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 Os raios de sol começaram a aparecer e me fizeram despertar. Não pensei que conseguiria dormir tão tranquilamente daquele jeito, ainda mais com o frio do outono. 

No entanto, uma coisa quente e macia sobre mim chamou a atenção: um cobertor cinzento um pouco gasto, porém que ajudou a passar a noite. Arrisquei cheirá-lo percebi um aroma agradável de hortelã. Olhei ao redor, na esperança de encontrar a pessoa responsável por ter me dado a coberta, mas não vi ninguém. Absolutamente ninguém.

Dobrei a manta, caminhando com ela nos braços floresta adentro. A cada passo, a certeza de não haver uma única alma viva nas proximidades se mantinha e me perguntava quem havia me encontrado, mas talvez nunca fosse saber. Pelo lado bom, ao menos já tinha alguma coisa. Se a pessoa não quis fazer mal, restava apenas ser otimista, afinal minha situação estava longe de ser uma das melhores no momento.

Comecei a sentir fome, contudo não havia nenhuma árvore com frutos nas redondezas e segui caminho até avistar uma macieira. Fiquei diante dela, pensando em uma forma de alcançar os frutos. Nunca havia conseguido escalar nada em toda minha vida e, sempre quando tentava na época de criança, acabava com mais ferimentos do que o previsto. Não poderia arriscar, pelo menos não sem recursos para cuidar dos machucados. 

Coloquei o cobertor sobre o galho de uma outra árvore e andei pelos arredores procurando algo capaz de ajudar, só que havia apenas gravetos e mais gravetos. Fiquei os encarando até ter a ideia de fazer uma vara juntando alguns e amarrando com as folhas. Foi um trabalho bem difícil, mas finalmente conseguiria alcançar as maçãs. 

Colhi duas e as comi para saciar a fome, entretanto decidi pegar mais algumas, pois não sabia quando encontraria comida novamente e não poderia ficar parada ali. Se seja lá quem fosse tinha conseguido me encontrar, seria uma questão de tempo para alguém da cidade me alcançar também. Embrulhei seis dos frutos no cobertor e continuei a caminhada até um lago próximo, lavando ao menos o rosto e os braços antes de seguir rumo a lugar algum.

Ao longo do trajeto, vi alguns animais passeando de um lado para o outro. Um coelho, pássaros, até uma mamãe raposa com dois filhotes, e vê-la me fez pensar a respeito do que eu tinha feito. Como meus pais estariam reagindo a uma hora daquelas? Estariam me procurando? Por acaso sentiam minha falta? Balancei a cabeça em negativa, afastando ao máximo as inquietações ao lembrar de quase ter ficado noiva de alguém envolvido naqueles absurdos por causa deles e isso foi o bastante para me acalmar.

Por não encontrar mais nada para fazer, decidi sentar perto de uma árvore e olhar ao redor, tentando entender onde estava e qual direção seria a melhor para seguir. Todavia, o som de bater de asas desfez meus pensamentos e vi um corvo pousando no galho logo acima de mim. A julgar pelo modo como me olhava, só poderia ser o mesmo daquela vez.

— Está sozinho?

Reparei que o pássaro assentiu. Levei as mãos à boca involuntariamente, pois sequer estava raciocinando direito quando resolvi falar com ele. Por um momento, me senti uma louca por falar com um corvo, mas o fato de vê-lo reagir havia me deixado instigada a continuar a conversa.

— Então... não existem outros mesmo? Em lugar nenhum da floresta?

O corvo fez um sinal negativo com a cabeça. Será que...

— Consegue me entender de verdade?

Mais uma vez assentiu, sem desviar os olhos dos meus e engoli seco. Será que eu realmente tinha enlouquecido tão depressa assim? Ou era apenas um sonho? 

Acabei beliscando meu próprio braço para conferir e, no fim, estava bem acordada para digerir o fato de que aquele pequeno corvo compreendia o que eu falava. Voltei a encará-lo, notando o que parecia um brilho triste naqueles olhos tão escuros quanto a noite e acabei sentido um aperto no coração. 

— Você é realmente o último das redondezas?

O bicho crocitou e concordou de novo antes de ameaçar levantar voo.

— Espere! Com certeza deve conhecer bem a floresta, certo? Quer dizer, claro que conhece, afinal você mora aqui e...

Um som agudo demais foi emitido pelo pássaro, interrompendo o que eu dizia e chamando a atenção. Pisquei algumas vezes para me recuperar do susto e, quando voltei a olhar para ele, notei que dava um sinal afirmativo com a cabeça.

— Será que... poderia me mostrar um caminho com algum sinal de pessoas além daquele? — Apontei na direção da cidade e um calafrio percorreu a espinha no mesmo instante — Para lá não volto de jeito nenhum.

Um bater de asas para longe de mim foi a resposta e suspirei, frustrada. Claro que ele não ajudaria... Sempre ouvi dizer que corvos eram aves inteligentíssimas e, levando em conta o fato de humanos terem dizimado seus semelhantes, as chances do pássaro me ajudar eram ridiculamente pequenas.   

Sacudi a cabeça, me desfazendo daqueles pensamentos e tentando não dar força à teoria de eu ter enlouquecido, contudo o "não" daquele corvo conseguiu me incomodar de verdade. 

Acabei pegando uma maçã e comecei a comê-la, desistindo de fingir que nada havia acontecido. Será que aquele corvo era animal de estimação de alguém ou apenas um igual a todos os outros que existiam antes? Jamais poderia saber, pois não tive a ideia de tentar segui-lo. 

De toda forma, não tive muito mais tempo para me concentrar naquilo.

— Serene! — Meu pai chamou.

— Senhorita Westshine! — Uma voz desconhecida fez o mesmo.

— Onde será que ela se meteu? — Era a voz da minha mãe.

— Não acho que tenha ido muito longe, senhora.

Os passos cuidadosos pela floresta e as vozes me chamando cada vez mais alto foram o suficiente para que eu levantasse e começasse a seguir em frente, tentando fazer o menor ruído possível. Com o cobertor abraçado contra o peito, caminhei na ponta dos pés, evitando os galhos e as folhagens até garantir que estaria longe o bastante para começar a correr. 

Não imaginava que eles teriam coragem de adentrar tanto assim a floresta. Sendo um lugar sempre execrado pela Igreja e praticamente todas as pessoas, jurava que me deixariam de lado achando que eu, de alguma forma, já estivesse a sete palmos abaixo da terra. 

Ousei cessar os passos um instante e olhar para trás. Ao notar que os contornos das casas e das pessoas na cidade ainda eram bem visíveis, percebi não ter ido tão longe assim e continuei correndo. Um esconderijo seria perfeito naquele momento, todavia não consegui ver nada além de árvores e mais árvores. 

A floresta parecia não ter fim. Por mais que continuasse, não havia qualquer vislumbre de outras cidades ou de uma saída segura dali. Até cogitei a mudar o trajeto, só que o medo de acabar dando de cara com meus pais era maior e optei por seguir sempre em frente. Entre pequenas pausas para respirar e algum tempo de corrida, só desejava que, por um milagre, a ajuda chegasse.   

Quando as pernas já não aguentavam mais, desabei sentada perto de um córrego prestes a secar. Talvez não me encontrariam tão facilmente, ainda mais ao cair da noite, e foi aquele pensamento que me fez parar de observar os arredores a cada cinco segundos pelo medo de ser pega. Aproveitei o que restava de água no córrego para limpar o pouco suor causado pela corrida e depois comi mais duas maçãs, me enrolando no cobertor quando enfim comecei a sentir frio e os olhos pesavam pouco a pouco.

O Último CorvoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora