Lua vermelha

By AnandaGron

126K 8.5K 10.4K

Liderada pelo biólogo Elias Crow, uma equipe de cientistas trabalha em uma pesquisa singular: a domesticação... More

AVISO
Epígrafe
1. Neve branca
2. Quarto escuro
3. Céu azul
4. Sangue carmesim
5. Cachecol amarelo
6. Bisturi prateado
7. Olhos cinzentos
8. Chá verde
9. Fúria neutra
10. Solução laranja
11. Blusa lilás
12. Olhar gelado
13. Edredom bege
14. Maleta marrom
15. Passado obscuro
16. Bala rosa
17. Chip localizador
18. Luz brilhante
19. Onda furiosa
20. Lenço roxo
21. Olhos turquesa
22. Solução transparente
23. Berço colorido
24. Sonhos turbulentos
25. Copo vazio
26. Alegria angustiante
27. Luz artificial
28. Sombra de insanidade
29. Imagem indefinida
31. Maçã mordida
32. Azul cinzento
33. Pontas afiadas
34. Barreira esbranquiçada
35. Aqua regia
36. Lago vermelho (parte 1)
36. Lago vermelho (parte 2)
Epílogo
Nota da autora
Curiosidades
Galeria
Prêmios, resenhas e presentes

30. Manicômio claustrofóbico

586 86 74
By AnandaGron

Valeria a pena desgastar sua sanidade mental para cumprir as metas familiares?

As cenas na mente de Elliot se tornaram mais consistentes. As imagens, que antes giravam à sua volta, desaceleraram. Não se sentia mais sufocado por elas; na verdade, agora que era capaz de analisá-las com cuidado, sua curiosidade fora atiçada por uma brisa noturna nostálgica.

Estava em uma floresta de novo. Era noite e fazia frio. Vez ou outra o vento causava a agitação em galhos e folhas das árvores, forçando-os a farfalhar. A escuridão envolvia tudo ao redor, porém a luz da lua, que conseguia penetrar na floresta, permitia o discernimento de formas.

Ele estava caído no chão, de costas, tentando se afastar de alguém que caminhava em sua direção. Aquele alguém, camuflado no escuro, só podia ser percebido por conta de seus olhos vermelhos que se aproximavam.

— Não quero voltar! — Elliot gritou desesperado, rosnados saíram de sua garganta, compreensíveis como palavras.

O outro parou por um momento e sibilou uma resposta:

— Precisa terminar a iniciação. — E o sibilo, antes irreconhecível, ganhara um significado.

Elliot não percebeu a estranheza de conversar por grunhidos, pois eles faziam sentido. Não percebeu que estava conversando em uma língua estrangeira, porque não era estrangeira para ele; soava correta e natural.

— Não quero! — ele choramingou. — Tenho medo do escuro.

Aquele que estava à sua frente avançou devagar. Os olhos vermelhos, atentos como um animal caçando, suavizaram ao relaxar as pálpebras. Ele passou por uma faixa de luz lunar, que revelou amor e compaixão em uma face feminina e delicada.

— Por isso deve completar a iniciação, pequeno irmão. — Ela se ajoelhou à frente dele e mirou a lua com um semblante sério; assim como os lobos, conhecia a importância daquele mestre do céu.

A linguagem corporal dela exigia que Elliot fizesse o mesmo, então ele virou a cabeça o suficiente para ver por cima do ombro. A lua brilhava límpida, contornada por estrelas e nuvens afugentadas.

— Quando a lua ficar vermelha, não mais terá medo do escuro. — A voz dela emitiu sons calmantes, parecidos com um ronronar. — Nunca mais sentirá medo algum; ele se esconderá de você.

A cena paralisou naquele instante. A mente de Elliot ficou presa naquele lugar. O harmínion nem suspeitava que estava desacordado em um laboratório fora da mansão do Dr. Crow.

Temperos artificiais eram algo que Daniel jamais utilizaria na cozinha. Eram itens que nunca seriam encontrados em estabelecimentos grandes e famosos, contudo ele optara por aquele lugar devido à localização próxima à casa de Anabela. Não via problema em comer uma refeição feita com aqueles temperos falsos, mas preparar uma era inaceitável. Era por isso que, após sugerir a ideia ao seu novo patrão, estava picando os ingredientes naturais e frescos no balcão da cozinha do restaurante. O aroma deles era agradável e nostálgico; traziam-lhe a lembrança de quando tentava ver o que seu irmão mais velho estava cortando na pia, e como sua altura de criança não ajudava, restava-lhe apenas poder sentir o cheiro refrescante das plantas.

— Por que ainda está aqui?

Daniel acometeu um movimento brusco com a mão que segurava a faca, quase causando um acidente na outra mão. Olhou alarmado para a porta da cozinha, onde encontrou Isadora apoiada na parede, de braços cruzados e com a feição intimidadora, os cabelos longos escondendo boa parte dos braços.

— Preciso aprontar o tempero, não consigo trabalhar com os artificiais — ele justificou.

Isadora levantou uma sobrancelha.

— E ainda é cheio de frescura — resmungou. Seu olhar vagou pelo ambiente, julgando as panelas penduradas, fogões limpos, tela com o cardápio da semana na parede — onde estava desenhado um pequeno chef feliz —, até finalizar recaindo sobre o balcão onde Daniel trabalhava; examinara e desaprovara o lugar em dois segundos. — Ficou tão decepcionado com seu desempenho como cientista, que resolveu se rebaixar?

— Isso não é se rebaixar. São duas profissões distintas, cada uma tem sua... — A frase morreu no meio do caminho. — O que está fazendo aqui?

— Ahn... Falando com você? — perguntou com ironia, observando-o como se questionasse a inteligência dele. — Eu saí mais cedo, então vim fazer uma visita e descobrir se sou imune ao que você chama de comida, além de...

— É proibida a entrada de pessoas não autorizadas. — Daniel apontou com as pupilas a placa na porta que continha aqueles dizeres.

Isadora fechou a boca e a cara, os orbes avelã queimando de raiva.

— Como eu ia dizendo, também queria perguntar como você se atreve a largar uma criança com a minha irmã. — Esforçou-se para controlar a voz. — Ela não faz serviços de babá, ao contrário do que pensa.

Daniel, como estava com as mãos sujas, bateu o pulso na testa enquanto fechava as pálpebras por um segundo.

— Elas estão aqui? — Girou o corpo para ficar de frente para Isadora. — Está aterrorizando a Sara?

— Sim e não. Nem preciso fazer nada, aquela garota é aterrorizada por natureza. — Começou a andar de um lado para o outro, mirando o teto e falando devagar, como o ritmo de seus passos. — Sara Aidler. Não mora com os pais e nem com a família... Por que será? Familiares a amam tanto que nem se importaram em deixá-la viver com um harmínion. O que a garotinha má aprontou? — Encerrou a marcha e lançou uma combinação de sorriso e olhar traiçoeiros para Daniel.

Entretanto, Daniel se acostumara com o "jeito Isadora de ser" — enfrentou uma adaptação parecida com Teris antes de iniciarem o relacionamento —, então foi fácil ignorar as insinuações de mau gosto, limpar as mãos no avental e passar por ela, enquanto sacudia a cabeça em desaprovação.

— Vai dizer que nunca pensou nisso?! — Ela incitou quando ele estava próximo e conseguiu pará-lo com sua provocação.

— E o que te faz pensar que foi ela quem "aprontou" alguma coisa? — Daniel indagou com impaciência e em voz baixa, como se temesse que pudessem ouvi-lo através da porta ou do outro lado do restaurante.

— Você acha que estamos onde? Nos anos dois mil? — Isadora riu, debochando, e prosseguiu com um sorriso menor e tom mais sério, embora ainda mantivesse certo escárnio: — Nenhuma criança é vítima, a não ser que seja burra... ou esperta o bastante pra se esconder dos enfermeiros da escola. No caso da Sara, eles têm a guarda dela... mas a querem bem longe?

Daniel decidiu que ganharia mais se a ignorasse, pois aquela garota estava sempre pensando no pior das pessoas, e pensar isso de uma criança era um grande passo para o longe demais. Portanto, continuou seu caminho para fora do recinto.

— É um tapado — a jovem disse a si mesma, apagando o sorriso de vez.

E seguiu o tapado até a mesa onde estavam Anabela e Sara.

É claro que a situação familiar de Sara era curiosa; e o mistério era agravado pela garota, que sempre desviava do assunto quando questionada. Logo, entendia-se que a resposta não seria agradável. Daniel tinha ciência de que nem toda família acolhia seus membros com carinho e — sentia raiva ao pensar — podiam até feri-los. A família de Sara se tornou um assunto proibido na equipe do Dr. Crow. Pelo visto, precisaria esclarecer isso para Isadora mais tarde.

Todas as cadeiras do restaurante estavam em cima das mesas, com exceção de três, cuja mesa ainda era utilizada por duas pessoas.

— Olá!

Anabela acenou com a mão próxima ao rosto e, ao contrário da expectativa de Daniel, Sara realizou o mesmo movimento. Não apenas isso. Sara ainda deixava transparecer um olhar abatido, no entanto um sorriso pequeno e sincero lutava contra sua tristeza. Talvez deixá-la com Anabela não fosse uma ideia ruim, apesar de Isadora.

— Me desculpem pelo atraso. — Daniel começou sua explicação. — Existem alguns princípios de chef que... — Se soubesse que Isadora apareceria, não teria ficado até tarde.

— Não se incomode, nós entendemos. — Anabela lançou um olhar de canto enigmático à Sara, que respondeu com um sorriso maior para Daniel.

— Fizemos um monte de doces pra você experimentar. — Os olhos de Sara brilharam com uma alegria verdadeira que, embora contivesse resquícios de uma opacidade melancólica, extinguiram as preocupações de Daniel. — E um bolo que...

— O bolo, não! — Anabela se alarmou a ponto de interromper a garota. — Foi só um teste.

— E ele tem que ser testado, ainda mais por alguém que sabe do assunto...

Enquanto Anabela rebatia com outro argumento, tentando trazer Sara à razão e fazê-la desistir daquela ideia insana, Isadora se postou ao lado de Daniel.

— Um conselho — disse ela, mantendo a voz em um volume que somente Daniel pudesse ouvir. — Coma. — E finalizou com um sorriso malicioso.

Após se sentir desbalanceada pelos eventos recentes, Mori retomou o equilíbrio aos poucos até poder voltar a caminhar com convicção. Na verdade, estava marchando rápido como se fosse chegar atrasada à sala de aula. A agitação de emoções barulhentas servia de combustível. Queria sair de lá o quanto antes, entretanto havia algo não identificável que gritava dentro de sua cabeça. Se fosse embora, qual seria seu destino? Decerto continuaria procurando por uma razão, um papel importante que queria executar, mas que ainda não foi encontrado. Ou isso seria mentira? Seria ela quem estaria sempre fugindo?

A maior parte de sua vida foi gasta em busca do orgulho dos pais, que nunca pareciam satisfeitos com o seu melhor. O medo de errar nasceu e cresceu regado por expectativas absurdas. Agora, buscava não desapontar a si mesma, desejando fazer algo grandioso e desprender-se do medo que a afrontava em cada escolha. Com certeza não era esse tipo de futuro que a esperava em casa.

Chegou ao lobby sem vontade de sair do elevador, no entanto, assim que o fez, os passos decididos retornaram. Seu corpo demonstrava a indecisão da mente. Ficar era perigoso, Low deixou isso bem claro... e o Dr. Crow também. O mesmo Dr. Crow que, agora podia afirmar sem dúvida, ela conhecia tanto quanto o verdadeiro Low, porque se o doutor foi capaz de fazer testes em uma criança, então ela não conhecia quem ele realmente era.

Exceto que poderia estar enganada; todos eles fizeram parte do mesmo grupo que estudava um harmínion... mas... nunca fizeram algo que machucasse Elliot... além de desenvolver um veneno capaz de matá-lo. Seus ombros caíram. Elliot era uma criança... e aceitá-lo como cobaia era o mesmo que dizer que não tinha problema se Low foi usado como uma na infância. Será que ele foi machucado ou sofreu com os procedimentos pelos quais passou?

Perto da saída, parou para admirar o lobby. As férias escolares estavam no fim; várias famílias passavam ocasionalmente. O chão era tão brilhante que devia ser encerado à mão e os lustres pareciam feitos de diamante. Tudo gritava a palavra "caro" e ela nem tinha contado com a lareira de pedra luxuosa que ficava em uma área de convívio... ou o fato de que existia um andar inteiro sendo usado como salão de jogos. Não queria nem saber quanto Low estava gastando por dia com aquele hotel... e, pensando bem, por que ele se preocuparia com valores? Era o dinheiro do Dr. Crow que pagaria tudo. Low acabara de "herdar" todos os pertences do doutor — incluindo o próprio título de doutor.

Aquilo era insano, e era por esse motivo que devia ir embora. Era muito arriscado. Poderia ser pega pelo governo, como Maurício, ou sofrer uma imprevisibilidade.

Observou o balcão da recepção e se lembrou do estado em que Low estivera por causa do estimulante, o sangue escorrendo pelos cantos das unhas. Em seguida, pegou a mecha verde de seu cabelo e a analisou antes de finalmente sair daquele lugar.

Ainda no quarto do hotel, segundos depois de sugerir o táxi a Mori pela segunda vez, Low deu alguns passos para trás até se sentar na cama. As mãos seguraram a borda do colchão e a cabeça conduziu o olhar para o carpete sob seus pés. Um sorriso discreto surgiu em seus lábios, expandindo até chegar ao limite e, como não podia se alargar mais, transformou-se em um riso silencioso.

Ele jogou as costas na cama e mirou o teto, uma mão descansando na barriga e outra ainda no colchão, com os dedos arqueados como se quisesse perfurar o material. A intensidade do riso se elevou até ficar alta e descontrolada. Por um instante, esqueceu onde estava e se permitiu desfrutar do momento. Aquilo era maluquice ou sonho. Parecia irreal demais para ser verdade, uma ambição a qual ele nunca se iludiu a acreditar em obter sucesso.

Que futuro teria Arlow Crow? Nenhum! Porque Arlow estava morto, reduzido às mesmas cinzas de onde surgiu. Enquanto Elias Crow, a primeira versão defasada, covarde e podre foi substituído por uma nova versão melhorada, não menos podre e ainda menos complacente. O primeiro Elias encontrara uma forma de camuflar a submissão em uma falsa amizade, e esperara que Arlow fizesse o mesmo, pois acreditara que somente assim o "sobrinho" estaria seguro. Raymond era um aliado formidável por sua influência, todavia, Low jamais aceitaria viver sob suas condições novamente; foi em um fatídico dia que Raymond perdeu qualquer chance de colaboração por parte dele. E agora... Agora, Low via possibilidades concretas de se vingar, o que selaria seu destino.

Que futuro teria Arlow Crow? A pergunta certa seria: que futuro teve Arlow Crow? Foi pulverizado e, junto a ele, foi sua história. Problemas familiares, amigos de faculdade, ex-namorada, casa, competições esportivas... professores e enfermeiras. Todas as mentiras contadas para manter a mentira de uma vida comum. Tudo pertencia a uma pessoa que não existia mais.

Elias Crow não poderia viver uma vida sem mentiras, isso era verdade, porém seu passado sofrera uma mudança drástica e agora ele não era mais o mesmo. Low se divertiu com esse pensamento.

De súbito, recobrou a lucidez e se lembrou de onde estava. Cobriu a boca, levando alguns segundos até que o riso cessasse de vez. Não poderia se deixar levar daquela forma outra vez; ainda havia uma longa trilha em seus planos e, antes de tudo, tinha o dever de livrar Elliot de Raymond.

A seriedade retornou ao se sentar. Um raro brilho cálido ornou os orbes cinza. O plano levaria anos até ser finalizado, contudo ele degustaria cada pequena etapa. Levantou-se com entusiasmo e, enquanto arrumava as malas, o sorriso de canto renasceu, recusando-se a se esconder em sua falsa expressão séria.

Tinha pressa em dar continuidade ao plano, portanto não tardou em pegar seus pertences, realizar o check-out e descer até o estacionamento, onde marchou em direção ao carro, levando uma mala em cada mão. Saindo agora, chegaria ao destino durante o amanhecer, o que significava que Elliot precisaria suportar por mais algumas horas.

Abriu a porta do veículo — era um alívio poder fazer isso — e encontrou Mori sentada ali, de braços cruzados e com um divertimento irônico, que era atípico dela, estampado na face. A expressão de Low ao vê-la? Sua clássica inexpressividade.

— Devia ter removido meu registro do carro. — Mori planejara a frase enquanto aguardava a chegada dele.

Low desviou a cabeça para o lado. Nunca antes lhe foi exigido tanto esforço para conter um sorriso. Para possíveis espectadores, ele estaria lidando com o aborrecimento.

Voltando a encarar Mori, sinalizou com a cabeça para que ela se afastasse. Sentou-se no lugar liberado e colocou as malas em dois bancos à sua frente, onde, ao lado, também estava a bolsa da jovem. Após fechar a porta, cruzou os braços e encarou o teto do veículo.

Passaram dez segundos. Mori o observava com a expectativa de uma resolução.

— Não vou perder meu tempo enxotando você. — Foi o que ele disse. — No lugar aonde vou, haverá coisas das quais não vai gostar, coisas que não vai aceitar, mas terá que se conformar com elas. Maurício não teria essa capacidade; e quanto a você?

Ela hesitou por um breve momento, porém decidira que, se dependesse dela, chegaria ao fundo daquela história.

— Vai me contar mais segredos? — Tinha a sensação de que estava vivendo em um dos últimos livros que leu, aquele onde o code do personagem principal foi clonado. As histórias eram bem diferentes, entretanto continham a similaridade de uma personagem vivendo com uma segunda identidade. Mori vibrava pelo êxtase de fazer parte de uma história oculta. Desejava ser durona e decidida, como a policial do livro.

— Segredos que podem causar sua prisão ou execução.

— Ok. Eu tenho essa capacidade. — Por dentro, seu bom senso gritou até destruir os pulmões e explodir em chamas.

— E, dependendo da situação, talvez nunca mais possa voltar para casa e precise viver como uma uncoded.

— Pare de tentar me fazer desistir! — Porque, se continuasse, quem sabe se não conseguiria?

— Só quero deixar claro que não a estou forçando a nada. — E lá estava o sorrisinho de canto, divertindo-se com o medo dela. — Mas se está disposta a trocar a sua vida pela curiosidade...

— Quero saber como essa história termina. Aliás, também quero saber como começa. — Seria incapaz de ir embora e fingir que os últimos dias foram criados por sua imaginação. — Não se preocupe comigo, eu não sei mesmo o que fazer da minha vida... quem sabe não descubro indo com você?

Ele exibiu um sorriso sincero — um milagre, vindo dele —, enquanto uma satisfação oculta se deleitava por seus palpites corretos. Acionou o painel do carro e definiu a rota.

— Para a casa do Dr. Ray? — Mori questionou, desconhecendo o caminho.

— Buscar o Elliot — ele respondeu, afirmando com a cabeça.

O veículo começou a se locomover.

— Ele já sabe do funeral?

Segundo o plano, doutor Ray seria atraído para um funeral fictício em busca do sangue de Low... ou de elixir, algo que ainda era uma incógnita para a jovem, mas que ela pretendia descobrir o que era — e isso só seria possível se acompanhasse Low; se voltasse para casa, suas chances de preencher aquelas lacunas enigmáticas não existiriam.

— Meu tio gravou um áudio para ser enviado a ele — disse Low, o semblante reassumindo a seriedade. — Como existem ligeiras diferenças em nossas vozes, esse foi um último favor dele.

Ele pegou dois celulares de uma das malas e segurou-os à sua frente, um em cada mão. Mexeu em um aparelho de cada vez, preparando-os para o que viria a seguir.

— Não faça nenhum som — disse a ela, os olhos ainda focados nos aparelhos.

Pressionou um último comando no celular da mão direita, mantendo próximo ao da esquerda.

— Você deveria ter agido com mais cautela. — Ao ouvir a voz do Dr. Crow, Mori cerrou os punhos e apertou os lábios com força, lembrando que não podia emitir sua desolação. — Ele ficou obcecado em atrapalhar seus objetivos... Sabe como ele é impulsivo...

A face de Low exprimia alegria. Todavia, não era uma alegria pura, como um algodão macio; não, era uma alegria que pingava esgoto pelas beiradas.

— Ele encontrou uma forma de fazer isso... — A voz do doutor seguiu mais emotiva, continuando somente após um suspiro forçado: — Eram amostras que você queria?! — A emoção se fundiu com a dor para formar um tom raivoso. — Então venha buscar, porque nunca mais irá consegui-las! A sua fonte esgotou!

Ao terminar de reproduzir a gravação, Low enviou a mensagem de voz pelo outro celular.

— Adorei o drama no final. Ficou excelente — ele comentou, como se opinasse sobre um filme.

Agora, Mori não tinha dúvidas de que o doutor Crow estivera ciente de todo o plano. Doutor Crow... mesmo que tivesse cometido erros no passado, parecia ter feito tudo o que podia para remediá-los, chegando a ponto de ceder sua própria identidade ao sobrinho. Sabendo desse sacrifício, a atitude de Low a enfureceu. Como ele podia fazer pouco caso — e até rir — daquele que doou sua vida por ele?

— Não tem graça — disse ela, sentindo mais uma vez o pesar pela morte do doutor. — Você usou o seu tio até o final... e ele permitiu... e não sente o mínimo de gratidão?

— Deveria sentir? — O sorriso não esmaeceu. — Ele apenas me compensou pelos meus serviços.

Mori não conseguiria rebater a resposta. O cenário era o mesmo de quando quis insistir que Low entendesse como tinha a magoado. Da mesma forma, ele não entenderia agora por que deveria se sentir grato ao tio.

O silêncio curto que se seguiu foi interrompido pelo celular tocando. O nome "Ray" apareceu na tela.

— Mais rápido do que eu esperava — disse Low, exibindo uma animação amedrontadora.

A jovem mirou o objeto como se esperasse que ele mordesse a mão de Low para fugir. A música lenta e tranquila, em notas de piano emanadas pelo aparelho, contrastava de forma bizarra com a situação. Permaneceram em silenciosa expectativa enquanto aguardavam o fim do concerto, no entanto a música recomeçou tão logo terminara.

— E agora... — Low complementou, desligando o aparelho.

Várias perguntas assaltaram a mente de Mori. Estava farta de questões sem respostas, portanto ansiava pelo momento em que poderia contemplar a verdade com seus próprios olhos.

— Tem certeza de que ele virá? — Elegeu essa dúvida como a mais urgente. Se o Dr. Ray não saísse do laboratório, precisariam de outro plano.

— Ele não tem escolha. Não pode solicitar mais elixir ao governo porque usou praticamente tudo em experiências ilegais. — Ele respondeu enquanto guardava um dos celulares de volta na mala.

— Que experiências ilegais?

Low não se apressou em se endireitar no banco, virar a cabeça devagar para ela e repuxar um canto dos lábios. Não via mais necessidade de guardar alguns segredos, todavia, se respondesse a pergunta, daria uma brecha para que começasse um questionário. Ainda planejava o que, e como, deveria contar alguns fatos. Ainda estava acostumando-se com aquela situação... inusual.

Teris só desejava voltar para casa. Para a casa da mãe, sendo mais específica. Não aguentava mais aquele manicômio claustrofóbico. Tinha vontade de quebrar todos os vidros das prateleiras, picotar cada um dos papéis na mesa e depois virá-la. Se ser uma alquimista significava trabalhar em um lugar como aquele pelo resto da vida, então ela preferia morrer.

Detestava pessoas dramáticas, como Estela, o que a fazia detestar a si mesma por ter pensamentos tão idiotas. Ela era idiota. Todos eram idiotas. Aquele maldito elixir à sua frente era idiota! Raymond deixara uma quantia tão ridícula para ela — 1/3 de um copo pequeno —, que não poderia desperdiçar com testes. Como ela aprenderia a usá-lo sem testar seu funcionamento?! Toda informação teórica era inútil porque, ao que se sabia, o elixir podia produzir resultados inesperados e, às vezes, até únicos.

Queria que o pai estivesse ali, no lugar dela. Se ele queria tanto a influência dos alquimistas, que viesse ele mesmo em vez de jogá-la naquele porão. Ou Estela. Por que ela tinha que ter uma irmã tão burra?

Estava exausta de ficar sentada ali, encarando aquele líquido vermelho e nojento, sem saber por onde começar. Sua face estava dolorida após forçar um misto de ódio e indignação por tanto tempo em uma expressão. Os olhos ardiam com lágrimas contidas e os lábios ficaram insensíveis com os dentes superiores cravados neles por tanto tempo.

De repente, sua atenção foi requisitada pelos passos apressados de Raymond caminhando pelo corredor, onde ela pôde vislumbrá-lo ao passar por sua porta. Parecia furioso, o que não era uma grande novidade; os testes realizados em Elliot não surtiram o resultado que ele almejava.

Ouviu os passos até morrerem de vez; quem dera Raymond tivesse o mesmo destino. Por um segundo, considerou fechar a porta — assim evitaria ver a cara de besta dele quando retornasse —, contudo não faria isso. Os recintos ali embaixo já não tinham janela, se fechasse a porta, aí sim, ela se sentiria como uma das cobaias loucas presas nos quartos.

— Tinha razão, estimada irmã, o medo se escondeu.

O harmínion olhava para o céu. Ao seu lado, a estimada irmã. Ao seu redor, sons muito mais nítidos do que antes, incluindo barulhos desconhecidos que um dia foram inaudíveis. A brisa nunca o acariciou com um toque tão gentil quanto naquela noite. E ela contava histórias! Carregava mistérios de longe, que eram traduzidos por seu olfato. Agora, quando as folhas das árvores se agitavam para permitir a passagem do vento, era possível distinguir a dança de cada uma delas, embora as cores tivessem sumido, unificando-se em uma principal.

Ainda era a mesma floresta, porém em outra noite. A mesma lua cheia, porém diferente. Os mesmos olhos, porém vermelhos.

Os mesmos olhos vermelhos que despertaram em um laboratório desconhecido.

Continue Reading

You'll Also Like

11.6K 2K 32
Nessa releitura do conto clássico "A Bela e a Fera" que se passa em uma pequena cidade de colonização francesa no interior de Minas Gerais, Ana troca...
1.7K 198 23
Aos dezesseis anos, Luana fugiu de Lourinhos, uma pequena cidade no Amazonas, para Cadente, no interior de São Paulo. Tendo um pai alcóolatra desapar...
7.1K 369 4
Depois do escândalo que revelou o verdadeiro responsável pelo incêndio na Fundação Haroldo Santini, Valéria estava finalmente livre para viver a sua...
60.8K 7.5K 42
O fim do Ensino Fundamental é algo lindo. Formatura, festas, amizades que acreditamos que irão durar por todo o resto da nossa vida. O sonho para o E...