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A escuridão falava com Sophia Manning.

As duas tinham essas conversas desde que Sophia conseguia se lembrar. Sua recordação mais coerente e nítida da infância era a voz falando dentro de sua cabeça. Elas não trocavam exatamente palavras, porque a escuridão era desprovida de qualquer língua ou linguagem. Comunicavam-se através de sensações e emoções. Com o tempo, Sophia foi pegando o jeito desse diálogo brutal e fragmentado, até conseguir entender a outra sem fazer esforço algum. Às vezes, a voz passava dias e noites inteiras conversando com Sophia, sussurrando cores e explosões que ecoavam pelas paredes de seu crânio, a ponto da garota se sentir esmagada e esgotada. Era maçante. Outras vezes, a escuridão desaparecia por completo. Ficava semanas sem dizer nada, em silêncio, embora até o silêncio dela produzisse um som. Uma espécie de estática, um ruído irritante no início e que depois se transformou em algo rotineiro que Sophia sequer notava. Um pano de fundo. Algo tão parte do seu mundo quanto o sol no céu. E então, sem avisar, ela voltava e encontrava Sophia à sua espera. Batia na porta, Sophia abria e a escuridão entrava sem nem pedir licença. Era de casa. Tinha até um quarto só para ela no palácio mental de Sophia, um lugar onde elas se sentavam para colocar o papo em dia. Como boas e velhas amigas.

E agora lá estava ela outra vez, fazendo-se ouvir acima dos tambores que ensurdeciam o mundo inteiro. Ela sempre queria a atenção toda para si. Era egoísta. Sophia pediu para que ela ficasse quieta, por favor, que calasse a porra da boca pelo amor de Deus, mas a escuridão a ignorou. Então Sophia deixou-a falar. Era bom ter uma companhia. A voz perguntou sobre Daniel, e Sophia respondeu que Daniel estava morto. Tinha acabado de morrer, será que ela não vira? Perguntou se Sophia sentia vontade de se matar, e a garota respondeu que sim, talvez um pouco mais que o habitual. Perguntou se Sophia iria se matar, e ela respondeu que não. Não no momento, pelo menos. Quem sabe mais tarde.

Bom, se ela não iria se matar, então o que diabos faria?

- Sair daqui – disse Sophia. – Sair daqui e encontrar meus amigos. Eles precisam de mim.

Boa garota.

***

Sophia levantou-se. Sentia-se tonta e enjoada, como sempre ficava depois de desenhar. Os tambores retumbando na floresta pareciam distantes se comparados ao zumbido dentro de sua cabeça. Ela apoiou-se nos joelhos, o tornozelo quebrado enviando uma onda de agonia por seu corpo, e esperou para ver se iria vomitar. Abriu a boca e, quando nada saiu, colocou-se o mais ereta que conseguiu e mancou em direção à ponte. A ponte que ela própria desenhara. Não se permitiu olhar em volta. Se o fizesse, veria Daniel. Isto é, se alguma coisa dele tivesse sobrado para contar história.

Ah, meu menino, meu menino idiota, por que você não me escutou? Por que não me deixou em paz?

Sophia enxugou as lágrimas do rosto – haveria tempo para chorar depois, mas não agora, ainda não –, o corte em seu pulso deixando uma esteira de sangue em seus olhos e na ponte de seu nariz. Como uma pintura de guerra. Sophia sabia que o ferimento se fecharia sozinho, transformando-se em apenas mais uma marca de cicatriz. Vermelha e inflamada no início, depois branca e, por fim, se tornaria uma linha pálida de relevo duro. Sophia Manning se curava rápido.

Ainda se sentindo meio ali e meio longe, muito longe, Sophia guardou o pincel negro que trouxera – a lâmina em uma de suas pontas agora suja de sangue –, agarrou-se às cordas que cercavam a ponte e começou a travessia. Ela fizera um bom trabalho: desenhara uma ponte muito mais firme e resistente que a anterior, que não balançava ao vento e tampouco ameaçava ruir sob os míseros 40 quilos que a garota pesava. Atravessou-a pulando com o pé esquerdo, arrastando o tornozelo quebrado e inútil atrás de si. Parou uma vez no meio do caminho para tomar fôlego, o suor pingando, e quase se virou para perguntar a Daniel se ele estava bem. Então se lembrou que o garoto estava morto, que ela o matara, e considerou com uma força aterrorizante atirar-se no rio lá embaixo. Imaginou sua cabeça explodindo contra uma rocha, seus miolos esparramando-se em uma pedra, espalhando-se em uma nuvem vermelha nas águas ferozes e sendo carregada pela correnteza para outro lugar. Um lugar melhor. A única coisa que impediu Sophia de transformar essa fantasia suicida em realidade foi o pensamento em Chapman, Watson e Grimmes, sozinhos com Abukcheech e os Monstros. Eles precisavam dela. Por isso, ela foi.

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now