14 (I)

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Se a heroína sufocava os poderes de Sophia e diminuía o volume das vozes dentro de sua cabeça, a abstinência da droga tinha o efeito contrário e ampliava seus dons para um ponto além do insuportável. Durante os quatro ou cinco dias que ela passou sofrendo com as crises, Sophia se transformou em um campo de bombardeio.

Ela parecia captar a consciência de todas as pessoas do mundo – o rádio em seu interior tinha pirado, sintonizando centenas de mentes ao mesmo tempo. Pensamentos invadiam seu crânio e explodiam lá dentro como os fogos de artifício durante o 4 de Julho: um atrás do outro, sem parar, enchendo sua cabeça com o barulho de estrelas colidindo e meteoros riscando o céu. Era como viver com Big Bangs esporádicos no cérebro, supernovas feitas de lembranças e memórias que não eram dela. Mas ela via tudo. E sentia tudo. Cada dor, cada alegria, cada gozo, cada gota de sofrimento. Sensações que chegavam até ela como carros desgovernados e a atropelavam, depois davam ré, passando com os pneus por cima de seu corpo já triturado, só para, em seguida, a atropelarem de novo.

E havia as vozes. Sussurravam dia e noite ao pé de seu ouvido, como uma procissão infinita de mortos que gemiam e imploravam por salvação. Algumas não eram humanas. Sophia sabia disso. Algumas das coisas que falaram com ela durante suas crises de abstinência não pertenciam a esse mundo. Eram de algum lugar além daqui: sua mente sintonizara outro universo, e ela implorava para jamais ter um vislumbre de lá. Se tivesse, achava que enlouqueceria de verdade.

Esses eram os efeitos psíquicos. Os físicos eram igualmente ruins, embora não tão assustadores. O pior de tudo era a dor que parecia inflamar cada um de seus nervos enquanto ela tremia na cama do quarto de Josh Walker, uma garota imunda se contorcendo nos lençóis. Parecia-lhe que estava sempre ensopada: se não pelo suor, pela água da banheira. Josh e sua filha, Lizzy, a tiravam do colchão, a despiam e davam-lhe banho para livrá-la da sujeira liberada por seu próprio corpo. Em outras palavras: ela se mijava e se cagava inteira enquanto a droga deixava seu sistema, e os Walker a mantinham limpa. Faziam o melhor que podiam, pelo menos, pois ela nem bem saía da banheira e já estava suando azedo de novo. Lembrava-se com nitidez de uma vez olhar para seus pés sapateando sem controle no piso do banheiro, enquanto Josh e Lizzy a enrolavam em toalhas, e pensar: "olha só, sou uma dançarina. Cadê minhas sapatilhas?"

No final, tudo acabou se misturando: as dores, as câimbras, os pensamentos explodindo em sua cabeça e as vozes – desse e de outros mundos – falando ao pé de seu ouvido. Assim, ela realmente se esqueceu de muita coisa acerca daqueles dias. Mais tarde, tudo iria adquirir a tangibilidade fugidia de um sonho convalescente, daqueles que você tem quando se deita para dormir enquanto seu corpo assa com 40o de febre e o remédio que sua mãe lhe deu não faz efeito.

Cinco anos depois, enquanto contava a sua história para Chapman, Sophia diria que se lembrava de Josh e Lizzy Walker cuidando dela: banhando-a, trocando as ataduras de seus ferimentos e os lençóis da cama, dando-lhe água e comida (mais líquido do que sólido; Sophia era incapaz de engolir qualquer coisa consistente e, nas raras ocasiões em que conseguia, ou vomitava tudo ou soltava pelo outro buraco). "Pobre Lizzy", lhe ocorria entre uma explosão de pensamento alheio e outra. "Está grávida e ainda precisa ficar cuidando de mim".

Lembrava-se de Josh e Lizzy discutindo certa noite – ou manhã, ou tarde, o tempo durante aqueles dias parecia à Sophia uma bola em que as horas se misturavam e se tornavam uma coisa só – sobre levá-la ou não ao hospital.

- Ela vai morrer, papa – dizia Lizzy de algum lugar do quarto. Era quase impossível para Sophia escutá-la com tantas vozes enchendo sua cabeça.

- Não seja boba. Ela vai ficar bem. Só precisa tirar essa merda do corpo.

- Ela precisa é de um hospital.

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