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 Os primeiros raios de sol incomodaram meus olhos e acabei despertando. Não sabia quando ou quanto tinha dormido, mas não importava. Me permiti comer alguns morangos das proximidades e fiquei olhando para a corrente de ouro. Será que algo havia mudado?

Levantei e segui pelo caminho que levava ao castelo, sentindo os arrepios na espinha intensificarem à medida que me aproximava da saída da floresta. A brisa passava por mim, instigando meus sentidos a avançar.

Logo dei o primeiro passo para fora.

E o segundo.

Havia me afastado trinta passos da floresta quando a extensão de minhas amarras invisíveis chegou ao limite. Comecei a sufocar e meu corpo ardia insuportavelmente, como se fosse entrar em combustão. Não conseguiria voltar a tempo caso fosse a pé, por isso deixei a névoa me envolver e me transformar em corvo para que chegasse mais depressa até o meio das árvores.

De volta em minha forma humana, sentia o ar retornar aos pulmões aos poucos. Era ilusão minha acreditar que estaria livre. Na verdade, o efeito dos acontecimentos no dia anterior foi contrário, diminuindo meu distanciamento. Quando testei meus limites pela última vez, consegui ficar cinquenta passos longe.

Suspirei, em desgosto. Se Serene estivesse viva, poderia ir por mim, mas por minha incompetência as coisas ficaram mais difíceis. Sacudi a cabeça, afastando qualquer pensamento semelhante. Seria uma vergonha permanecer vivo apenas lamentando, principalmente pelo fato de que eu só continuava neste mundo por causa dela duas vezes.

Veja pelo lado positivo, meu jovem: ela não se transformou em cinzas. A fala de Brasjen ecoava em minha cabeça sem que eu pensasse nela. 

Caminhei pela floresta, tentando espairecer e encontrar alguma forma de contornar o problema, contudo não conseguia ter o mínimo de foco. Me lembrava de Serene encolhida de frio contra uma árvore quando chegou aqui e de seu rosto amedrontado ao encontrarmos na primeira vez, bem como suas lágrimas ao ver a mãe consumida pelas chamas e pelo desamparo que o pai lhe proporcionou. 

Também recordei as coisas boas e mais importantes: aquele sorriso doce, o lado ingênuo que me completava, o modo como ficava incomodada por eu usar suas respostas contra si mesma e tudo o que fez por mim. Não era de se admirar minhas amarras terem sido encurtadas daquele modo, afinal nunca senti tanto desgosto pela morte de alguém antes como sentia pela de Serene, ainda mais porque a causa foi me salvar. No fim, as três pessoas mais ligadas a mim e que se importavam comigo estavam mortas pelo mesmo motivo, porém não pude fazer nada a respeito de nenhuma delas.

Gostaria que entendesse que, às vezes, a morte é inevitável e necessária.

O que a velhota esperava que eu fizesse? Simplesmente esquecesse tudo e todos? Impossível. Sempre lembraria do meu pai ao ver meu próprio reflexo, dela quando me transformar e de Serene ao ver minha cicatriz no braço direito. Como ser indiferente à morte sendo que ela parecia uma maldição disposta a tirar de mim tudo e todos que eu amava? 

Ser um corvo acabou combinando — de forma irônica ou não — com a minha situação. "Onde há corvos, há cadáveres", foi o que disse para o maldito Antony Brasjen, e era exatamente o que acontecia desde minha infância. 

O Último CorvoWhere stories live. Discover now