligando àquela hora, Raquel tinha medo que ela não a atendesse. Por dentro torcia para que não atendessem.
   Discou o número e colocou para chamar. Ouvir o primeiro toque. O segundo. O terceiro... No quinto toque ela já estava desistindo quando alguém atendeu.
   _Alô...? -disse uma voz meio rouca do outro lado da linha.
   Raquel sentiu o frio na barriga se espalhar pelo corpo inteiro. Há muito tempo não ouvia aquela voz rouca e sonolenta. Raquel amava aquela voz em seu ouvido quando a acordava nas manhãs desejando-lhe um 'Bom Dia!', seja por telefone ou pessoalmente.
   Sorriu fechando os olhos ao se lembrar.
   _Alô. -repetiu a voz do outro lado.
   Raquel respirou fundo.
   _Alô! -insistiu a voz num tom de irritação- Tem alguém aí!?
   _Hã... oi... -disse Raquel por fim- eh... sou eu, Raquel...
   _Raquel!?
  Raquel podia sentir o desprezo em sua voz.
   _Aconteceu alguma coisa? -pergunta a voz do outro lado da linha.
   _Marina... -Raquel sentia o nó se formando na garganta. Havia perdido toda a coragem que achou que tinha.
   _Aonde você está? -pergunta Marina, a voz do outro lado da linha, ao ouvir sons abafados ao fundo.
   _Por favor, Marina... -Raquel respira fundo lutando contras as lágrimas que insistiam em cair- eu... eu...
   _Aconteceu alguma coisa, Raquel? Você está bem?
   _Não... eu não estou... por favor Marina... eu não estou bem... -responde Raquel lutando em vão contra as lágrimas.
   _Fica calma e me conta o que aconteceu?
   _Por favor Marina... eu... eu preciso de você... - as palavras saiam emboladas junto às lágrimas-  ...eu não fico bem longe de você...
   Marina suspira sem paciência.
   _Por favor, Raquel, nós já conversamos sobre isto!
   Essa não seria a primeira vez que Raquel ligara para Marina no meio da noite em meio aos seus chiliques regado a drogas e bebidas. De uns tempos pra cá, viviam assim, brigando por tudo. Ora por Raquel ver coisas a onde não tinha -mas ela achava que tinha-, ora por Marina querer corrigi-la, tentando coloca-la no caminho certo.
   Raquel e Marina eram a prova viva de que os opostos se atraíam. Marina era a água e Raquel o vinho. Mas uma completava a outra.
   Quando se conheceram, o que Marina mais gostava em Raquel era o seu jeito maluco de ver as coisas, despreocupada, festeira, meio paranoica com umas coisas nada a ver que fazia com que Marina desse altas gargalhadas com a cabeça fértil de Raquel. Por outro lado, Raquel gostava do jeito todo certinho, minimalista e meio careta de Marina.
   Nas palavras de Raquel, Marina não sabia gozar dos prazeres que a vida lhe oferecia.
   Elas até que se amavam, mas esse amor todo não foi o suficiente para acalmar as paranoias de Raquel. Ela via coisas e imaginava coisas, além dos ciúmes que sentia dos amigos de Marina. Raquel achava que eles estavam fazendo a de idiota, rindo nas suas costas.
   Raquel se irritava constantemente e para fazer isso parar, usava mais drogas, bebia mais e se machucava. Marina por sua vez tentava acalma-la, dizia-lhe que aquilo tudo era fruto da imaginação de sua linda cabecinha fértil que a fazia ver coisas aonde não tinha e que as drogas e as bebidas só pioravam aquilo tudo. Raquel odiava o jeito como Marina a tratava, como uma criança mimada, uma louca, uma idiota, ela mandava Marina ir se fuder daí começavam a discutir.
   Quando a poeira abaixava e ficava mais calma, Raquel pedia desculpas e dizia que não iria fazer mais aquilo, Marina a perdoava e se amavam outra vez. Dias depois começava tudo de novo, paranoias, ciúmes, brigas, arrependimentos, desculpas. Chegou uma hora que Marina não aguentava mais e resolveu por um fim naquilo tudo, por mais que amasse Raquel, aquilo não estava fazendo bem para nenhuma das duas.
   _Eu sinto a sua falta... -sussurra Raquel.
   _Você bebeu Raquel? -pergunta Marina.
   Raquel a ignora encostando se na parede do banheiro, encarando o teto.
   _V-você me enlouquece... -Serrou os dentes acusando a- Você some,  desaparece e por dias fico sem notícias suas! Você acha que é fácil ficar aqui sem saber se você está viva? Se está bem? Mil coisas se passa na minha cabeça, coisas horríveis! Aí do nada você aparece como se nada tivesse acontecido. Me trata como uma louca, uma insensível que não estou nem aí para você e que não sei o duro que você dá no seu trabalho...
   _Raquel, eu não... -Marina tenta interrompê-la, mas Raquel estava decidida a continuar.
   _Diz gostar de mim mas me deixa plantada te esperando feito uma idiota e ainda por cima não se desculpa! -Raquel começou a andar de um lado para o outro- Eu... eu tenho que brigar com você pra conseguir um pouco da sua atenção! E eu odeio o fato de você passar mais tempo com seus amigos do que comigo que sou a sua namorada!
   Raquel faz uma pausa. Respirou fundo tentando se acalmar e controlar sua voz esganiçada. Não era bem isso que queria dizer, não no começo, mas estava cansada daquilo tudo e precisava dizer desesperadamente que também sofria e que era Marina a culpada de tudo e não ela.
_Me desculpe por ser assim, mas... - continuou Raquel agora se sentindo culpada por ter acusado Marina- ...mas você me faz pensar que estará em cada esquina me esperando, na porta de minha casa me esperando abri-la pra você. Fico frustrada quando percebo que não estará aqui me esperando na porta, fico frustrada porque não está do meu lado... daí eu imagino coisas e fico com raiva das coisas que eu imaginei. Eu sei, é loucura minha, mas eu tento não pensar, eu juro, mas não consigo! Não consigo não pensar em você me fazendo de trouxa, me traindo e rindo com outra da minha cara... -sua voz se tornara fraca, lutava contra as lagrimas que insistiam em molhar as suas bochechas pálida outra vez- Por favor Marina, pensar assim me faz mal. Ficar longe de você me faz mal! E-eu finjo estar bem, mas... mas na verdade eu estou mal, muito mal. Destruída... Tudo isto me corroe por dentro...
   Raquel se apoia na pia. As mãos no rosto permitindo que as lágrimas rolassem naquele momento.
   Marina inspira pesadamente.
   _Eu... - disse por fim sentando se na cama- eu nuca pensei que você...
   Raquel a interrompe.
   _É esse o seu problema! -disse enxugando o rosto- Você nunca pensa em mim! Se parasse para pensar um pouquinho... um pouquinho se quer, você me entenderia!
   _Não é verdade Raquel, eu penso em você sim, eu me preocupo...
   Raquel riu interrompendo a mais uma vez.
   _A onde você está? -pergunta Marina ficando de pé- Vamos conversar direito, não pelo telefone. Me diga a onde você está que estou indo te buscar.
   Raquel não responde.
   Silêncio.
   _Raquel! -chamou Marina verificando se não havia caído a ligação- Raquel!
   _Você sempre me dando ordens...-disse Raquel por fim revirando os olhos.
   _A onde você está, Raquel? -pergunta Marina trocando de roupa.
   Raquel a ignora.
   _Você, você, você, sempre você! Já parou para pensar que é tudo você? Que tudo gira em torno de você? A Marina perfeita, a toda certinha, controladora, a... a... -fez uma pausa- Ah, quer saber? Volte a dormir, foi mal por ter atrapalhado o teu soninho de beleza, ok? Beijos!
