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Ele pegou seu anjo no colo. Ela ainda não estava pronta para voar, por isso ele a carregou até o carro e deitou-a no banco de trás. Acariciou seus cabelos dourados e cobriu-a com um cobertor negro.

- Seja paciente – ele disse. – Logo, você vai abrir as suas asas.

Consultou o relógio e viu que eram 18h30min. Combinara de encontrar Pietra às 19h, e voltou sem pressa para dentro de casa. Foi à cozinha, pegou a garrafa de vinho que comprara mais cedo, verificou se as portas do porão e do quarto no andar de cima estavam devidamente trancadas e, por fim, acionou o alarme. Se alguém invadisse, ele ficaria sabendo imediatamente através de uma mensagem enviada a um pager que levava no bolso.

Não se esqueça da arma.

- Você acha que eu vou precisar dela? – ele planejara cada passo que daria naquela noite. Era cuidadoso com a execução de suas obras de arte.

Nunca se sabe.

Verdade. Ele pegou a calibre .45 com silenciador que guardava no armário da sala e saiu de casa, trancando também a porta da frente. Entrou em seu Ford negro e girou a chave na ignição. Deixou o vinho ao seu lado no banco de passageiro e deu partida, ligando o rádio e assobiando ao ritmo de Wish You Were Here.

Ele dirigiu devagar, o vidro aberto para deixar entrar os aromas da noite de domingo. Sentiu cheiro de grama, de chuva ao longe e de terra. Esse último cheiro fez com que ele se lembrasse de uma tarde há muito tempo, quando ele ainda era um mortal e não um ser infinito. Um celeiro. Um arame em seu pescoço. Um homem que dizia ser seu pai em cima dele. Ele caído de cara na imundice, comendo poeira e se afogando em seu próprio vômito. Olhou para o retrovisor e ergueu o queixo, certificando-se de que a cicatriz estava bem escondida.

No banco de trás, seu anjo cantava. Ele sorriu e desligou o rádio para poder ouvi-la melhor.

Quinze minutos depois, o acampamento de trailers surgiu mais à frente na estrada de terra. Janelas brilhavam na noite, e ele escutou o som de risos e vozes alegres, ao mesmo tempo em que sentiu o cheiro de carne assada e batatas cozidas. Seu estômago roncou, o que o deixou um pouco surpreso. Geralmente, ele não sentia fome: alimentava-se apenas para suprir as necessidades daquele corpo fraco e falso que usava para esconder o seu verdadeiro eu, mas nunca chegou a realmente desejar comida. Agora, no entanto, sua boca salivava.

Uma fogueira ardia no centro do acampamento, pintando com um laranja quente as paredes de metal dos trailers. Pessoas sentavam-se em torno do fogo, crianças corriam e brincavam com cachorros vira-latas e não havia uma alma ali, humana ou animal, que não estivesse alegre. Ele observou-os conversar, trocar sorrisos e gritar insultos de brincadeira uns para os outros. Estudou-os. Misturou-se. Não viu Pietra ou Joanna em lugar nenhum, mas tudo bem. Logo, elas estariam orbitando em torno dele, atraídas por seu poder gravitacional. Desaguando nele, como todas as coisas desaguavam cedo ou tarde.

Ele parou o Ford perto dos trailers, deu uma última verificada em seu anjo e saiu do carro.

- Vou precisar que você fique quieto – ele disse. – Para eu me concentrar.

Tudo bem.

Satisfeito, ele bateu a porta do Ford e seguiu na direção das pessoas dos trailers. Enfiada na parte de trás de sua calça jeans, escondida por seu casaco, estava a .45.

***

Encontrou Pietra sentada em uma cadeira de praia próxima à fogueira. Ele não a tinha visto ali de imediato, com um violão nas coxas morenas e dedilhando com destreza as cordas. Cantava If You Go Away, e sua voz era adorável. Ao lado da mãe, a pequena Joanna acompanhava a música, martelando uma colher em uma lata vazia de milho para fazer barulho. As outras pessoas na roda olhavam fascinadas para as duas; balançavam a cabeça e eram embaladas pelo som melodioso que saía da boca de Pietra. Ele notou, com surpresa, que ele próprio cantarolava baixinho, batendo o pé direito no chão. Obrigou-se a parar.

A Voz da Escuridão.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora