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Ele parou em frente à universidade de Sioux para deixar um grupo de jovens atravessar a rua. Os garotos e garotas acenaram, agradecendo, e ele conseguiu sentir o cheiro se desprendendo de seus corpos quando eles levantaram os braços. Retribuiu o gesto com um sorriso. Era um sorriso genuíno, porque ele realmente se sentia feliz. Sempre que terminava de caçar, ele era tomado por uma euforia que o acalmava, por mais paradoxal que isso soasse. No banco de carona, Ashley continuava desacordada, coberta por um grosso casaco de lã que ele jogara por cima dela a fim de escondê-la. O que, até agora, estava funcionando muito bem.

Depois que os jovens atravessaram, ele voltou a dirigir, deixando para trás a universidade e seus prédios que pareciam feitos de chamas à luz vermelha do fim de tarde. Ele saiu de New Shore e seguiu para o sul, vendo-se totalmente sozinho na estrada. Pensou em retirar o casaco de cima de menina para cheirar seus cabelos loiros mais uma vez, mas deteve-se. Logo, teriam todo o tempo do mundo só para eles.

- Eu vou te dar asas, querida – ele disse. – Você vai voar, meu pequeno anjo.

Dez minutos depois, pegou uma estrada secundária de terra à esquerda, cercada por árvores gigantes de ambos os lados. O sol entrava pelas copas, queimando o para-brisa, lhe aquecendo o rosto, e ele desceu o vidro do motorista para deixar o calor entrar ainda mais. Apertou o volante com força, os músculos de seus braços retesados como cordões prestes a arrebentar. Sentia a luz dentro de si vibrar, ricocheteando contra as paredes de seus ossos, fervendo em seu sangue, pronta para vazar e consumir o mundo inteiro. Era tanta energia que ele precisou fechar os olhos para impedi-la de sair, rasgando sua pele e revelando sua verdadeira forma. Jogou a cabeça para trás, tendões dos pescoços saltados e dentes à mostra, os lábios repuxados quase até as orelhas, depois se atirou para frente e bateu com a testa no volante. Uma, duas, três vezes, até a coisa em suas estranhas se acalmar.

Quando terminou, um corte se abrira em sua testa, bem entre as sobrancelhas, liberando um filete de sangue que escorria quente pela ponte de seu nariz. Ele tirou uma das mãos do volante para limpar o rosto e não viu a garrafa de Heineken jogada no meio da estrada. Passou por cima dela com o Ford, escutou-a estourar e ouviu o exato momento em que os cacos de vidro furaram o seu pneu dianteiro direito.

O carro deu um pulo para a direita, o pneu furado girando com dificuldade no asfalto, a capota soltando uma chuva de faíscas e produzindo um barulho irritante de arrastar – iiiiirrrnnngh. Ele jogou o veículo para o acostamento de terra, um braço estendido sobre a menininha ao seu lado, mantendo-a firme no banco e protegendo-a. Pisou no freio e o Ford parou com um tranco, levantando uma nuvem de poeira que os envolveu como um cobertor. Havia um cheiro forte de borracha queimada no ar. Com o coração martelando em seu peito, ele se virou com desespero para Ashley e tirou de cima dela o casaco, segurando o rostinho angelical na palma das mãos. A bochecha dela era quente e corada. Ele passou quase um minuto procurando por um ferimento na criança. Correu as mãos por seus braços, girou sua cabeça, sondou cada canto e, quando viu que ela estava bem, soltou um suspiro de alívio. Beijou-lhe a testa, respirou o cheiro de shampoo de morango em seus cabelos, escondeu-a novamente com o casaco e só então saiu do carro para ver o estrago.

Parou diante do veículo e colocou as mãos na cintura. O sol do fim da tarde queimava sua nuca e o suor ardia contra sua pele. Ajoelhou-se em frente ao pneu furado, vendo com clareza os cacos verdes da garrafa estilhaçada despontando da borracha. Ele retirou-os um por um. Estavam quentes a ponto de formar bolhas em sua mão, mas ele sequer notou.

Creck-creck-creck. Seu descuidado.

- Cale a boca – ele disse entre os dentes cerrados.

A Voz da Escuridão.حيث تعيش القصص. اكتشف الآن