Capítulo 56 - O órfão

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NO FINAL DOS ANOS 1970 e começo dos anos 1980, a Itália passava por um período bastante turbulento, marcado por uma onda de terrorismo sem precedentes. Grupos extremistas, mais notoriamente as Brigadas Vermelhas, estavam ativos e envolvidos em uma série de ações violentas, buscando promover mudanças políticas radicais.

As Brigadas Vermelhas eram grupos armados de extrema-esquerda que acreditavam em uma revolução socialista. Se opunham ao que percebiam como imperialismo, capitalismo e o sistema democrático representativo, por isso, eram responsáveis por uma série de sequestros, assassinatos e ataques a bomba em território italiano. Entre os seus alvos prioritários estavam figuras políticas, empresários e, em alguns casos, membros das forças de segurança.

Naquele período, as tensões políticas e sociais na Itália também eram pauta importante no contexto do país. Questões como desigualdade, instabilidade econômica e insatisfação popular contribuíram para o ambiente propício ao surgimento de grupos radicais como as Brigadas Vermelhas, o que deixou uma marca profunda na sociedade italiana, influenciando diretamente as políticas de segurança do país.

Em 1983, eu estava de passagem por Roma quando decidi fazer uma visita a um colégio católico dirigido por freiras a quase cem quilômetros de Veneza. O Colégio Tomás de Aquino era uma das maiores sumidades no quesito ensino público e abrigava em suas salas de aulas boa parte das crianças do orfanato Santa Luzia, vizinho à instituição de ensino que a Rux-Oil financiava através de projetos sociais.

Aquele era um dia de sol do verão europeu. Um grupo de crianças se deslocava do orfanato até os portões do Tomás de Aquino. Lá chegando, elas eram recepcionadas na entrada pelas irmãs em seus hábitos longos e escuros. Uma freira corpulenta organizava os meninos de um lado e as meninas de outro, os comandando com um apito, feito a uma adestradora de feras.

De onde eu estava, sentada em um banco de madeira posicionado na praça em frente, eu o podia ver com clareza. Usava o paletó azul tradicional do colégio com um short de mesma cor embaixo. Os sapatos engraxados pareciam retinir a luz solar. Carregava uma mochila pequena nas costas e segurava as duas alças com força, como que temendo que alguém a tomasse dele. Tinha a pele quase tão escura quanto a do pai. Mas tinha os meus olhos. Brilhando num azul ciano.

Eu estava distraída observando Samuel adentrar o colégio seguido dos demais colegas de classe. A freira gorducha sinalizava com gestos expressivos que as duas filas de meninos e meninas começassem a entrar pátio adentro. Uma outra irmã olhava de um lado a outro da calçada em frente à procura de retardatários. Um sinal longo tocou anunciando o começo das aulas. O meu coração se apertou vendo o meu filho desaparecendo entre os demais estudantes, pronto a assumir um lugar entre os melhores da sua série escolar.

— Se pretende manter o garoto longe da atenção de seus inimigos, precisa parar de vir até essa praça em frente ao orfanato com tanta frequência, Alina.

A mulher chinesa movia-se feito a uma cobra. Eu nem sequer a tinha percebido se aproximar. Quando me dei conta, ela já estava se sentando de pernas cruzadas ao meu lado.

— Não venho aqui com tanta frequência quanto gostaria.

A última criança adentrou a escola. A freira corpulenta fechou o cadeado em torno do portão pouco antes de desaparecer pelo corredor do pátio. Do lado de fora, jazia agora apenas o silêncio deixado pela ausência dos pequenos alunos do Tomás de Aquino.

— Ainda se arrepende de ter deixado Samuel à porta de um orfanato católico?

A minha expressão triste respondia à pergunta de Caihong. Ela mastigava de maneira ruidosa uma porção de amendoim que pegava de um saco de papel em sua mão direita.

Alina e a Chave do InfinitoWhere stories live. Discover now