   _Raqu...
   Raquel desligou o celular na cara dela. Com um sorriso diabólico no rosto, Raquel ainda podia ouvir Marina a chamando desesperada, no telefone, achando que iria fazer alguma coisa de errado. Sentia-se vitoriosa, havia conseguido chamar a atenção dela. Mas, infelizmente, esse sentimento durou pouco.
   Ao ver seu reflexo no espelho, Raquel se sentiu enojada. O seu rosto borrado pelo delineador, os olhos vermelhos e inçados, ela se tornara uma garota desprezível naquele momento de fraqueza. O cheiro do banheiro à ajudava a se sentir mais fracassada ainda, precisava sair dali.
   Guardou o celular no bolso, deu uma ajeitada no cabelo e lavou o rosto.
   Com a mão na maçaneta da porta, Raquel hesitou, respirou fundo e a abriu. Lá fora parecia um outro mundo. A escuridão tomou conta dos seus olhos, o calor abafado e fedorento, do seu nariz. Luzes coloridas iluminavam a todo instantes rostos desconhecidos. O cheiro de loção barata misturada a cerveja velha causava náuseas a qualquer um que entrasse ali pela primeira vez. De fato que não dava para se acostumar com o cheiro, mas depois de umas 4 doses de vodka com limão, qualquer um perdia completamente os sentidos.
   Esbarrando e empurrando as pessoas a sua volta, Raquel conseguiu chegar no balcão de bebidas. Ela queria alguma coisa bem forte para beber, pediu uma mistura de vodka, wisque, martine e coca, tudo em dobro com uma rodela de limão, para esquecer dos seus problemas chamado Marina.
   Enquanto esperava pela sua bebida, notou um cara a três bancos de distância à sua esquerda. Ele não tirava os olhos dela.
   Ela, irritada com o cara que não parava de encara-la, o encarou de volta com a cara fechada. Ele sorriu levantando seu copo num convite para beberem juntos. Ela desviou os olhos com desdem mas voltou a olha-lo novamente, tentando parecer sexy, Raquel passou a mão no cabelo jogando o de lado, deslizando a mão pelo pescoço, depois passando o polegar nos lábios.
   O cara a olhava com desejo lambendo os lábios. Raquel por sua vez chupou o seu dedo indicador e o enfiou no nariz, cutucando-o, depois o chupou feito uma criança piscando para o cara. Com cara de nojo, o cara pegou seu copo e foi para bem longe dela.
   Raquel sorriu.
   _Babaca! -disse limpando o dedo no guardanapo- Ei, até que enfim, né!? Que demora, cara! -disse virando se para o barman que trazia o seu pedido.
   De costas para o bar, Raquel varreu o lugar em busca de algum rosto conhecido. Não demorou muito até avistar uma baixinha de cabelo cor-de-rosa chamada Lia, que a quilômetros de distância era inconfundível com aquele cabelo rosa. Foi na direção dela.
   _CHEGUEI!! - gritou Raquel parando na frente de um grupinho de homens liderado pela smurf rosa.
   _Ei, você demorou, -disse Lia puxando-a para um abraço - vem cá!
   Raquel agradeceu entregando o celular ao amigo que estava do lado de Lia.
   _Quase que você perde o melhor da festa! - disse Lia ao se afastar, tira algo do bolso. Vira se para o grupo balançando um saquinho no ar- Essa aqui é da boa!
   _O que é isso? -perguntou alguém do grupo.
   _Confete que não é, né seu tonto! -distribuiu um comprimido para todos do grupo- De primeira linha. Essa belezinha aqui faz você ver o seu próprio nascimento!
   Todos se agitaram colocando o comprimido na boca, menos Raquel que o encarava.
   _Tudo bem? -perguntou Lia a Raquel.
   Raquel demorou um pouco para responder. Suspirou sorrindo.
   _Sim... tudo bem!
   Seu sorriso era forçado. Raquel não sorria para os outros para provar que estava bem, e sim, sorria para si mesma, para se convencer que estava tudo bem. E Lia, sendo a sua melhor amiga, a conhecia muito bem como a palma de sua mão e sabia da novela que era entre ela e Marina.
   _Hum... pronta para decolar? -pergunta Lia solidária.
   Raquel encarava o comprimido, não sabia se devia tomar ou não. Todos os seus pensamentos se embaralhavam juntos as música impedindo-a de criar uma lógica que a explicasse o por quê ela deveria tomar ou não aquele comprimido.
   _Que se dane essa merda toda! -exclamou Raquel jogando o comprimido na boca.
   _AÊ GAROTA!! -comemorou Lia enquanto Raquel dava dois longos goles em seu copo.
   Todos comemoram.
   Raquel com uma careta sentia o seu estômago queimar enquanto o líquido ardente forrava lhe o estômago. Talvez essa não tivesse sido uma boa ideia, pois ela não havia comido nada desde ontem no almoço -na verdade ela apenas beliscou algumas batatas fritas.- e o álcool subiria rápido demais.
   Raquel esperou para ver qual faria efeito mais rápido.
   Terminou de beber em longos goles.
Enquanto não fazia efeito ou não os percebia, Raquel se balançava conforme os outros a sua volta, começava a gostar da música, da batida, as luzes dançavam conforme a música.
   Raquel tentava não pensar em Marina, mas seus pensamentos sempre acabavam nela. O jeito dela sorrir... como a olhava, Raquel sentia falta do seu toque... do seu cheiro...
   Suas mãos estavam formigando, Raquel começou a rir delas, não entendia o por quê delas estarem assim.
   _Olha quem já está ficando doidinha... -disse Lia puxando Raquel para perto dela.
   Raquel tentou se afastar.
   _Eu. Estou. Bem! -disse pausadamente sorrindo, procurava as palavras certas.
   Suas pálpebras estavam pesadas, sua cabeça começava a rodar. Raquel sentia se leve, avoada com a cabeça nas nuvens. Ela dançava conforme a música mandava.
   As imagens de Marina estavam embaçadas em sua mente. Mal via o seu sorriso, seus olhos eram apenas borrões coloridos. O seu cheiro se misturava a loção barata com cerveja velha. O seus toque se tornaram empurrões, gente suada esbarrando e mãos bobas. Aos poucos Marina foi se tornando apenas uma lembrança esquecida no fundo de sua mente.
   Raquel sabia que esse não era o jeito certo e nem o mais saudável de se esquecer alguém, mas não conhecia outros meios.
   E embora fosse apenas por um momento e o arrependimento batendo no dia seguinte, Raquel estava feliz por ter conseguido esquecer Marina um pouco. Raquel queria viver um pouco, respirar ar fresco e não ares que traziam lembranças ou que a fazia se lembrar de Marina. Ela não queria a saudade se esfregando na sua cara a cada minuto. Ela queria ser apenas, por um momento, a Raquel  que não estava nem aí se o mundo acabasse amanhã, ela só queria curtir.
   A música já piscava ao som das luzes.
   O cheiro que exalava dos corpos em movimentos à segurava como se fossem mãos. Impregnavam nas suas narinas sufocando-a.
   _Raquel!.. Raquel!... Raquel!...
Diziam o seu nome. Gritavam o seu nome. sussurravam chamando por ela.
   Raquel abriu a boca para dizer alguma coisa mas sua voz não saía, tentava se livrar das mãos que a segurava puxando a. Ela não queria sair dali, não queria ir com aqueles rostos coloridos que constantemente mudavam de cores, vermelho, azul, verde, amarelo, rosa... Não confiava neles.
   Ela estava enjoada.
   As vozes se distanciavam aos pouco até se tornarem um zumbido agudo que fazia com que a sua cabeça começasse a doer.

NÃO É A MINHA CULPA SER ASSIM!!!  (Volume 1)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora