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— Ele vai aparecer, pai. Quer queira, quer não, aquele louco vai voltar e nos matar.

— Não é porque ele quase fez isso com você que irá fazer de novo. Princeton não ousaria pisar nesta cidade por amor à própria vida.

— Não tenho certeza disso. — Antony engoliu em seco, estremecendo ao lembrar de quase ter sido dilacerado por Avren — Se não fosse por Alfred, eu certamente já estaria morto.

— Não importa. — Brasjen entregou uma arma que pertencia a um dos caçadores para o filho — Agora vá escoltar os camponeses que vão tirar os cadáveres da floresta.

— O senhor só pode estar de brincadeira.

— Vá logo, garoto.

O rapaz foi, ainda sentindo arrepios em sua nuca. Entretanto, a única coisa pior do que o garoto da floresta era seu pai adotivo, principalmente agora que ele estava se sentindo mais confiante. Os corpos estavam sendo recolhidos, mas as manchas de sangue permaneceriam por um bom tempo como um lembrete daquela desgraça.

O som de folhas sendo esmagadas à esquerda chamou-lhe a atenção. Os camponeses seguiam pela direita com os cadáveres, logo não poderia ser um deles. Estava com a arma preparada, contudo com as mãos frias e trêmulas por pensar na hipótese de rever Avren. Seja lá quem fosse se aproximava mais, deixando o loiro menos ansioso ao notar que os passos eram cansados e pesados demais para pertencerem a uma pessoa jovem.

— Finalmente alguma cidade...

Um homem coberto por um manto gasto na cor bege caminhava cambaleante na direção de Antony, se arrastando apoiado no bastão de madeira até sair completamente da floresta.

— De onde vem?

— Venho do leste, mas sou de lugar nenhum. Por acaso sabe de algum lugar onde eu poderia passar a noite, rapaz?

— Acho que a igreja tem um lugar para você. Pode me acompanhar.

Independente de quem fosse, Brasjen seguia os princípios de acolher os desabrigados e mais vulneráveis, uma vez que precisava manter a reputação de pessoa boa e caridosa entre os moradores para atenuar suas outras ações. Assim sendo, guiar os necessitados até a igreja era a única tarefa que Antony era obrigado a cumprir a todo custo.

O homem o seguiu, ainda andando com esforço. Os camponeses trataram de enterrar os dois caçadores, o arqueiro e Alfred enquanto o forasteiro e o rapaz iam até a igreja, onde Brasjen havia acabado de proporcionar a "rendição".

— Quem é este senhor, Antony?

— Ele veio do leste, porém não possui um teto fixo.

— Entendo. — Os olhos de Brasjen estreitaram-se enquanto encarava o forasteiro de cima a baixo — Como se chama?

— Camilo.

— Pode me chamar de Brasjen, sou o Segundo Cardeal. Temos um quarto para que possa passar a noite e também comida para oferecer, porém existe um preço. 

— Um... preço? — Camilo arqueou uma sobrancelha, coçando a barba enquanto pensava — Pensei que a Igreja ajudava os outros sem cobrar nada.

— Acontece que precisamos de recursos para comprar alimentos e o que mais seja necessário para a comunidade, por isso é cobrado um valor simbólico. No entanto, acho que posso fazer uma exceção para o senhor por um dia e... — Brasjen interrompeu a fala para observar um pássaro pousando sobre o ombro do forasteiro — Por acaso ele é seu?

— Digamos que sim. Ele me segue desde algum tempo por razões que desconheço, então acabei considerando-o um animal de estimação.

— Sinto lhe informar que corvos não são bem vindos nesta cidade. Por serem animais malignos e amaldiçoados, foram eliminados.

— Oh... Bem que achei estranho não ter visto nenhum por aqui. No entanto, este corvo é diferente dos outros, suponho que o senhor mesmo já percebeu.

O religioso se viu obrigado a concordar. Aquele pássaro não se parecia nem um pouco com os outros que haviam sido mortos ou com Avren. Era todo branco — algo extremamente raro — e não parecia agressivo de forma alguma. Apenas era possível reconhecê-lo como um corvo por seu porte, do contrário passaria despercebido.

— O que vamos fazer com o corvo, pai? — Antony interferiu, reparando que o silêncio poderia ser eterno.

— Pensando bem, seria lamentável perder uma amostra tão exótica como essa... — Brasjen olhava para a ave, pensativo — Acho que posso aceitá-lo como pagamento pela estadia.

Camilo olhava para o animal e para o cardeal até que finalmente tomou sua decisão.

— Fique por quanto tempo julgar necessário e espero que a cidade seja do seu agrado. — O Segundo não escondeu a satisfação — Meu filho, poderia mostrar as instalações para este senhor?

O homem foi guiado por Antony até os quartos que ficavam atrás da igreja. Enquanto isso, Brasjen observava o corvo serenamente pousado em seu antebraço esquerdo. Quanto poderia valer uma ave daquelas? Pensando melhor, será que valeria a pena vendê-lo?

— Providencie um bom lugar para esta raridade.

O monge levou o corvo para dentro da igreja, onde tratou de encontrar a maior gaiola que tinham. Ao entregar a ave de volta para Brasjen, recebeu uma careta de desaprovação.

— Acho melhor deixá-lo solto no fim das contas. Isso não é lugar para um pássaro tão majestoso como este.

— Mas é um corvo, Vossa Eminência.

— No entanto é um corvo branco, sinal de que ainda há pureza no mundo mesmo entre as criaturas mais sombrias — explicou. — Vá, pode cuidar de seus afazeres. Certamente o Primeiro Cardeal não iria gostar de ver você perambulado por aí.

O garoto assentiu e desapareceu tão depressa quanto havia aparecido. O corvo ficou pousado no ombro do Segundo Cardeal, analisando tudo ao redor enquanto iam até a sala dele. Prateleiras com livros religiosos preenchiam três paredes e na outra havia um crucifixo. Uma escrivaninha de carvalho escuro estava no canto da sala, juntamente com uma cadeira de couro alta.

— Fique onde desejar, sinta-se em casa.

O pássaro pousou na mesa, observando as prateleiras e a movimentação do religioso até que o som de uma batida desfaz o silêncio da sala.

— Entre.

Um comerciante adentra a sala com rapidez, fechando a porta trás de si.

— Oh, sim. Vamos direito ao que importa. Pensou a respeito do que conversamos?

— Sim, Eminência. E acho que não há preço para a salvação. Não é?

— Fico feliz que tenha compreendido.

O cardeal se acomodou na cadeira, remexendo nas gavetas até encontrar vários papéis com as mesmas coisas escritas. Os olhos do corvo não perdiam nada de vista. Um saco de ouro apareceu na mesa, colocado pelo comerciante ao mesmo tempo em que uma folha daquelas estava sendo assinada por Brasjen.

— Não perca jamais este papel. Ele é a prova de que está apto a entrar no reino do Senhor e também é a testemunha de sua salvação.

— Não sei como agradecer, Eminência.

O homem guardou seu "perdão" no bolso do casaco antes de sair da sala, deixando o cardeal contar as moedas e preencher outro papel, que já tinha vários nomes, datas e valores. O corvo grasnou, voando para mais perto.

— Este será nosso segredinho. — Brasjen riu para o corvo.

O Último CorvoWhere stories live. Discover now