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Bato duas vezes na porta amadeirada de correr, subi as escadas para o terceiro andar do prédio aonde costumava passar minhas noites trabalhando pensando que não poderia me sentir mais nervosa e com mais medo do que já estava entretanto me enganei, esses sentimentos se multiplicaram ou até triplicaram trazendo com eles as reações comuns que causam pelo meu corpo assim que encarei aquela porta, mas suspirei fundo e fechei os olhos enquanto distribuía duas leves batidas sobre a mesma.

— Cherry, quanto tempo não a vejo fora do dia de seu pagamento. Deve ser um assunto sério. — A mulher ruiva de meia idade indaga abrindo um de seus sorrisos cativantes.

—Um pouco, sim. — Assumo baixo.

— Entra. — Me dá espaço e adentro o seu escritório em passos pequenos porém rápidos. — Senta, quer beber algo? Água ou um café? — Oferece enquanto eu me sentava em uma das duas poltronas disponíveis em frente à sua mesa.

— Não obrigada. — Sorrio sem mostrar os dentes.

— Certo, sobre o que iremos tratar hoje? — Indaga curiosa se sentando ao outro lado da mesa em minha frente.

— Bem, hm, aqui é muito organizado com tabelas e tudo é praticamente contado e recontado 'pra garantir que não ocorreriam erros. — Enrolo suspirando. — Acho que gostaria de saber disso antes, 'pra colocar alguém legal no meu lugar. — Falo de uma vez sentindo minhas mãos tremendo.

— Colocar alguém no seu lugar? Querida? Desculpa eu não entendo. — Seu sorriso contido desaparece a medida que suas sobrancelhas se franzem.

— Estou planejando sair do Call 666. — Repito o que me assombrava a algumas semanas.

Essa decisão foi a segunda mais difícil que tomei na minha vida toda, a primeira foi ter peito o suficiente para sair da casa dos meus pais sem dinheiro ou lugar onde pudesse ficar só com uma mochila nas costas, ser uma garota de programa poderia e tem todos e diversos defeitos e desvantagens mas dentro da realidade onde me encontrava era o que tinha em minhas mãos.

Quer dizer, honestamente, Maggie apareceu como anjo no momento que mais precisei e perguntou se topava qualquer coisa, disse sim, afinal estava com fome e o inverno se aproximava me fazendo necessitar de roupas mais quentes ou seja, me encontrava em completo desespero. Ela me explicou paciente todas as regras e condições, foi gentil e me deixou ganhar um pouco mais do que as outras garotas que começaram junto comigo para que pudesse me estabilizar.

Em menos de um mês estava no trailer o decorando, com conforto e comida das quais quisesse já sabendo que teria dinheiro para comprar roupas, joias e cosméticos caros logo no próximo mês. Naquele momento pensei ser o que queria e iria fazer para o resto da minha vida, ao mesmo tempo que era difícil era rápido, a cada transa era dinheiro que entrava e dinheiro alto.

Óbvio que no inicio não enxergava a dificuldade era até legal levar uns tapas ou puxões de cabelos de vez enquanto, mas estava zerada, os meses se passaram, não era mais novidade mas também não era tão ruim assim. E então, conheci Billie, ela me fez sentir como se fosse o inicio novamente. Foi gentil, doce e me tratou como uma mulher equivalente a ela e não inferior. 

E ficamos juntas por longas semanas até perceber que não conseguia ficar com mais ninguém como fazia anteriormente, a queria, queria ser exclusivamente dela. Achei que estava perdida quando entrei para a universidade e conheci minha colega de quarto, naquele momento acreditei que estava realmente perdida entretanto, dali Eilish não buscou por Cherry com tanta frequência quanto antes e desapareceu depois que me beijou na casa de seu irmão.

Era a minha oportunidade, conseguir qualquer emprego que me mantivesse estudando e largar aquela vida, sabia que séria complicado, seriam bons dólares a menos entretanto não precisava de todo aquele dinheiro, não se tivesse Billie.

