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9

- Eu o apaguei – disse Sophia. – Meu Furgus. Assim que saímos de Oldwheel, que ele me carregou para fora de Oldwheel, eu o apaguei. Assim – estalou os dedos. – Assoprei-o para o nada como quem assopra uma vela.

No chão do banheiro do quarto 19 do Days Inn New Shore, Sophia apoiou a nuca no box de vidro atrás de si e fechou os olhos.

- Àquela altura eu já era eu mesma novamente – ela continuou. Sentada na privada, Lívia olhava em silêncio a garota terminar de contar sua história. Não a interrompera em momento algum. Era uma das coisas acerca de Lívia que Sophia amava. Ela possuía um talento que estava em falta na humanidade: sabia a hora de abrir a boca e a hora de mantê-la fechada. – Miranda me contou uma vez uma história da Bíblia, aquela sobre a mulher que vira uma estátua de sal.

- A esposa de Ló? – disse Lívia, falando pela primeira vez em vinte minutos.

Sophia assentiu.

- Isso. Até onde eu me lembro, em um belo dia Deus decidiu destruir Sodoma e as cidades vizinhas porque não encontrou nelas quase nenhuma pessoa justa – Sophia soltou um risinho pelo nariz. – Como se Ele estivesse em posição de julgar alguém.

- Conheço a história, Sophia.

- Quando eu saí de Oldwheel, me senti como Ló e sua esposa dando o fora de Sodoma. Oldwheel queimava atrás de mim, eu conseguia escutar o barulho das explosões, das pessoas gritando, das sirenes... E dizia a mim mesma o tempo todo: não olhe para trás, não olhe para trás. Continue em frente e não olhe para trás. E não olhei. Acho que, se eu tivesse olhado, a mesma coisa que aconteceu com a mulher da história da Bíblia teria acontecido comigo. Eu me transformaria em sal pelo o que eu fiz. Pelo mal que causei – fez uma pausa e mordeu o lábio inferior. – Seria castigada por não ter sido justa.

Lívia soltou um suspiro profundo e levantou-se da privada, indo sentar-se ao lado de Sophia no chão. Pegou-lhe a mão esquerda e apertou com força.

- Termine.

A garota enxugou as lágrimas que escorriam por seu rosto, sentiu o gosto do sal nelas, e continuou a falar.

10

A casa dos Walker estava apagada. Sophia capengou pela estradinha que levava à entrada, sentindo-se estranhamente fora de si. Um vento gelado soprava, embora o dia tivesse sido quente. Em algum canto no fundo de sua mente ela continuava a escutar as pessoas gritando em Oldwheel. Sabia que era sua imaginação – os Walker não moravam tão perto assim da cidade para que ela pudesse ouvir o que acontecia por lá –, mas Sophia aprendera que a imaginação tem seus próprios imperativos. Para o bem ou para o mal, ela é capaz de moldar a realidade.

Subiu a pequena escada que levava à varanda da casa, tropeçando em um dos degraus e caindo de joelhos. Permitiu-se ficar naquela posição, de quatro e com a testa quase tocando o chão como um muçulmano voltado para Meca, recuperando o fôlego e um pouco da sanidade. Quando sentiu-se razoavelmente melhor, levantou-se e abriu devagar a porta.

O silêncio dentro da casa era tão absoluto quanto a escuridão. Quando saíra mais cedo para ir ao mercado, Lizzy já preparava a pequena Eva para dormir e Sophia dissera a Josh que eles não precisavam esperá-la acordados. Graças a Deus Josh seguira o conselho – Sophia achava que jamais conseguiria se despedir deles se tivesse que encará-los. Tinha certeza disso. Ser bom em fugir não faz de você bom em dizer adeus.

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now