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 Avren retornou, porém com uma expressão estranha.

— Aconteceu alguma coisa?

Ele entrou, ajudando-me a ficar em pé.

— Sua mãe quer te ver.

A porta logo se abriu e vi minha mãe entrando, com os olhos cheios de lágrimas. Nos abraçamos e não pude evitar chorar também. Estava feliz por vê-la, embora minha fuga de casa tenha sido em partes por conta de sua passividade em muitas decisões duvidosas de meu pai. No entanto, em questão de apego, sempre fui mais próxima dela e era inevitável me sentir assim.

Olhei para Avren agradecida e ele retribuiu com um olhar gentil, que depois se transformou na mais pura desconfiança enquanto voltava a encarar mamãe.

— Minha menina, senti tanto sua falta.

— Eu também, mãe.

— Vamos voltar, meu bem. — Ela segurou minhas mãos e seu tom era de esperança — Ainda há chance de desfazer toda essa bagunça.

Balancei a cabeça em negativa.

— Existe algo nesta floresta que não vou abandonar. Sinto muito.

Seu olhar foi para Avren, mostrando que compreendera meus sentimentos.

— Já disse que não precisa desconfiar de mim, criança.

— Todo cuidado é pouco — Ele respondeu, carrancudo.

Minha mãe deu um pequeno sorriso e em seguida suspirou, parecendo se lembrar de algo.

— Serene, infelizmente não há mais clemência para você. O filho do cardeal Brasjen está vindo para caçá-la com outros camponeses e seu pai aprova isso.

Claro que aprovava. Ele nunca questionou nenhuma ordem da Igreja durante toda sua vida e sempre achei ridículo. Ao que parece, mesmo agora não havia mudado e deveria estar pensando que eu realmente era uma bruxa. No fundo, tinha pena de minha mãe, porém não iria abandonar Avren para voltar a viver mediocremente como antes, ainda mais depois de ele não me considerar um fardo e cuidar de mim. Pensando bem, ainda que eu cedesse ao pedido dela, as coisas não poderiam voltar ao normal. Já fui taxada e as pessoas jamais esqueceriam isso, além de que eu continuaria condenada a me casar com Antony.

Ela me abraçou apertado de novo e nos encaramos por algum tempo, ainda com as lágrimas escorrendo. Mais um abraço e outro até que olhou para Avren, agradecendo várias vezes por tê-la deixado me ver e conversar comigo. Antes de ir embora, olhou na minha direção mais uma vez e inspirou fundo.

— Eu te amo, Serene.

— Também amo você, mãe. 

— E cuide bem dela, pequeno corvo. — Seu olhar recaiu sobre Avren.

— Não sei se percebeu, mas ainda sou humano. — Ele revirou os olhos.

— Vou rezar pela felicidade de vocês, não importa o que aconteça.

A vi partir de volta para a floresta e olhei para Avren, que ainda estava do meu lado. O coração apertou um pouco ao vê-la partir, porém me limitei a engolir em seco antes de perguntar:

— O que vamos fazer agora?

— Não podemos simplesmente correr e nos esconder.

— Você tem ideia de que somos dois contra a cidade toda?

— Correção: um contra a cidade toda. — Ele olhou para mim com seriedade — Você vai ficar fora do caminho. Tenho contas a acertar com Brasjen e o restante da corja que é próxima dele. Não quero ninguém me atrapalhando.

— E eu vou fazer o quê?

— Você vai junto, mas não deve se meter. Eles estão atrás da bruxa, então qual chamariz melhor do que isso?

— Você está de brincadeira.

— Prometo que ninguém chegará perto de você. Apenas não me atrapalhe e vai dar tudo certo.

— Avren, não é disso que Grethel estava falando. Matar a todos não é a solução.

— Já falamos sobre isso e não quero retomar a discussão. Assim que tivermos certeza de que seu ombro está melhor, iremos para perto da cidade ver o que acontece.

Foi inevitável o encarar com tristeza. Novamente aquele sentimento cego de vingança dominava sua expressão e eu não sabia o que fazer para que aquele cabeça-dura entendesse o significado da carta de Grethel.

— Não faça essa cara. — Avren quebrou o silêncio, saindo de perto de mim e abrindo uma das gavetas da cômoda — Você não passou metade do que eu passei, do contrário me entenderia. Além disso, não deixarei os deixarei impunes por terem te ferido e tratado daquela forma.

— Você não precisa fazer isso.

Ele tinha faixas novas e mais pomada. Sentei na cama e o deixei trocar as ataduras. A linha da sutura foi cortada e percebi que, enfim, meu ferimento estava melhor.

— Eu preciso. — Seu tom era tão baixo que pensei ter ouvido coisas — Não vou ficar em paz até dar um fim em todos eles por você, por meu pai, Grethel e por todos os corvos.

— Avren, é loucura.

Senti os braços dele ao meu redor com delicadeza e seu queixo apoiado sobre minha cabeça.

— É uma loucura que vale a pena. É impossível deixar de lado que eles arruinaram a minha vida e a da velhota. Além do mais, não consigo imaginar o filho do Brasjen tocando em um úniico fio de cabelo seu e menos ainda... — Ele engoliu em seco — se casando com você.  

— Isso é sério?

— Eu não brinco com uma coisa dessas. — Avren já estava de frente para mim, me olhando com doçura — Você é a única pessoa até agora a quem me apeguei novamente e o fato de te quererem morta apenas me influencia a começar o que quero fazer.

— Esse não é o melhor caminho para...

— Serene, se você não estiver comigo... — Ele olhou no fundo dos meus olhos, para ter certeza de que eu estava ouvindo e compreendendo — Ninguém mais vai estar.

Não sabia o que dizer e parece que estávamos no mesmo barco, me deixando constrangida e sem ação alguma. Eram raras as vezes que ele me chamava pelo nome, mas quando o fazia era para dizer algo importante.

— Avren, seus sentimentos respondem aos sentimentos da bruxa?

Não tinha nada a perder insistindo naquilo. Já estávamos em uma situação delicada demais e não poderia piorar. Além do mais, se Avren conseguiu tirar isso de mim tão facilmente, eu também merecia uma chance.

— Mas é claro que sim. Estou apaixonado pela bruxa assim como ela está pelo demônio. — Um meio sorriso surgiu — Até que acabamos por combinar, não acha? Bruxas fazem pactos com demônios... mas este será nosso segredo.

Apenas assenti, me sentindo boba. Recebi outro beijo na testa como retorno enquanto ia até a cozinha para preparar o jantar, só que para variar ele não me deixou sequer chegar perto do fogão. Fiquei esperando e acabamos por comer alguns peixes com arroz. Ao dormir, Avren ficou sentado no chão ao lado da cama, com a cabeça apoiada em uma ponta do travesseiro e não aceitou que eu protestasse de forma alguma.

O Último CorvoWhere stories live. Discover now