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Ele estava em seu palácio mental.

Sua mente era vasta, tão vasta quanto o universo – e, de várias formas, ela era um universo. Um outro, particular e concebido totalmente por ele. Ele descobrira esse Lugar (com "L" maiúsculo, da mesma forma que sua musa inspiradora pensava na Estrada como um nome próprio – apenas uma das muitas coisas que ambos tinham em comum, embora nenhum dos dois soubesse disso) quando era apenas uma criança, crescendo solitário em uma casa de fazenda isolada do mundo, sem amigos para brincar ou alguém com quem conversar. Era uma dimensão que ficava dentro de sua cabeça, para a qual apenas ele tinha acesso. A Chave do Reino era dele e de mais ninguém.

Durante sua infância, ele buscava refúgio em seu Lugar sempre que se via triste, sozinho e depressivo. E ele passava um bocado de tempo se sentindo assim na época, o que significava um bocado ainda maior de visitas ao Lugar. Se seu pai subia em sua cama no meio da noite para fazer todas aquelas coisas com ele, bastava ele fechar os olhos e – plunf! – entrar em seu universo secreto e ficar ali até tudo terminar. Sem dor, livre do medo. Quando o homem que deveria supostamente protegê-lo deitou-o de cara no chão sujo de um celeiro e enrolou um fio de arame em seu pescoço, ele correu para seu palácio, bateu a porta e trancou-a. Seu pai não podia alcançá-lo lá. Ninguém podia.

Isso foi antes de ele descobrir a Força dentro de si, elevar-se acima da condição humana e entender que seu Lugar não era um refúgio de forma alguma. Assim como não era fruto de sua imaginação. Não, nada disso. O Lugar era real, era de verdade, e esse mundo aqui, onde ele era obrigado a andar por aí com um corpo, era a mentira. Um sonho, cheio de pessoas de sonho e sensações de sonho.

As paredes de sua mente eram revestidas de estantes que subiam infinitamente até se perderem de vista. Nelas, ele guardava suas lembranças e seus troféus. O último que acrescentara ali era um unicórnio rosa chamado Stephen. Ele arrumara um lugar de honra para o bicho de pelúcia, beeeeeem lá no alto, ao lado da revista em quadrinhos da Liga da Justiça.

- Obrigado por me salvar, meu chapa – dissera Stephen quando ele o colocara na estante. – Eu estava cansado de sonhar, sabe?

- Não se preocupe – dissera ele. – Você está a salvo aqui. Agora, você é de verdade. Igual a mim.

Já o primeiro troféu que ele adicionou às suas estantes foi uma Ferrari de brinquedo vermelha, com um sorriso branco e escancarado no lugar do para-choque e olhos onde deveriam estar os faróis. Ele conseguira o carrinho de um menino chamado Oliver McQueen, quando tinha cerca de 10 anos.

Oliver McQueen era um garoto que ele conheceu em um dos muitos orfanatos pelos quais passou depois de ser abandonado pelo pai. Também era seu amigo. Oliver andava para cima e para baixo com aquela Ferrari sorridente, contando para todo mundo que o brinquedo falava. Um dia, ele dissera a Oliver que nunca escutara uma palavra sequer sair do carrinho. Diante disso, Oliver o olhara com a seriedade de quem sabe das coisas e respondera:

- É porque o carrinho é meu. E eu o escuto em minha imaginação.

Bom, ele também queria escutar a porcaria da Ferrari falar. Desejava que o brinquedo fizesse parte da imaginação dele que, com certeza, era um Lugar muito mais legal que a mente de Oliver. Dentro da cabeça dele, o carrinho poderia acelerar sem parar por pistas infinitas e depois descansar nas prateleiras até recuperar as energias. Por isso, uma noite ele caminhou até o quarto de Oliver, entrou e sufocou o amigo com um travesseiro. Foi fácil e, na verdade, ele meio que fez um favor a Oliver. Libertou-o do sonho e o acordou.

Agora, caminhando por seu Lugar, ele parou diante da Ferrari de brinquedo. Ela o viu e piscou-lhe seus olhos-faróis. Deu também uma buzinada de boas-vindas. Bip! Bip!, como o Papa-Léguas.

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now