Último Dia

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— Nunca pensei que fosse concordar, Kiran — disse para a yokai. Das pontas dos meus dedos livres da maldição de Amarate, selos foram desenhados no chão do meu território simples. Quatro portões de Torii envolviam o berço de Megumi, se fazendo de paredes.

Ao escutar minha voz as caudas da raposa se moveram — Sou sua maldição, se quiser me sacrificar não tenho como recusar. — Novamente, como muitas outras vezes, a raposa se curvou sobre o berço. — Tive muitos mestres, matei pessoas por poder, por terra e muito menos. Você pensa que se sacrificar é a única coisa de útil que pode fazer sendo uma presença maldita. Nesse ponto não pensamos tão diferente.

Mentiras veladas, meias-palavras, um mundo em fogo apenas para proteger uma única criatura. Kiran é minha yokai, alguém que divide também a minha alma, que também matou por mim, me salvou. Se Perséfone me ensinou o que era uma amiga, a raposa foi a primeira que tive próxima de uma irmã.

Eu devia ter cinco ou seis anos, é difícil saber ao certo quando eu era apenas alguém existindo dia após dia e cada um deles parecia ter mais do que vinte e quatro horas. Eu, a gêmea mais velha da família, passava a maior parte do tempo escondida num canto escuro da casa, para evitar o meu pai violento e minha mãe tola. Minha irmã Minori no contrário, vivia numa realidade onde ela se fazia de filha única, o pouco de energia amaldiçoada que tinha foi o suficiente para me fazer viver como uma sombra.

Num dia de fúria, quando o demônio que vivia no fundo da garrafa tomou o corpo do meu pai, fugi para o pequeno e abandonado bosque que havia perto da minha casa. Foi a primeira vez que nos encontramos, Kiran estava sentada sobre as caudas, os olhos se fixaram em mim no primeiro momento em que apareci em seu campo de visão.

Quanto tempo vai ficar parada aí me olhando pirralha?

Sua boca não se abriu, mas a voz, muito diferente de todas que eu já havia escutado, ecoou na minha cabeça com um tom amigável. O primeiro passo que dei em sua direção, foi a primeira grande mudança em minha vida.

Lembrar do começo, me fez abaixar a cabeça, se a kitsune não tivesse do meu lado esse tempo todo, não saberia que rumo teria a minha vida. Ou se ela sequer teria avançado para além de uma infância miserável.

E agora eu estava pedindo por seu sacrifício sem dizer uma única palavra de gratidão.

— Eu sei — Kiran interrompeu meus pensamentos, batendo a ponta da garra no meio da minha testa. — Conheço tudo que passa aqui, portanto sei que se tivesse outra opção em que ficasse viva, você as escolheria.

— Porque no fim sou uma vadia egoísta — respondi com um riso ácido.

— Porque você é humana — a raposa corrigiu minha fala —, e também quis perseguir sua felicidade. Mas não existe uma realidade em que isso é possível, então tentará garantir a dos outros, bem, pelo menos de um deles. O mais importante.

Kiran pegou Megumi com as mãos, o colocando deitado no centro do círculo e então no momento em que coloquei os pés fora dele, a invocação dos shikigamis aconteceu. Técnicas passadas por gerações possuem histórico, então é fácil deduzir algumas coisas que podem acontecer, das 10 sombras que podiam um dia estar sobre o controle do meu filho, os cães divinos foram os escolhidos para firmar um contrato.

Normalmente eles só apareceriam quando o usuário os chamasse, mas considerando o futuro da situação, algumas medidas provisórias seriam necessárias. Minha ligação com Kiran é parecida, mas seu poder permite que ela se manifeste mesmo quando não a chamo. Com o meu sangue correndo nas veias do meu filho, e a energia de Kiran alimentando os cães divinos, o par de shikigami teria uma certa autonomia para agir em situações de risco separadas do seu feiticeiro. Ao menos até ele ter autonomia o suficiente para conseguir os invocar.

Selcouth - ( Toji Fushiguro x Leitora)Where stories live. Discover now