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— É o que temos.

— Certamente é melhor do que dormir ao relento. Muito obrigado, meu jovem.

Antony assentiu e fechou a porta do quarto. O cômodo não ostentava luxo algum, mas era suficiente para alguém que não tivesse onde ficar. Uma cama simples de ferro com marcas de ferrugem estava no canto do minúsculo quarto com chão gasto feito de madeira. As paredes, por sua vez, começavam a dar os primeiros sinais de tinta branca descascada e uma pequena janela aberta possibilitava a vista da floresta ao longe.

— Já temos o suficiente para tirar a máscara dele. O que estamos esperando?

— Não me assuste assim, garoto.

Avren estava na janela, esperando pela resposta do homem.

— Não adianta ser precipitado.

— Não é sobre ser precipitado, e sim sobre acabar logo com isso — O jovem retorquiu, franzindo o cenho. — Um homem acabou de pagar para ter o "perdão", quantas pessoas mais vamos esperar que ele roube?

— Não adianta ter pressa. Precisamos de motivos maiores para capturá-lo, não acha?

— O que mais o senhor espera? Eu sei onde ele guarda todas as indulgências e inclusive onde estão as anotações de todos que pagaram o preço absurdo por elas. Não há motivo para ter mais paciência. — Seu olhar logo recaiu nas próprias roupas, seguido de uma careta — E quero me livrar dessa capa branca ridícula o quanto antes.

— Acalme seus ânimos, criança. Como um corvo branco, deveria ser mais dócil e paciente.

— Devo imaginar que o senhor tem algo em mente e que não estou a par?

— Talvez. Agora, volte até Brasjen e continue sendo um pássaro bonzinho até o momento certo.

O garoto revirou os olhos e desapareceu ao ouvir uma batida na porta do quarto, deixando o forasteiro sozinho.

— Pode entrar.

Brasjen estava parado na entrada, com a porta entreaberta. Não havia desconfiado de nada e nem mesmo escutado a conversa, felizmente.

— Em que posso ajudar, Vossa Eminência?

— Me dei conta de que deixei passar um protocolo importante para todos que chegam à cidade.

— Mesmo? — Camilo arqueou as sobrancelhas — E o que poderia ser?

— A confissão, é claro! — Brasjen parecia surpreso pelo outro não saber — Preciso saber seus males para ajudá-lo a encontrar a rendição!

— Oh, como pude esquecer! — O outro deu um tapa de leve na testa — Mas é claro, Eminência. Confessar-me-ei imediatamente.

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Estava voltando para ver o que mais os clérigos iriam fazer quando notei o cardeal mercenário acompanhado do rei — ou melhor, do velho forasteiro — até o interior da igreja. Como o dócil corvo branco que era, é claro que me aproximaria, afinal não perderia a chance de saber o que estava acontecendo e de proteger Lucios caso aprontassem algo.

— Parece que ele está se adaptando a vossa companhia.

— Acho que julguei mal este pequenino. É de fato um corvo diferente.

Fui obrigado a emitir um som de aprovação enquanto Brasjen coçava minha cabeça. Precisei ter um autocontrole fora do comum para não arrancar um pedaço da mão daquele desgraçado e acabar com ele ali mesmo. Minhas garras pediam por seu sangue, entretanto não poderia ceder a esse instinto em prol do plano. Os dois entraram no escritório e os acompanhei, pousando na mesa.

"Camilo" começou a inventar falsos pecados e ocorrências ruins, parecendo arrependido de verdade. Conseguiu até derramar uma lágrima ou outra e acredito ter sido o bastante para convencer o cardeal, que começou a mexer na última gaveta outra vez até alcançar uma folha igual àquela entregue ao comerciante.

— Vejo que o senhor tem alguns pecados para serem perdoados — começou, com o papel ainda em mãos. — Porém, a redenção também tem um preço.

— Acontece que não tenho mais corvos brancos para oferecer, Eminência.

— Podemos acertar isso de outras maneiras. — Brasjen pegou um papel em branco e uma caneta antes de começar a escrever. Não pude ver tudo, mas as palavras "serviços" e "anos" me diziam que estava propondo algo diferente. Quando assinou em um lado da folha, mostrou-a para o rei — O que acha disso em troca da salvação?

— Meus serviços como servo da igreja por alguns anos? Bem, não tenho nada a perder com isso.

— Então temos um acordo. Apenas assine nesta linha e providenciarei a prova incontestável de seu perdão.

Enquanto Lucios assinava, alguém entra. Não era ninguém mais, ninguém menos que Stephen Smerzzio, o Primeiro Cardeal. Seus traços eram de preocupação, porém se tornaram surpresa ao notar minha presença. Primeiro olhou para mim, depois para o outro religioso.

— É um pagamento em troca de um quarto e comida. Me foi concedido por este senhor.

— Brasjen, temo ter que interromper o que está fazendo por um instante. Acabei de voltar do castelo para fazer as orações e tenho notícias.

— O que houve? Algo errado?

— Suponho que devemos conversar sobre isso em particular.

O Segundo Cardeal deixou evidentes as rugas de preocupação e inquietação. O rei fingia ler o papel e eu me mantinha atento à conversa. Brasjen pediu para que o outro esperasse e logo Smerzzio saiu da sala.

— Fico feliz em ver mais um irmão garantindo seu lugar no reino do Nosso Senhor.

— Tudo graças ao senhor, Vossa Eminência.

O velho forasteiro enfim recebeu o mesmo papel que o comerciante e recebeu permissão para se retirar. O Primeiro Cardeal, que estava aguardando do lado de fora, entrou apressadamente.

— E então? O que queria me dizer, Smerzzio?

— O rei faleceu pela manhã.

O verme arregalou os olhos e ficou estático por alguns segundos.

— Tem certeza? — questionou, ainda com a expressão incrédula. — Quando fui vê-lo, ele me parecia bem graças ao chá que aquela rebelde da família Westshine havia dado para a princesa. — Por pouco não avancei nele e cortei sua língua quando falou de Serene.

— Vi com meus próprios olhos o cadáver dele coberto no leito — insistiu o Primeiro. — A rainha e a princesa estavam aos prantos, completamente desoladas, bem como boa parte dos servos. Fui barrado pelos guardas com essa notícia e com muito custo consegui entrar no castelo para ver tudo de perto.

Ainda bem que me mantinha na forma de corvo, pois não conseguiria disfarçar meu espanto.  Então aquela era a parte do plano que eu havia perdido. Uma jogada inteligente, considerando que um dos membros da Igreja já havia acreditado na história e os faria colocar as garras de fora.

— Nunca imaginei que isso fosse acontecer tão breve — Brasjen comentou, parecendo aceitar os fatos. — Imagino que eu deva ir para prestar meus pêsames. Cuide de tudo por mim até meu retorno.

O segui até onde estava o verme de seu filho adotivo, o qual emudeceu completamente ao me ver no ombro do pai. Apesar dos pesares, era satisfatório ver o medo dele. Porém, parou de prestar atenção em mim ao receber a notícia da morte do rei e logo ambos se prepararam para irem até o castelo.

O Último CorvoWhere stories live. Discover now