— Por que? Estamos indo tão bem, seu rendimento é ótimo. — Sorri confusa.

— Lembro que já tinha a falado sobre como fazer isso seria temporário e que usaria o Call 666 apenas como um ponta pé inicial. Bom, demorou um pouco mais do que imaginei, a vida é complicada mas acho que esse é o momento. Preciso apenas conseguir um emprego que continue bancando algumas poucas coisas e irei seguir em frente. — Conto devagar. — Queria que soubesse que sou grata por me ajudar, por aceitar minhas condições iniciais e me ceder aquela ajuda logo de cara, não conseguiria coisas que tenho atualmente, não conheceria pessoas que conheço. Mas acho que minha partida é agora. — Falo mordendo meu lábio inferior nervosa.

— Charlotte espero que saiba que trabalhar como as pessoas fazem, saindo cedo da manhã e voltando apenas ao anoitecer de segundas à sextas e as vezes aos feriados não é tão fácil como retratam filmes e seriados. Você trabalha mais, se esforça mais e ganha menos. É trabalhar hoje 'pra comer amanhã. — Diz direta extremamente séria.

— Sei disso, foi algo que também ganhou peso na minha decisão. — Concordo com a cabeça enquanto falava. — Decisão essa que está tomada, pelo que me recordo nas nossas primeiras conversas falamos sobre não ter nenhum tipo de proibição de sair quando quisesse. — Digo.

— Tudo bem. — Suspira passando as mãos pelas madeixas ruivas.— Quanto tempo ainda vai ficar? — Pergunta.

— Acredito que menos de um mês, irei a manter informada. —Concluo levantando. — Obrigada por me receber e ser compreensiva. — Agradeço andando em direção a porta com Maggie logo ao meu encalço. 

— Sem problemas. — Fala baixo e sorri visivelmente sem vontade.

Passo pela porta e assim que Maggie iria a fechar me viro como se estivesse esquecido de algo, e de fato tinha.

— Ah! Os filmes e seriados retratam a prostituição como algo excitante e luxuoso, espero que saiba que também é uma mentira. — Sorrio franca e não espero respostas para seguir o meu caminho.

Fecho a porta do quarto fazendo uma careta percebendo que teria que me arrumar para um cliente. Meu celular toca e sorrio vendo o nome de Billie na  tela do mesmo.

— Lotte, como foi o enterro? — Indaga preocupada.

— Ah, normal. Coisas de enterro. — Dou de ombros mesmo que ela não fosse ver.

— Parece feliz demais. — Estala os lábios do outro lado e não me contenho rindo. — O que foi? — Questiona de imediato séria.

— Estou triste, eu juro, lá no fundo. É só que... Não consigo parar de rir? — Explico confusa. — Estou meio feliz? — Franzo as sobrancelhas começando a rir novamente e Billie me acompanha do outro lado da linha.

— Charlotte você é esquisita. — Ri alto.

— Você não faz ideia. — Rebato. — Estou com saudades. — Admito em um resmungo.

— Também estou, mas olha, daqui um tempo vai ter que me aguentar até nos finais de semana. — Diz animada e sorrio fechando os olhos me jogando na cama. 

— Mal posso esperar. — Sussurro.

Disse à Billie que minha avó havia falecido e que precisaria ir ao seu enterro, disse também que aquela ajuda que minha tia me dava pagando os meus estudos como recompensa por mim cuidar da velha ia acabar e que precisava voltar mais alguns finais de semanas para essa cidade vizinha qualquer que a disse, apenas para resolver mais algumas coisas depois que o enterro acontecesse. E então quando achasse um emprego tudo estaria acabado.

Minha risada em meio a ligação seria algo que me repreenderia isso se não estivesse tão feliz em meio à um velório, ou melhor, nos preparativos de um. O velório de Cherry, para sempre.



Call 666 • Billie EilishWhere stories live. Discover now