Capítulo 15

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Raquel dormiu feito pedra, só acordou quando o sol já estava pra lá do meio do dia. Estava do mesmo jeito de quando se deitou enrolada na coberta.
Ainda meio sonolenta, Raquel não sabia se estava sonhando ou se era realidade, ouvia vozes um pouco distantes de crianças brincando, uma delas ria baixinho perto dela.
_Já mandei você sair daí, vai acorda-la.
Ouviu uma voz quase sussurrando.
Aos poucos foi abrindo os olhos bem devagar, sabia que a claridade ia arder seus olhos.
Já abertos, a imagem de uma garotinha apareceu a sua frente. Grandes olhos castanhos a fitava com curiosidade. Trazia em seu rosto, um sorrisinho tímido mas sapeca ao mesmo tempo, pequenos cachos dourados caiam sobre a sua testa.
Demorou um pouco até Raquel perceber a onde estava, levantou a cabeça olhando em volta. A sala não tinha muita iluminação devido a grande cortina de cor marrom na janela. A TV estava ligada, passava um programa infantil, devia ser dali que viam as vozes de crianças.
A garotinha encheu os pulmões de ar e gritou.
_Mamãe, ela acordou!
Seu grito fino ecoou dentro da cabeça de Raquel fazendo a encolher de dor.
Sofia veio com uma cara de brava.
_Já disse pra você não ficar gritando -a tirou de perto de Raquel- agora vai guardar os seus brinquedos!
A menina ria correndo da sua mãe que queria dar uma panada com o pano de prato em sua bunda.
Sofia virou se para Raquel se desculpando por sua filha tê-la acordado.
Raquel a desculpou tentando se sentar, a cabeça e todo o corpo doía. Aquele não era um bom sofá para se dormir.
_E lamento por ter dormido neste sofá -completa Sofia.
Raquel sorri.
_Não tem problema, eu já dormir em lugares piores!
Sofia lhe deu um sorriso amigável e saiu para preparar alguma coisa para ela comer.
A menina apareceu novamente parando na frente de Raquel, ainda a olhava com curiosidade.
_Você gosta da Bruna? -pergunta depois um tempo.
_O quê? -pergunta Raquel surpresa com a sua pergunta- por que está perguntando isto?
"O que ela sabe sobre a Bruna? Será que a minha vida está tão estampada assim na minha cara que até uma criança pode ver?"
_A boneca, -a menina aponta para a boneca de pano no meio da coberta- ela xama Bruna.
_Ahh tá -Raquel respirou aliviada.
_Como você xama? -perguntou a garotinha sem dar chance de Raquel responder a primeira pergunta.
_Eu me chamo Raquel -respondeu sem muito entusiasmo.
_Raquel... -pensou um pouco- Raquel cara de pastel!
A menina riu timidamente encolhendo a cabeça no pescoço, mas ria com vontade como se aquilo fosse engraçado.
Raquel forçou um meio sorriso.
_E como você se chama? -perguntou.
_Eu me xamo Ana.
_Ana cara de banana! -retrucou.
A garotinha, Ana, parou, tombou a cabeça pro lado, piscou duas vezes abanando seus grandes cílios pretos, encheu seus pequenos pulmões de ar e começou a rir. Ria alto numa risada gostosa.
_Ana... cara de... banana... -ria jogando a cabeça para trás.
Agora foi a vez de Raquel rir, ria dela, de sua risada, ria com ela.
_Vamos Ana, pare de atormenta-la e vá trocar de roupa! -disse Sofia aparecendo na sala.
Ana pulou no colo de Raquel abraçando a.
_Eu não vou, quero ficar com ela!
Sofia a tirou do colo de Raquel.
_Ahh mas que feio, lembra que você já tinha combinado de passear com a dona Jô? Ela vai ficar chateada se você não for! -a coloca no chão- vai logo e ela precisa comer!
_Mas ela não está com fome, não é Raquel?
As duas a encarava esperando a sua resposta.
Raquel não sentia fome e se viu em uma encruzilhada, não queria ficar contra Sofia e muito menos decepcionar aqueles dois grandes olhinhos castanhos que a fitavam. Raquel deu de ombros sem dizer nada.
_O seu prato está lá na mesma... -disse Sofia para Raquel enquanto puxava a Ana pelo pequeno corredor.
Quando Sofia voltou, Raquel ainda estava sentada no sofá.
_Não seja tímida, vem cá -chamou a para a cozinha.
A cozinha era junto a sala, apenas uma bancada as separava.
_Eu não estou com fome -disse Raquel ainda sentada.
_Não está com fome mas vai comer!
Raquel riu.
Pra tudo Sofia tinha a resposta na ponta da língua.
Meio desajeitada Raquel se pois de pé mas logo se sentou. Levantou se rápido demais, a cabeça rodou cambaleando para o lado.
Sofia correu para acudi-la.
_Ei, vai com calma, você levanta rápido de mais.
_Pois é... -concordou Raquel com a mão na cabeça.
_Tá vendo? É por isso que você precisa comer!
_Ok!
Raquel se levanta com a ajuda dela, pede licença para usar o banheiro.
A sua imagem não estava a das melhores quando se olhou no espelho do pequeno banheiro. O rosto amassado, remelas pretas nos cantos dos olhos e o cabelo bagunçado. Bom, já esteve pior.
"Não acredito que ela me viu assim!"
Lavou o rosto tirando as remelas e deu um jeito no cabelo. Reparou nas roupas que Sofia lhe dera para vestir, uma calça moletom cinza meio pega-frango e uma camiseta branca que estava do lado avesso, a desvirou.
Já de volta na sala, a sua cama improvisada já não estava mais ali, Sofia já havia tirado a coberta, o lençol e o travesseiro de cima do sofá.
_Ah me desculpe, eu... eu ia arrumar o sofá... -disse Raquel sem jeito.
Na verdade nem havia passado pela sua cabeça arrumar o sofá, queria ficar o dia inteiro deitada mas estava na casa de uma desconhecida e não sabia se Sofia a queria mais ali.
"Agora que já amanheceu, pode ir embora!" reproduziu em sua cabeça o que Sofia queria dizer arrumando a sua 'cama'.
_Você tem remédio para dor de cabeça? -perguntou Raquel entrando na cozinha.
_Acho que sim, vou pegar. Agora coma alguma coisa -disse Sofia.
Raquel notou os pequenos desenhos grudados com ímãs de joaninhas na porta da geladeira, havia também uma foto onde Ana está abraçando Sofia, pareciam felizes.
_Raquel, tô bunita? -pergunta Ana aparecendo atrás dela.
Raquel vira se sem muito entusiasmo, Ana vestia um vestido cor-de-rosa claro com pequenas florzinhas coloridas, rodopiou se para que Raquel a visse melhor.
_Sim...
Raquel não era muito fã de crianças, ainda mais crianças que pegava no seu pé.
_Está uma princesa! -completou forçando um sorriso.
Ana puxou uma cadeira para mais perto de Raquel.
_Eu não gosto de princesas!
_Não?
_Não -sentou na cadeira- eu gosto é de fadas! -pegou um pedaço da carne no prato de Raquel, fez um sinal de silêncio e a comeu.
Raquel ficou a observando intrigada. Estava curiosa com aquela garotinha tão pequena mas tão cheia de si e segura no que quer.
_Quantos anos você tem? -pergunta Raquel.
Ana pensa um pouco.
_Mamãe, quantos anos eu tenho? -pergunta quando Sofia entra na cozinha trazendo o remédio.
_Cinco anos, querida. Aqui está -disse virando para Raquel.
_Eu tenho cinco anos -repetiu para Raquel mostrando nos seus pequenos dedinhos a sua idade.
_Não filha -Sofia a corrige ao ver que mostrava dedos a mais.
Fechou uma mão de Ana e foi apontando os dedos um a um contando.
_Um, dois, três, quatro e cinco dedinhos... -a abraçou beijando as suas bochechas coradas- cinco aninhos de pura bagunça!
