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 O cheiro de algo sendo queimado começou a me incomodar e acabei acordando, direcionando o olhar para a janela. Vi uma nuvem assustadora de fumaça subindo e gritos vindos da mesma direção de onde ficava a cidade.

— Estão fazendo de novo. Era uma questão de tempo até outro espetáculo daqueles.

Assustei com a voz de Avren, que também olhava pela janela.

— Do que está falando?

— Estão queimando uma "bruxa". Só não faço ideia de quem poderia ser.

— Eu quero ver.

Ele balançou a cabeça em negativa para mim, com o olhar sombrio.

— Não, você não quer. Nenhum ser humano decente deveria estar lá assistindo e muito menos fazendo algo assim.

— Avren, por favor.

— De jeito nenhum. Já presenciei uma atrocidade daquelas e não vou deixar que você se traumatize.

Continuei insistindo. Não sei o porquê, mas queria ver aquilo. Os gritos estavam mais audíveis e tive a impressão de reconhecê-los, por isso nunca ficaria em paz até saber quem estava sendo a vítima. Após muitos pedidos, ele acabou por ceder, com a condição que ficássemos sem chamar a atenção.

Conforme nos aproximávamos, era possível ver a claridade da fogueira e pessoas em volta. No entanto, ainda não conseguia saber quem era a "bruxa". Ouvi alguns sons de oração além dos gritos ensurdecedores e senti um nó na garganta.

Mais alguns passos foram suficientes e desabei de joelhos, sem fôlego, como se tivesse levado um soco no estômago. Avren se abaixou ao meu lado com expressão preocupada, contudo entendeu quando viu quem estava na fogueira.

Jamais tiraria aquilo da cabeça.

Minha mãe estava amarrada a uma tora, com a parte inferior do corpo completamente devorada pelas chamas até os ossos, os quais se tornavam da cor de carvão. A carne que restava era derretida lentamente enquanto a pessoa que sempre cuidou de mim soluçava e gritava, sem chances de escapar. Os clérigos rezavam e meu pai não estava lá. Não era surpresa, visto que ele era cego pelo seu amor à Igreja e se tornou incapaz de entender o mundo ao redor. Desde quando esse pesadelo começou, é como se tivessem trocado meu pai por uma marionete.

Não iria segurar as lágrimas. Ver aquilo doía mais do que meus ferimentos e me culpei por ter deixado isso acontecer e não ter pensado em abrigá-la conosco. Apesar de tudo, ela era inocente, assim como as outras mulheres que passaram pela mesma coisa. Avren tentou me tirar de lá, porém resisti. Não iria embora, por mais perturbador que pudesse ser.

— Serene, não precisa ficar vendo essa atrocidade. Vamos para casa.

— Só vou sair daqui quando a fogueira apagar.

— Não vai ajudar em nada. Por favor, vamos embora.

Fui tomada nos braços e carregada para longe contra minha vontade. Estava fraca de tanto chorar e não enxergava muito além do rosto dele.

— Coloque minha filha no chão.

Reconheci aquela voz imediatamente e passei a odiá-la quando vi o destino de minha mãe. Enxuguei as lágrimas e olhei na mesma direção de Avren. Meu pai nos observava, caminhando até nós. Estava vestido totalmente de preto, com expressão transtornada.

— Tudo isso é culpa sua, Serene Westshine.

— Minha culpa? — Encontrei minha voz sufocada pelo choro para responder — Foi você quem deixou acontecer!

— Ela quebrou a regra de Brasjen e foi te encontrar. Por isso foi classificada como bruxa também e está tendo este fim. — Ele falava de um modo tão frio que me causou arrepios. Nunca o vi daquele jeito — Tudo isso por sua causa, porque cedeu aos encantos do demônio que a tem nos braços neste instante, porque quis se rebelar contra seu noivado. Você é uma desgraça, me pergunto onde erramos.

— Não culpe Serene por uma falha sua.

Fiquei surpresa quando Avren respondeu no meu lugar enquanto mantinha a atenção em mim. Meu pai o fuzilou com o olhar instantaneamente.

— Você errou ao ser tão leal a sua amada Igreja e não dar prioridade para a família. Como pai e marido, deveria ter lutado e protegido sua esposa e filha de todas as acusações. No entanto, talvez esteja pedindo demais de um homem tão cego que aceitou entregar Serene àquele bastardo do filho de Brasjen. — Ele então encarou meu pai — Não importa que me chame de demônio, já ouvi nomes piores, mas não vou aceitar que considere sua filha uma desgraça. Ela é a melhor coisa que você conseguiu fazer e a única razão pela qual eu não te mato aqui e agora.

— Aproveitem seus últimos instantes juntos. E que recebam a misericórdia do Nosso Senhor na hora do julgamento.

— Me poupe de suas besteiras. Pare e pense em tudo o que seu "Senhor" lhe deu até agora. De que adiantou tanta fé? Perdeu sua família em vão.

Meu pai continuou resmungando, mas Avren voltou a caminhar comigo nos braços. Apoiei a cabeça em seu ombro, com uma lágrima ou outra ainda escorrendo.

— Acho que agora sei o que é estar sozinha.

— Você não está sozinha enquanto eu te amar.

Ao chegar à casa de Grethel, ele me colocou de volta na cama, deitando-se ao meu lado dessa vez. Não perguntei e nem relutei, pois tudo o que eu desejava era uma companhia. Estremeci, ainda pensando na minha mãe e senti os braços de Avren ao meu redor, me deixando mais perto.

— Estou aqui para o que precisar.

— E agradeço muito.

O Último CorvoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora