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Quase meia-hora tinha se passado e Sophia continuava dentro da casa. Sentado de encontro a uma árvore, sentindo o sangue se esvair pelo buraco em seu abdômen junto com o pouco que sobrava de sua energia, Bernard Chapman encarava a construção amarela. Mais do que nunca aquelas janelas pareciam dois olhos negros e aquela porta uma boca escancarada. Uma boca que engolira Sophia e se recusava a cuspi-la.

- Chefe?

Chapman desviou o olhar da casa para Grimmes. Era a primeira vez que o garoto falava desde que Chapman fizera o torniquete em sua perna, e bastava uma espiada no rosto de Grimmes para saber que ele não estava bem. Nada bem. Sua palidez era mortal, a pele parecendo ser feita de cera. O sangramento diminuíra, mas o sangue continuava a escorrer do buraco em sua coxa em pequenos riozinhos vermelhos. Grimmes apertava o ferimento sem fazer realmente muita força. Não conseguia.

- Não fale, Norman – disse Chapman, sabendo que ele próprio não devia falar. – Fique quieto.

Grimmes balançou a cabeça e engoliu em seco, o pomo de adão subindo e descendo em uma agonia lenta.

- Ela já deveria ter voltado – disse Grimmes. – Alguma coisa aconteceu.

Chapman não respondeu. Sentou-se um pouco mais ereto, apesar da agonia que se espalhava por sua barriga. Seus dedos direitos, pressionados contra o buraco da bala, estavam cobertos por uma luva vermelha de sangue. Na outra mão, segurava o celular. Desde que Sophia entrara na casa, ele vinha tentando ligar para a delegacia de New Shore atrás de reforços. A ausência de barras de sinal, no entanto, ria de sua cara.

- Você precisa ajudá-la – disse Grimmes.

- Ah, é? Como? Se você não reparou, não estou em condições nem de ajudar a nós dois.

- Não preciso de ajuda. Não se preocupe comigo. Preocupe-se com Sophia, porque ela só tem a você agora – Grimmes fechou os olhos e demorou tanto para abri-los que Chapman achou que o garoto tinha caído no sono... ou pior. Então as pálpebras se escancararam para revelar as pupilas dilatadas de dor. – Ela só tem a você, então vá atrás dela. Eu vou ficar bem.

Não, Grimmes. Não vai. Se ninguém aparecer, você vai morrer de hemorragia, e eu também.

Certo. Mas isso não alterava o fato de que Grimmes tinha razão: Chapman era tudo o que Sophia possuía no momento. Ela estava presa naquela casa e, se ele não fizesse algo, todos os três morreriam. E, se ele aprendera alguma coisa ao longo da sua vida, essa coisa era a seguinte: se for para morrer, então que seja de pé. Não deitado para facilitar o trabalho da caveira com a foice. A morte não é sua amiga para você recebê-la de portas abertas, porra.

- Volto logo – disse Chapman. – Fique aqui.

Grimmes deu-lhe um sorriso débil.

- Para onde mais eu iria, chefe?

Chapman conseguiu sorrir em resposta, depois ficou de pé. Foi preciso cada grama de vontade que lhe restava para realizar esse ato tão simples, mas ele conseguiu. Sacou a Glock .40, satisfeito ao vê-la firme em seus dedos. Sua mão não tremia. Era treinada.

- Aqui – Chapman estendeu o celular para Grimmes. – Tenho o número do chefe Cohen salvo em algum lugar nas chamadas. Está com pouco sinal, mas tente pedir reforços – e, quando Grimmes pegou o aparelho com uma mão ensanguentada, Chapman curvou-se e deu-lhe um beijo na bochecha. – Aguente firme.

Depois caminhou rumo à casa, deixando atrás de si uma trilha de sangue. Migalhas vermelhas para a morte seguir.

***

Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo.

A casa amarela em frente ao milharal não ficava longe do lugar onde Chapman e Grimmes tinham se sentado para sangrar e esperar Sophia. Apenas vinte metros de distância e, ainda assim, Chapman sentiu-se como Jesus caminhando por quarenta dias no deserto. Era como se seus sapatos fossem feitos de chumbo – cada passo era pesado e lento. Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo. Mantinha os olhos ardidos de suor fixos na porta-boca que se escancarava mais e mais conforme ele se aproximava.

Pé direito, pé esquerdo. Pé direito, pé esquerdo. Pé...

Tropeçou. Caiu sobre o joelho direito e a dor se espalhou, como se sua bacia fosse estraçalhada por um martelo. Lágrimas escorreram e se misturaram com suor em suas bochechas. Tentou ficar de pé e seu corpo respondeu com espasmos cansados, feito um motor que se recusa a ligar.

Agora não, sua vista se turvou e a casa amarela dividiu-se em duas. Por favor, agora não. Me ajude a ir até o fim. Só mais dessa vez.

No final, foi o pensamento em Sophia que fez com que ele tivesse forças para erguer o corpo e continuar a andar. Galgou os últimos metros até a casa e, quando chegou à porta da frente, tropeçou e caiu em cima dela, arfando e tremendo. Encostou a testa quente na madeira fria e olhou para a cintura, soltando um gemido. O buraco da bala voltara a sangrar em profusão, e não havia sentido algum em tentar parar a hemorragia naquele momento.

Respirou fundo e fechou a mão na maçaneta.

Precisou de duas tentativas para abrir a porta. Da primeira vez, a maçaneta escapou de seus dedos, tão escorregadios de sangue que pareciam cobertos de graxa. Quando finalmente conseguiu abrir aquela porcaria, ele viu-se diante de uma sala escura com cortinas negras nas janelas. Tropeçou para dentro da casa, experimentando a mesma sensação que sentira ao entrar nas entranhas da floresta de Fallpound, e precisou parar de novo para tomar ar.

Vamos lá, vamos lá. Você está tão perto.

Viu a escada que levava para um segundo andar repleto de sombras e deu um passo na direção dela. Então parou. A despeito de seu corpo cansado, seu instinto continuava a funcionar perfeitamente bem. Nunca quebrara ao longo de todos aqueles anos, e não quebraria agora.

A escada não.

Não. Sophia não estava lá em cima. Mas então onde? O silêncio na casa era tal que o lugar parecia completamente deserto, vazio até mesmo do farfalhar de uma brisa. Chapman fechou os olhos e escutou um som vindo de baixo do piso de madeira escura da sala. Uma batida metálica. Já ouvira esse tilintar ressonante mais de uma vez, enquanto algemava algum sujeito que tentava resistir à prisão.

Algemas chacoalhando. Abaixo de seus pés, em um porão. A porra daquela casa tinha um porão.

- É claro que tem.

Chapman olhou em volta. Viu a porta na parede abaixo da escada e não parou para pensar se ela estava trancada ou não: apenas atirou-se de ombro contra ela, ignorando a dor que subiu por seu quadril como um golpe de faca e escancarando-a com um barulho alto. Cá-blau! E lá se vai o elemento surpresa.

Uma luz vermelha tomou conta do mundo. Os degraus do porão tremeluziam diante dele, como se fossem hologramas, e Chapman sentiu cada pelo de seu corpo se arrepiar ao olhar para a escada que levava ao interior daquele mar de sangue.

É aqui. O coração dessa maldita casa. O quarto do monstro.

O fundo do armário.

Empunhou a Glock e desceu.

A Voz da Escuridão.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora