Amor Virtual

By miarrossi

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Após a morte do pai, Lara se fechou completamente do mundo. Indo contrariada à escola e vivendo uma vida sem... More

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epílogo
Agradecimentos
NOVA HISTÓRIA PUBLICADA!

s i x t y

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By miarrossi


LARA

É engraçado como as coisas podem, ao mesmo tempo, estar tão iguais e tão diferentes.

Eu vejo isso, tanto na minha vida quanto no ambiente ao redor. Em casa.

Com minha mãe.

Uma vez eu ouvi dizer que, muitas vezes, quando temos uma grande necessidade dentro de nós de presenciar uma mudança acontecendo, tudo o que precisamos é que nosso interior mude. Porque assim, automaticamente, veremos a vida ao nosso redor mudar também. Mesmo ela continuando igual, vamos sentir que está diferente. Vamos sentir que conseguimos aquela felicidade e mudança que tanto desejamos um dia. Porque nós mudamos. Nós éramos a mudança que tanto desejávamos; mesmo sem nos dar conta daquilo.

Hoje, eu sinto um pouco disso. É claro que precisei de uma mudança exterior para que a interior viesse também, mas, penso que minha mudança teria de vir de qualquer jeito em algum momento; com ou sem Logan.

Ninguém pode ficar para sempre parado no mesmo lugar.

Porém, ainda assim, não deixo de pensar em como tudo isso está sendo para a minha mãe. Será que ela enxerga o mundo hoje da mesma forma que enxergava quando meu pai se foi? Sentindo a mesma falta de alegria, a mesma ausência, a mesma indiferença sobre estar vivo ou morto?

Bom, eu me sentia assim. Porque, de certa forma, uma parte de mim também morreu com o meu pai. Aquela parte dependente, que nunca saía na rua sem sua companhia e que precisava dele até para ir na padaria. Aquela parte que tinha medo de ligar para a pizzaria e fazer um pedido, que jamais comprava algo sozinha ou que tinha vergonha de atender a porta. Com a minha mãe obviamente não foi assim, mas, não deixo de pensar em qual parte dela morreu com a morte de papai.

E não deixo de pensar no motivo por ela continuar estagnada. Fechada. Agindo como se eu e ela não precisássemos mais nos comunicar normalmente; mesmo que o luto já dure tanto tempo.

Eu deveria ajudá-la?

Pois não faço a menor ideia de como poderia o fazer.

Jogo minha bolsinha no chão, me preparando para fechar a porta, quando me viro para a rua uma última vez, sorrindo ao ver Logan se preparar para ir embora. Enxergo-o com as mãos no volante pela janela, me observando divertidamente com as sobrancelhas erguidas. Sinto um frio imediato na barriga... vendo o modo como ele parece querer ter certeza de que cheguei bem antes de ir mesmo embora.

Fica de olho no celular, hein? — disse ele um pouco mais cedo, quando eu me preparava para descer do carro e entrar em casa. — Vou te mandar mensagem de cinco em cinco minutos pra ter certeza de que tá tudo bem.

É esse tipo de coisa que não sai dos meus pensamentos; o tipo de coisa que eu posso ficar relembrando antes de dormir com um sorriso no rosto. Uma frase simples, mas que consegue mostrar a importância que ele tem por mim. Que mostra que, o tempo todo através de um chat de mensagens, eu tenho ele comigo. Ao meu lado.

É consolador... mesmo que alguns pensamentos intrusos e terríveis insistam em me perturbar dizendo que esse tipo de coisa não dura.

Minha barriga ainda parece cheia de borboletas quando fecho a porta, o frio de casa me invadindo junto do silêncio. Tudo está no lugar, do jeito que estava quando eu saí. Mas um cheiro, leve e suavemente incômodo, revela que minha mãe está em casa.

E que não está bem.

Ela nunca teve o costume de fumar, as bebidas e os remédios sempre foram um suporte mais duradouro. Porém, quando minha mãe pega num cigarro, é porque as coisas realmente estão ruins. A última vez que ela fez isso foi quando estava preocupada que fosse demitida, numa época em que nem possuía uma posição tão alta como hoje.

Tiro os sapatos, sentindo meus pés se aliviarem ao abandonar as sandálias perto da porta, e começo a caminhar pelo piso gelado conforme o cheiro de fumaça aumenta. Onde ela pode estar? Sinto meu estômago embrulhar ao pensar em chegar mais perto desse cheiro horrível.

— Já chegou?

Dou um pulo de susto, me virando para a cozinha. Minha mãe está empoleirada na janela, contemplando a vista lá fora ao segurar o maço de cigarro entre os dedos. Sei que o seu "já chegou" foi puramente sarcástico e, mesmo já estando acostumada com isso, não deixo de me sentir meio mal pelo tom frio de sua voz.

— Já. Não podia demorar muito mais depois daquela sua ligação estranha — eu respondo, do modo mais neutro que sou capaz, enquanto me aproximo dela. Tenho medo do que vem pela frente. — O que aconteceu?

Ellen Becker, porém, solta uma risada fria, ainda com os olhos lá fora.

— O que você acha? Apenas recebi uma ordem de uma visita indesejada. Te falei pelo telefone.

— Quando eles vão vir? — eu me apresso em perguntar, ignorando suas farpas.

— Amanhã cedo — responde ela secamente. Então apaga o cigarro e desce da janela, sem olhar para mim em nenhum momento ao pôr uma mexa de cabelo atrás da orelha e caminhar até o balcão da cozinha, pegando seu celular. Só então noto que seus olhos estão vermelhos.

Ela.. ela chorou? Ou será que é apenas o efeito de algum remédio?

Fico parada ali, de braços cruzados, desejando ir para o meu quarto imediatamente colocar um pijama quente.

— Da próxima vez que eu pedir para vir para casa, venha. — Ela continua falando daquela forma, como uma chefe dando uma ordem ríspida para um funcionário. — E pelo menos me conte se tiver se tornado uma adolescente como essas aí. — Percebo sua fúria apenas pelo modo como minha mãe clica com força na tela do celular, a unha grande fazendo um barulhinho desagradável contra o vidro.

— Essas aí? — eu indago timidamente, sem deixar faltar a confusão e oposição que senti com sua fala.

Vejo tarde demais que falei a coisa errada, pois, no mesmo instante, ela despeja o celular com força no balcão e se vira para mim, colocando uma mão na cintura.

— É, Lara, essas aí. Essas adolescentes sem-vergonha que não fazem nada na escola além de vadiar. Essas adolescentes que aparecem grávidas da noite pro dia após mais uma festa irresponsável. Que ignoram a ligação dos pais e preferem encher a cara e se esfregar num adolescente qualquer ao invés de ir para casa. Essas adolescentes, Lara. Conhece alguma?

Ela mantém aquela porcaria de classe ao despejar essas besteiras na minha cara, me encarando com a testa arqueada como se tivesse dado o maior discurso do século. E eu só consigo encará-la, completamente abismada com as coisas que ela tem coragem de me dizer. É engraçado, até, o seu dom de manipulação, a forma como ela me olha tão intensamente que me faz querer me fechar num casulo de vergonha pelas minhas ações.

Eu passei dois anos sem sair de casa. Vendo-a jogar indiretas para cima de mim de que sou uma adolescente patética que nunca sai. E agora que eu fui para uma única festa, ela vem com o perfeito discurso de que sou uma irresponsável que não se importa com a mãe. De que sou uma péssima adolescente. Um exemplo terrível para sei lá o quê.

Meu Deus.

Ela sempre foi assim, ou será que está piorando a cada dia?

— Bom, mãe, eu espero que você tenha marcado uma consulta com a terapeuta pra mim — eu digo, enfim, no tom de voz mais baixo e calmo que sou capaz de fazer. — Porque, sinceramente, eu acho que você também deveria ir. Está precisando de muito mais ajuda psicológica do que eu.

Não dou chance para que ela responda quando me viro e marcho para o meu quarto, a tristeza e raiva me invadindo. Ainda estou curiosa para saber sobre os detalhes da visita dos meus avós amanhã, o horário ou se há algum motivo específico, mas me forço a não falar mais nada com minha mãe por hoje.

E, como eu a conheço perfeitamente, não ouço mais um "a" de Ellen Becker quando me dirijo ao meu quarto e prometo ficar lá pelo resto da noite.

[...]


— Foi isso, mal teve diálogo direito... — eu concluo, me mexendo debaixo dos cobertores ao pressionar mais o celular contra o ouvido. Embora a situação devesse me deixar exatamente o contrário, sinto uma felicidade e conforto imenso me dominando por estar assim, mergulhada na escuridão do quarto, aninhada na cama e conversando com Logan. Contando a ele sobre a estranha conversa que eu e minha mãe tivemos. — E eu ainda tô tentando processar aquela frase estranha sobre adolescentes irresponsáveis. Você entendeu alguma coisa?

Sinceramente, não — responde Logan apenas, me fazendo rir. — É muito estranho, na verdade. Não dá pra saber se ela tá tentando ser uma mãe responsável ou se só quis falar alguma coisa. Quem saiba ela esteja com trauma por ter engravidado cedo? Talvez não queira que o mesmo aconteça com você.

Encaro o teto ao pensar no assunto.

— Não sei... meu pai foi bem paciente sobre isso, pelo que eu saiba. Não acho que ela esteja com um trauma ou coisa parecida. O que deixa tudo ainda mais estranho.

Solto um suspiro ao terminar de falar, vendo que realmente não encontraremos uma resposta fácil sobre essa coisa toda.

Bom... então é melhor esperarmos até amanhã pra ver no que tudo isso vai dar — diz Logan, me deixando contente por saber que agora também tenho alguém com quem desabafar. A vida pode mesmo mudar. — Você... tá bem mesmo? Não entendi muito o que rolou lá na festa. Por que resolveu se afastar.

Ah... acho que foi só uma insegurança do momento — eu comento timidamente, analisando uma mexa de cabelo minha mesmo na escuridão do quarto. — Sabe, aquele farol de perigo que nos pede para fugir. Talvez... talvez eu não tenha achado que era capaz de enfrentar até o fim. — Ou talvez fosse o contrário, e eu tivesse sentido uma super confiança que me dizia que eu era capaz de andar sozinha num local ameaçador, eu completei mentalmente. Ah, surpresa! Eu não consigo. Ainda sou totalmente dependente de você, Logan. Legal, né? A história está se repetindo. Que alegria.

Lara? Tá aí?

Hum? Tô sim, desculpa. Deixei minha mente viajar.

Me sinto mal imediatamente pelos meus pensamentos sombrios. Que besteira. Estou exagerando. A história não está se repetindo, e eu posso muito bem ser independente com Logan. Posso fazer os dois. Claro que posso. Uma situação ruim não define quem somos.

Acho melhor eu me lembrar de falar disso na terapia.

Será que terei coragem?

Preciso ter. Caso contrário, as paranóias irão me sufocar até que tenham me dominado por completo.


[...]

Acordo me sentindo cansada. Me espreguiço na cama, fazendo uma careta ao ver o sol batendo em meu rosto. Devo ter esquecido de fechar a janela ontem à noite. Passo o olhar pelo quarto, lembrando do tempo que fiquei conversando com Logan durante a madrugada.

Foi divertido. Falar com ele é sempre divertido. Como uma daquelas companhias das quais não nos cansamos, não importa o tempo que passemos com elas. Como se os assuntos simplesmente surgissem, tão aleatoriamente quanto possível.

Sorrio sozinha ao pensar nisso. Então sinto um aperto no peito, lembrando de quando fiquei desacompanhada na festa.

Queria tanto que as coisas dessem certo. Mas temo que ainda seja preciso alguns passos para que isso possa acontecer.

E eu já tenho idade o suficiente para saber lidar com meus problemas. Para ter paciência quando a situação pede.

Ouço o som de alguma coisa batendo, tão alto que dou um pulo na cama; o som faz o chão do meu quarto tremer. Desconfiada, levo apenas cinco segundos para ter coragem de levantar da cama e me arrastar pelo quarto, ainda com a mente meio estranha por ter acabado de acordar, conforme abro a porta e sigo para fora.

Outro barulho se repete, tão alto quanto o anterior. Estremeço ao caminhar pela casa, identificando a origem de tudo isso quando avisto minha mãe na sala de estar, agarrando um pufe aveludado pelos braços pouco antes deste despencar no chão.

Dou outro pulinho, fazendo uma careta involuntária pelo desconforto do som alto. Então abraço a mim mesma, sentindo frio, enquanto noto os outros dois pufes já despencados no chão. Minha mãe está... tentando fazer faxina. Mas imagino que esteja tão nervosa com a visita de meus avós a ponto de quebrar todos os móveis no processo.

Eu quase poderia rir se não sentisse aquele nervosismo no peito também. Minha mãe pode ter os motivos dela para evitar essa visita, mas eu tenho os meus.

Não os vejo desde aquela discussão terrível. Quando minha avó despejou tudo na cara de minha mãe, dizendo que a filha dela estava naquele estado por sua culpa. Me senti tão humilhada... tão humilhada por meus avós me verem daquele jeito. Minha mãe podia ser boa em disfarçar a dor, mas eu não era nem metade tão habilidosa quanto ela.

— Tá tentando organizar as coisas ou quebrar a casa? — eu falo, o mais tranquilamente que posso, conforme caminho até o sofá (o único item ainda não atingindo pelas garras de minha mãe) e me sento na ponta.

Ela me lança um olhar afiado, a respiração ofegante ao ajeitar o pufe caído. Seu cabelo está bagunçado, uma completa raridade, e ela ainda veste o robe com que provavelmente dormiu. Acho engraçado, e talvez até meio triste, notar que nesse estado ela fica um pouco parecida comigo. Um alívio e também uma frustração.

— Devia ter chamado a Anne pra vir aqui limpar — resmunga minha mãe, empurrando os pufes com os joelhos até que estejam na posição inicial novamente, nos cantos da sala. Fico tentando entender se ela já limpou o chão ou se apenas desistiu, mas resolvo ficar quieta. — Isso vai ser um desastre. Já até posso prever.

— E por que você não cancelou dessa vez? — eu indago, me ajeitando melhor no sofá e abraçando meus joelhos sobre o móvel. — Não seria a primeira.

Ela olha para mim, daquele jeito raro em que consigo enxergar uma conexão entre nós. Antiga e incomum, como na época em que meu pai nos forçava a assistir algum filme juntos, sentados sobre o tapete, até que os três estivéssemos rindo e nos empurrando; como se as discussões e as diferenças simplesmente deixassem de existir por um instante. Momentos que, depois que meu pai resolveu partir dessa história, foram ficando cada vez mais inexistentes.

Normalmente, a mãe costuma ser a âncora de uma família, pelo menos baseado no que eu vejo por aí. Mas, no nosso caso, era o contrário. Meu pai era a âncora. Era ele quem nos unia, quem nos tornava próximos. Talvez porque eu e minha mãe fôssemos diferentes demais para conseguirmos ser uma família sozinhas.

— Porque não posso ficar adiando isso pra sempre — responde ela por fim, já de costas para mim ao caminhar em direção à cozinha. — Tem coisas que, uma hora ou outra, você tem que enfrentar. Mesmo que tenha medo demais de si mesma para isso.

Fico ali, olhando para o chão, enquanto sua frase misteriosa reverbera em minha cabeça por todo o tempo em que minha mãe volta a arrumar a casa.


[....]



A campainha toca três horas depois.

Respiro fundo, ajeitando a postura, antes de levar a travessa de lasanha às pressas para a mesa. Então dou um passo para trás, observando o resultado final.

Ficou tudo muito bem colocado. Eu e minha mãe mal nos falamos durante o processo, que incluiu corridas desorganizadas de talheres e Ellen Becker trocando os pratos pelo menos umas três vezes até encontrar algum "decente". A lasanha foi comprada, mas de um restaurante muito bom da avenida principal. É uma comida bem profissional, pelo que eu saiba.

Minha mãe aparece na porta do quarto dela, colocando algum sapato caro de salto, enquanto me observa parada em frente à mesa.

— O que você está esperando? Vai atender a porta!

Arregalo os olhos imediatamente.

Como é? Eu pensei que você fosse atender!

Ela olha pra mim daquele jeito nervoso, apoiando-se na soleira da porta enquanto estica um pé no ar para enfiar a sandália.

— Eu ainda não estou pronta. Agora vai! — pressiona ela mais uma vez, assim que a campainha toca de novo.

Eu bufo, lançando a ela um olhar nervoso antes de correr até a porta. Droga. Não quero atender. Não quero nem estar aqui, fingindo cumprimentos que vão me deixar com as bochechas doendo de tanto sorrir falsamente, ainda que não goste de ter algo em comum com minha mãe. Vai ser um dia muito difícil de ser enfrentado.

Respiro fundo, sentindo a mais grande das perturbações, antes de enfim girar a maçaneta.

Dois rostos altos me encontram, com olhos grandes e julgadores colidindo com os meus.

— Lara, oi! — exclama minha avó, carregando uma embalagem, conforme sorri e se aproxima de mim, a teste levemente franzida de preocupação ao me observar. Como se tentasse encontrar os sinais de uma má situação. — Como você está, querida?

Ela me abraça, o cheiro forte de spray pra cabelo vindo de encontro ao meu nariz.

— Estou bem, e vocês? Como foi a viagem? — eu pergunto educadamente, pegando a embalagem pesada de suas mãos ao abrir um sorriso para os dois.

Dou um passo para o lado, permitindo que meus avós entrem, por mais que eles passem tempo demais limpando os pés no tapete e começando um relato sobre os restaurantes de beira de estrada.

— ...mas por sorte não choveu durante o caminho. — Ela faz uma pausa, olhando ao redor. — Tudo bem por aqui? Cadê sua mãe?

Me concentro em fechar a porta devagar, sentindo que a vasilha pesada que eles trouxeram pode cair a qualquer momento da minha mão. Será que é alguma sobremesa? Pois consigo sentir que ainda está quente.

— Ela já vai vir. Podem se sentar, vou levar isso pra cozinha rapidinho.

— Não coloque na geladeira, senão esfria — adverte minha avó, já dirigindo-se para a mesa. Meu avô permanece quieto conforme me afasto, apenas sussurrando algo baixinho para ela e dando uma olhada em seu relógio caro de pulso.

Solto um suspiro aliviado ao soltar a vasilha sobre o balcão, agradecendo por ter mais alguns minutos sozinha.

Pelo menos até minha mãe aparecer.

Eu ainda fico surpresa quando os vejo. Principalmente por não termos tanto contato. Em comparação com a maioria das famílias, meus avós são relativamente jovens. Meu avô tem alguns cabelos brancos já aparecendo, mas, de resto, eles não aparentam ter uma neta de dezessete anos. O que não é novidade, já que nem minha mãe aparenta ter uma filha de dezessete anos.

E ela claramente herdou o gosto pelas vestimentas chiques de meus avós. Eles parecem um casal de meia-idade rico que vai para o shopping às terças-feiras à tarde. E, para piorar, não demonstram medo quando se trata de dar pitaco na vida da minha mãe.

Ou na forma como ela me cria.

Me viro quando ouço os saltos de Ellen Becker pelo chão, indicando que ela está vindo. Então retorno à mesa, sabendo que meus avós vão ficar um bom tempo concentrados nela antes de voltarem a atenção para mim.

Por que mesmo eu não convidei Logan para estar aqui?

Já que, sinceramente, eu não sei se irei suportar essa visita até o fim.


[...]









[...]


Quase já me esqueço completamente do ambiente tenso em que estou com as mensagens que troco com Logan. Tenho o celular meio escondido embaixo da mesa, e neste momento me encontro mordendo os lábios para esconder um sorriso ao ler sua última frase.

Se já não bastasse o fato dele ter ficado preocupado comigo simplesmente por eu ter usado uma frase pesada como brincadeira, Logan ainda me chama de Sua Lara. O frio na barriga que me atingiu ao ler isso foi sensacional. É como se meu corpo todo vibrasse de adrenalina. Nossa... se eu soubesse que me apaixonar por alguém fosse tão bom assim e não apenas um exagero dito por escritores, já teria corrido atrás disso há muito tempo.

Meu pai ficaria muito feliz por mim.

E eu ficaria muito feliz de poder falar sobre isso com ele.

Ainda estou vibrando nessas sensações boas, com a cara enfiada na tela, quando uma voz aguda quebra minha atenção.

Lara!

Levanto a cabeça tão rápido que meu cabelo voa pelos ares.

Arregalo os olhos entre os três rostos que me encaram. Ai, droga. Perdi alguma coisa.

— Oi, desculpe — eu digo rapidamente, me ajeitando na cadeira.

Minha mãe revira os olhos e bebe mais um gole de vinho. Meu avô pigarreia e volta a comer.

E minha avó permanece me encarando.

Seu olhar é desconfortável, mesmo que ela sorria um pouco. Seus olhos parecem enxergar até o fundo da minha alma.

A vontade de correr daqui retorna tão rápido quanto tinha partido.

— Como anda a vida por aqui, Lara? — pergunta minha avó enfim, a voz neutra e formal. — Se acostumou com a cidade?

Já estamos morando aqui há bastante tempo, e ela sabe disso. Então sei o que a pergunta realmente quer dizer. Você finalmente está feliz aqui? Ou permanece tão triste como antes?

Me acostumei, sim — eu respondo com um sorriso forçado, juntando as mãos sobre o colo. — É uma cidade legal.

Ela aumenta o sorriso, embora ele não chegue até os olhos.

— E tem bastante amigos? Ou ainda prefere a cidade antiga quanto a isso?

Meu sorriso diminui quando desvio o olhar.

— Não é como antes, é claro, mas o pessoal também é bacana.

Espero que isso seja o suficiente para ela, pois, sinceramente, não tenho mais interesse em ficar falando sobre a minha vida. Ainda mais se referindo à minha antiga vida, o que ainda é um tema delicado para mim. Até porque, posso estar numa fase nova agora, posso estar diferente, mas isso não quer dizer que esse assunto ainda não me afete. Não quer dizer que de vez em quando eu não feche os olhos debaixo do chuveiro e sinta o peito apertar lembrando de tudo.

Não quer dizer que eu esqueci das minhas antigas amigas. Pois não, não esqueci. E não importa quantas pessoas eu conheça daqui pra frente, elas jamais serão substituíveis. Nem elas nem a vida que eu tive com elas.

Uma vida que, por sinal, eu quero sempre me lembrar. Uma vida que não importa quanto tempo passe, estará sempre guardada na minha memória como uma época especial. Uma época que mudou tudo.

Vai ser sempre existir uma barreira entre lá e cá. O Antes e o Depois. A vida tranquila e feliz que um dia eu tive e as dificuldades que vieram e mudaram tudo.

E, agora, uma nova separação na barreira de cá. Que foi quando Logan chegou.

Que foi quando eu vi que talvez valesse a pena acordar.

— Bom, menos mal, então — suspira minha avó, cruzando as mãos sobre a mesa ao ajeitar a postura. Mesmo que eu a veja poucas vezes, percebo pelo seus gestos que algo sério vem aí. E acho que não estou errada quando ela olha de modo severo para minha mãe. — Então, qual é a desculpa da vez por ter ignorado minhas ligações? Estou tentando marcar um encontro há meses, Ellen.

Minha mãe permanece calma ao apoiar os antebraços na mesa e girar o vinho dentro da taça.

— Eu estava ocupada. Muito trabalho, sabe.

Minha avó revira os olhos.

— Você tem muito trabalho desde que engravidou. Isso não é novidade. Por que ignorou minhas ligações?

— Eu não ignorei, mãe — responde minha mãe com tédio. —  Tinha deixado pra retornar depois, mas acabei esquecendo. Não é nada dramático.

— Esqueceu durante 3 meses? — rebate minha avó de ímpeto. Engulo em seco para evitar que uma risada escape. — Isso não é desculpa, Ellen. Eu precisava ver como vocês estavam.

— E precisava por quê? — Minha mãe aumenta o tom de voz, finalmente encarando-a nos olhos. — Pensei que você já tivesse entendido que eu tenho trinta e três anos de idade e sou dona da minha própria vida. Não preciso que você fique dando pitaco.

— Então foi por isso que mudou de cidade? — Minha avó não parece mais gentil ao contestar de súbito; arqueando a testa. — Pra ficar longe dos seus pais?

— Sim, mãe, foi exatamente por isso! — Ellen Becker já parece claramente ter perdido a paciência ao apoiar as mãos com força na mesa. — Mudei de cidade pra finalmente escapar dos meus pais egoístas e narcisistas; e não porque o meu marido morreu.

Um silêncio ensurdecedor se instala na mesa. Estou em dúvida sobre permanecer de cabeça baixa e fingir que sumi dali ou encarar minha mãe, assustada pelo rumo que isso tomou. Por fim, a segunda opção acaba me ganhando.

Faz meses que não a ouço falar dele. E, por mais que nem sempre apoie as atitudes de meus avós, fico feliz por eles ao menos causarem alguma emoção em minha mãe. Por serem os únicos a terem coragem de arrancar dela o que eu jamais teria.

Quando vejo que isso pode acabar de forma ruim, eu resolvo falar:

Parem, por favor. — Minha voz acaba saindo mais alta e firme do que eu planejava. Minha avó me olha de imediato, surpresa. — Isso não vai adiantar em nada. Já tivemos essa conversa milhares de vezes e eu estou cansada de ver tudo se repetindo. Parem com isso, porque senão vamos continuar tão afastados como vocês reclamam que estamos. — Não era minha intenção, mas acabo encarando minha vó fixamente com essa última frase. É ela quem mais precisa ouví-la, afinal. — Parem. Vamos ao menos fingir ser maduros uma vez.

Outro silêncio surge. Noto meu avô me encarando, com uma expressão intrigada.

Por fim, ele diz:

— Muito bem, Lara. Muito bem. — Ele assente várias vezes, em provável concordância com o que eu disse. — Você está certa. Essas duas discutindo de novo não vai adiantar em nada. Por isso, o que acham de irmos logo para a sobremesa?

Minha mãe nem pensa duas vezes antes de jogar o guardanapo na mesa e correr ir buscá-la para escapar dali. Aproveito a deixa também para murmurar um "com licença" a eles, rumando o mais rápido possível ao banheiro enquanto pego meu celular.

Preciso contar o que aconteceu a Logan.

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