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Acordou em um bar. Não era um lugar muito grande, apenas um barzinho apertado e sujo de Boston. Dava para escutar os barulhos da cidade viva e pulsante lá fora, as buzinas dos carros e o cantar dos pneus. A luz da tarde que entrava pela janela destacava as manchas de poeira que cobriam as mesas. Ao olhar aquilo, Sophia pensou que o dono do estabelecimento precisava urgentemente de uma faxineira. Depois, viu o copo de uísque dourado em suas mãos.

- Não vai beber?

Ela ergueu os olhos do copo e lá estava Ermolai, sentado com ela à mesa. Usava um terno escuro e tinha um sorriso de canto de boca acentuando as rugas de seu rosto.

- Você sempre gostou de coisas fortes – ele disse, apontando o copo. – Achei que fosse querer um pouco disso aí.

- Eu sempre gostei de coisas que me fazem mal.

- É, disso também.

Sophia ergueu o copo e bebeu tudo de uma vez só. O uísque desceu queimando por sua garganta e esquentou seu estômago. A sensação era gostosa.

- Estou morta?

Ermolai franziu a testa e cruzou as pernas. Seus cabelos, brancos como da última vez que a garota o vira, estavam penteados com cuidado. Ele coçou-os enquanto pensava na resposta.

- Por que acha isso?

- Porque você está morto – disse Sophia.

- Estou. Mas isso não significa que você também esteja.

Sophia abria a boca para perguntar o que ele queria dizer, quando percebeu que seu copo se enchera novamente de uísque. Ela olhou para as pedrinhas de gelo que boiavam no líquido dourado. Se ela estivesse mesmo morta e aquele bar apertado e poeirento fosse alguma espécie de pós-vida, então ela não tinha se dado assim tão mal. Não quando o Além é um lugar com bebidas que se materializam sozinhas. Ela poderia ficar bêbada por toda a eternidade, se quisesse. Que tal isso?

- Estou sonhando – disse Sophia. – É isso.

E bebeu o uísque. Sonho ou realidade, ela não era de dizer não ao álcool.

- Pode ser – disse Ermolai. – Mas é bom que acorde rápido. Ele está esperando por você do outro lado.

- Ele? – ela franziu a testa. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que não tinha a mínima ideia de como fora parar ali. Algo a ver com uma picada. Uma picadinha de formiga. – Eu não...

Um barulho de estática fez com que ela se calasse. Sophia olhou em volta, assustada com aquela interrupção súbita, e viu o palco que ficava no final do bar, ao lado do balcão com as bebidas. Uma jovem bonita de cabelos cor de palha, usando um vestido amarelo de verão e trazendo no colo um violão, batia com os dedos na cabeça do microfone. Próft-próft-próft.

- Testando – disse a jovem. – Um, dois, três. Testando.

Ermolai virou-se na cadeira para olhá-la também. A jovem sentou-se em um banquinho de três pernas que, Sophia jurava, não estava ali um segundo atrás, e colocou-se a tocar divinamente bem o violão.

- Ela é boa – disse Ermolai.

- A mãe dela ensinou-a – disse Sophia. – O nome dela é Elizabeth. Mas todo mundo a chama de Lizzy.

Lizzy abriu a boca, arranhou a garganta, e começou a cantar Where Is My Mind. Sophia sorriu. Dissera uma vez para Lizzy que essa era uma de suas músicas favoritas.

- Ela é realmente muito boa – disse Ermolai, virando-se outra vez para Sophia. – É melhor você ir agora. Está mesmo ficando sem tempo.

Mas Sophia não queria ir embora. Gostava dali. Da voz de Lizzy, do som de seu violão, de conversar com Ermolai. Tinha sentido falta dele mais do que se dera conta. E algo lhe dizia que ela poderia ficar se quisesse. O pensamento a agradou, mas também causou-lhe um arrepio. O fato de ela preferir ficar em um bar sujo a voltar para a realidade dizia algo sobre sua vida, não dizia?

Em seguida, o que causou-lhe um arrepio foi o som que ela ouviu vindo de debaixo da mesa. Um creck-creck-creck que lembrava dentes mastigando. Uma boca cheia de ossos. Seus dedos se fecharam com força no copo de vidro. Havia algo ali com eles, nas sombras. Bem perto. Alguma coisa faminta.

Dentes amarelos que mordiam a mente.

- Não pode fugir dele – disse Ermolai. Seu rosto ficara sério, a expressão pesada que ele assumia quando Sophia era uma criança e Ermolai precisava dar-lhe uma bronca. – Ele gravou seu cheiro, Sophia. Vai encontrá-la em qualquer lugar. E está com fome.

Sophia levantou-se com um pulo. A cadeira caiu para trás, assim como o copo. O uísque espalhou-se pela poeira que cobria a mesa em uma mancha amarelo-suja, da cor dos dentes da coisa. Lizzy continuava a cantar no palco, perguntando com sua voz bonita onde estava sua mente, ooooh, ooooooh, onde foi parar a minha mente? Sophia queria correr até a jovem e arrancá-la daquele bar, porque ali não era seguro, mas suas pernas não se moviam. Nem seus braços. Na verdade, nada se movia, como se seu corpo fosse uma máquina desligada da tomada.

Ainda assim, ela conseguia escutar o barulho que vinha de debaixo da mesa. O creck-creck-creck da boca mastigando ossos. Mastigando pensamentos.


A Voz da Escuridão.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora