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Depois daquela noite, passei dois anos sem falar com ela.

Eu gostava de Miranda. Gostava de Pietra, de madre Deborah e das irmãs do convento de Nossa Senhora do Sagrado Coração. Mais importante: Sophia as amava, e elas a amavam de volta. Acho que a fonte da minha simpatia por aquelas pessoas residia no fato de que elas eram boas para Sophia, entende? Boas de verdade. Elas lhe deram um lar, um teto sobre sua cabeça, uma cama onde dormir, roupas quentes, comida na mesa todos os dias. Deram-lhe amor, e o que alguém pode pedir além disso? Confesso que, no começo, fiquei à espreita, atenta no escuro a qualquer sinal de perigo. Se eu farejasse algo de que não gostasse, sentisse que alguma coisa ruim estava para acontecer, obrigaria Sophia a fugir. Deus é testemunha de que já fiz isso antes. Mas com o tempo percebi que a garota ficaria bem. Pela primeira vez desde sempre, ela possuía uma família.

Por isso, fiquei em silêncio. Porque ela não precisava mais de mim. Retirei-me de cena e desconfio de que, durante esses dois anos, Sophia se esqueceu completamente da minha existência. Esqueceu que me carregava por onde fosse, de que eu era tão parte dela quanto o sol é parte do dia ou as estrelas são parte da noite. Sophia era amada. Era feliz. Era querida. E o que eu podia fazer se não havia lugar para mim em sua alegria? Deixá-la viver, ora. Deixá-la viver.

Até que Ermolai Dmitri apareceu. E mudou tudo.

Com que intensidade eu o odiava. E com que intensidade Sophia o amava.

***

Sophia tinha 6 anos e estava desenhando no dia em que conheceu Ermolai Dmitri. O homem que mudaria sua vida. Que daria início à Era das Agulhas. Talvez você esteja familiarizado com o termo Síndrome de Estocolmo. Acho que ele se enquadra bem na situação, embora Sophia não fosse necessariamente refém de Ermolai. Ela apenas o amava e...

Ah, quer saber? Dane-se. Não vamos dourar a pílula aqui. Se ela o amava, então era refém dele. Dois mais dois são quatro, porra.

Naquela tarde de quinta-feira, Sophia sentava-se sozinha na fonte da entrada do convento, com um caderno de desenho apoiado nas pernas cruzadas, rabiscando com um lápis de cor vermelho e escutando o gorgolejar da água que jorrava das mãos da Virgem Maria de mármore. Miranda, Pietra, madre Deborah e todas as irmãs estavam na missa das 17h e, de bem longe, Sophia ouvia o barulho dos cânticos na igreja, mas o som era algo insignificante. Não passava dos chiados de uma estação de rádio estranha captados por sua mente concentrada no ato de desenhar. Com um lápis de cor na mão, Sophia viajava para outro mundo. Um que era só dela, puro e intocado, sem marcas de pegadas além daquelas deixadas por seus próprios pés. Pobrezinha. Se ela ao menos soubesse, se conseguisse se lembrar. Recordar o significado daquelas cicatrizes brancas em seus pulsos.

Tinha se embrenhado tão fundo em seu outro mundo que sequer notou a aproximação do homem. Ele desceu as escadas da entrada devagar, com as mãos enfiadas nos fundos dos bolsos da calça do terno, o jaleco jogado casualmente por cima do ombro e assobiando. Viu Sophia sentada na fonte de cabeça baixa, o rosto coberto pela cortina escura de seus cabelos, e olhou-a por um tempo. Havia algo de mágico naquela garotinha. O quê, exatamente, ele não sabia dizer. Mas, se soubesse, então não seria mais mágico, seria?

- O que é que você está desenhando aí? – ele perguntou.

Sophia ergueu o rosto para ele. Os cabelos ainda cobriam sua face direita, de modo que apenas seu olho esquerdo estava à mostra, uma esfera perfeitamente redonda e verde. Ela continuou desenhando com o lápis vermelho por alguns instantes, sem fitar a folha, antes de obrigar a mão a parar.

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now