Raquel assistia aquela cena calada, sentia um aperto no peito. Não se lembrava de nenhuma vez se quer que a sua mãe tivesse demonstrado esse carinho com ela como Sofia demonstrava com Ana. Nunca teve uma boa relação com a sua mãe, era mais ela lá e Raquel aqui, nunca proxima uma da outra. Lembrou do seu pai, com ele sim, sempre fora agarrada com ele... balançou a cabeça espantando seus pensamentos.
Não queria pensar em seu pai.
Raquel tomou o remédio junto com o suco que colocou em seu copo.
A campainha toca.
Sofia abre a porta depois de olhar quem é.
_Você já esta pronta, criança? -pergunta uma senhora de meia idade parada na porta junto com uma outra menina.
Dona Jô era a sua vizinha, avó de Rebecca, a outra menina, tomava conta de Ana enquanto Sofia ia trabalhar.
_Ana, vai pegar a sua mochila... rapidinho filha, elas estão esperando! -disse Sofia virando se para Ana.
Ana com uma cara triste se arrastava com a cabeça baixa para o quarto para pegar a sua mochila.
Aproveitando que a atenção não estava nela, Raquel foi para a sala, cumprimentou as outras duas e sentou se no sofá.
Alguns minutos depois, Ana aparece na sala ainda cabisbaixa, se despede da sua mãe num abraço seco depois vira se para abraçar Raquel.
_Cê vai tá aqui quando eu volta? -pergunta.
Raquel olha rapidamente para Sofia e novamente para Ana.
_Eu não sei se vou estar aqui quando você voltar, preciso ir para casa... -não tinha tanta certeza assim se queria voltar para casa- mas eu venho te visitar mais vezes. Pode ser bananinha? -sorriu.
_Pode! -diz Ana sorrindo abraçando a forte.
Todas se despedem. Sofia mandou Ana se comportar e fechou a porta trancando a depois que elas já tinham ido embora. Vira se para Raquel.
_Caramba! O que você tem? Olha, eu nunca vi a minha filha se apegar tanto em alguém assim logo de cara como se apegou a você e olha que ela tem um gênio bem forte quanto a isto. Qual é o seu segredo? -perguntou sorrindo.
Raquel dá de ombros.
_Acho que sou feita de açúcar, só pode! Nunca vi, quanto mais eu corro delas mas elas grudam!
Sofia sorri.
_Você parece levar jeito com crianças...
_Eu só pareço!
Raquel se dar conta do que estava falando.
_Quer dizer, algumas, não são todas... não é que eu não goste delas... sei lá... só não gosto da...
Sofia a interrompe sorrindo.
_Tudo bem, eu entendi. Não precisa se explicar...
_Tá.
Raquel não queria que Sofia achasse que não gostara de sua filha e não gostou, um pouco, não sabia ao certo. Ana a intrigava, isto era certo.
_Mas a sua filha é incrível! -completou.
_Eu sei -disse Sofia entrando na cozinha- foi a única coisa boa que o pai dela me deixou -deu um meio sorriso- puxou o gênio forte do pai.
_Hum...
Mudando de assunto rapidamente, Sofia pergunta a Raquel se ela não ia comer, Raquel agradece pedindo desculpas mas não estava com fome.
_Vou guardar aqui -guardou o prato na geladeira tampando com outro prato- se você sentir fome mais tarde.
Raquel não sabia se Sofia queria que ela ficasse ou fosse embora.
"Se você sentir fome mais tarde... mais tarde." Isto significa que Sofia nem pensa na ideia de Raquel ir embora ou só falou por falar querendo ser uma boa hospitaleira?
Também se perguntava o que Sofia tinha na cabeça quando pegou uma bêbada num estado deprimente no meu da sarjeta e a levou para casa, para o íntimo do seu lar. Se bem sabe, Raquel poderia ser perigosa, colocaria a sua vida e a de sua filha em risco com uma desconhecida dentro de casa. Ou pior ainda...
Sofia usaria o seu belo rosto e uma linda menininha como faixada para o seu trabalho obscuro. Pegaria mulheres jovens solitárias e viciadas que ninguém desse falta do seu sumiço, ganharia a sua confiança e depois a doparia levando a para outro lugar para servir como escrava sexual, ou a mataria só por matar para saciar temporariamente o seu ódio por mulheres, ou mais pior ainda, a torturaria até a morte saciando o seu prazer de ver o sofrimento dos outros.
Vai saber o quê que tem por trás de um belo rosto de uma bela mulher, né?
_Você pode me emprestar o celular para eu ligar lá em casa? Devem estar preocupados -pede assim que esses pensamentos invadem a sua cabeça.
_Ah sim... Aqui está!
Raquel digita rapidamente o número de sua mãe e coloca para chamar. Torcia para que caísse na caixa postal. Mas não caiu.
_Alô!
_Hã... mãe, oi, sou eu... Só estou ligando para dizer que estou bem e daqui a pouco eu chego em casa...
Dizia em alto e bom som para que Sofia escutasse e desistisse de seja lá qual for o seu plano com ela. Dizia em alto e bom som para abafar o chilique da sua mãe do outro lado da linha.
_E aí? -pergunta depois que Raquel desliga.
_Sabe como é né! -entrega lhe o celular- mãe é mãe, vive preocupada comigo, esta sempre querendo saber a onde eu estou, que horas que eu volto...
Sofia não esboçou as reações de que Raquel achou que esboçaria.
"Se bem que psicopatas não demonstram emoções!"
Raquel ainda estava perdida em seus pensamentos. Não sabia se ia ou se ficava, não sabia se Sofia queria que ela fosse embora.
_Então, você quer que eu vá embora? -pergunta depois de um tempo.
_Por que pergunta isto? -Sofia se aproxima de Raquel que estava encostada na bancada entre a sala e a cozinha.
_Não sei, sinto que estou incomodando.
_Não seja boba, você não incomoda em nada, afinal, foi eu que trouxe você aqui...
_Tá, mas você não me respondeu...
_Você quer ir?
_Você quer que eu vá?
_Eu quero que você fique bem!
_Isto é um sim ou um não?
_Você está bem para ir embora?
_Então você quer que vá embora?
Sofia sorri abanando as mãos no ar.
_Eu quero que você fique até se sentir bem para ir embora.
Raquel pensou um pouco.
_E melhor eu ir...
_Você se sente bem para ir?
_Não sei...
A sua cabeça já não estava mais doendo mas sentia um desconforto no estômago quando pensava em voltar para casa. A sua casa a fazia pensar na sua mãe, que a fazia pensar em Marina, que a fazia pensar na discussão entre elas e que a fazia se lembrar que era um objeto nas mãos de Marina.
_Mas se eu não for -continuou- eu nunca vou saber...
_Certo... mas se você precisar de alguma coisa, um lugar pra ficar, qualquer coisa, eu estarei aqui!
_Ah sim, eu vou me lembrar. Então... -Raquel coçou a cabeça olhando em volta- sabe da minha roupa?
Sofia sorri se afastando.
_Eu às lavei... -desapareceu por uns segundos depois voltou com as roupas dobradas.- aqui!
Raquel as pega agradecendo meio sem jeito. Vai se trocar no banheiro.
_Então... -começou Raquel já na porta da sala pronta para ir embora- acho que não tenho palavras para te agradecer por ter feito isso tudo por mim... e mil desculpas por ter sido grossa com você no bar e mais mil e uma desculpas ainda se eu tiver feito alguma coisa que eu não me lembre...
_Que isso, não se desculpe, eu só tento ajudar quem precisa... Tem como voltar para a sua casa, quer que eu chame um táxi, a passagem pro ônibus...?
_Não, não precisa, obrigada!
Precisava sim, os trocados que tinha no bolso não dava pra nada mas não ia pedir para Sofia, ela já tinha feito demais.
O jeito era caminhar, tinha um bom pedaço de chão pela frente.
Sofia a levou até a porta da rua, despediram se.
Os seus olhos aos poucos foram se ajustando com a claridade.

NÃO É A MINHA CULPA SER ASSIM!!!  (Volume 1)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora