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ᴀᴠʀᴇɴ

Serene já estava fora do meu alcance. O sangramento foi cessando, porém tampouco estava viva. Contemplei sua face por alguns instantes antes de me levantar, ainda carregando-a em meus braços. Como eu poderia deixar de sentir desgosto pela morte? Quebrei minha promessa e jamais me perdoaria enquanto vivesse, talvez nem mesmo depois disso.

Seguindo por uma trilha oposta àquela que Antony e toda a corja se encontrava, cheguei até a casa da velhota e coloquei o cadáver da mulher que eu amava na grama por um instante, indo pegar a pá perto da horta. Olhei para o objeto, pensando que jamais o usaria para enterrar alguém importante para mim, mas estava errado. Cavei ao lado da sepultura de Grethel, tentando ignorar o nó em minha garganta.

O corpo de Serene estava trêmulo em meus braços, contudo eu sabia que quem tremia de verdade era meu próprio corpo. A coloquei na cova e a cobri com a terra fria lentamente, sentindo um aperto no peito quando seu rosto não ficou mais visível. Ao terminar, deixei a pá apoiada em uma árvore e não me importei em ajoelhar, com a visão embaçada pelas lágrimas que há anos não derramava. Desde a morte de meu pai nunca mais chorei, nem mesmo pela morte da velhota, pois já estava preparado para isso. No entanto, com Serene era diferente. O arrependimento por não ter feito o que deveria e por não tê-la ouvido dilaceravam cada parte da minha alma. Errar é algo humano, porém imperdoável quando faz alguém perder a vida.

Bati minha mão sobre algo metálico. Era o colar de agradecimento da Coroa, mas eu não podia sair da floresta para reclamar o que seria uma solução para dar um fim no que comecei. Guardei o objeto no bolso e levantei ao ouvir sons de gatilhos sendo puxados. 

— O que aconteceu, garoto? Perdeu a valentia? — A voz asquerosa de Brasjen chegou aos meus ouvidos.

— Se você fosse uma pessoa decente, não viria até aqui para me dizer isso.

— É tocante ver como o amor é capaz de mexer com alguém. — Sua risada conseguia ser ainda mais desagradável — Só porque a bruxa se foi acabou por recuar?

— Estou longe de recuar, principalmente agora que Serene se foi.

— Veja pelo lado positivo, meu jovem: ela não se transformou em cinzas.

Avancei e um tiro passou por mim. Brasjen parecia se divertir com a situação, ainda mais quando estava rodeado de caçadores para protegê-lo. Ao perceber que fiquei afetado por seu comentário, continuou me provocando:

— Que tocante. Talvez mesmo um demônio tenha sentimentos, não é? Como estou de bom humor, vou deixá-lo vivo caso não se aproxime da cidade, afinal a bruxa era o que importava de fato. — O verme logo me encarou de cima a baixo, com um meio sorriso confiante — Imagino que agora o passarinho vá definhar até a morte pela tristeza, portanto não há nada mais para temer.

— Se acha isso, que continue assim. — respondi. Ao menos ganharia tempo para tentar contornar a situação.

— Sua existência não nos afeta mais. — Ele jogou minha adaga manchada de sangue na grama — Como já disse, o foco era matar a garota e, já que obtivemos sucesso, as pessoas continuarão confiando em mim. Um pequeno corvo de coração partido nem de longe é um problema.

— No seu lugar, eu pensaria o contrário, mas fique à vontade para pensar o que quiser.

— Não dê as caras por perto da cidade e pouparei sua vida, é simples. Do contrário, já sabe o que vai acontecer.

Ele e os cães armados foram embora, me deixando sozinho com meus pensamentos. A corrente parecia pesar no meu bolso, um sinal claro do que deveria ser feito. Entretanto, eu ainda estava preso e com mais repulsa da morte, reforçando minhas amarras à floresta. 

Enquanto limpava a adaga, notei o sol se pondo e o céu tomando a cor vermelha, como que para me incriminar por derramar o sangue de Serene. Meu estômago começou a emitir ruídos e só então percebi que não havia comido nada o dia todo. Pouco importava, pois a fome desaparecia toda vez que eu olhava para onde enterrei minha amada. A única coisa que me permiti fazer foi tentar lavar minha culpa com um banho e roupas limpas, mas ainda sentia o sangue dela em mim como uma marca permanente. Ao terminar, não hesitei em ficar perto de seu túmulo, pensando em tudo o que houve e no que faria a partir de agora.

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Nota importante: assim como neste capítulo, os demais em primeira pessoa serão narrados por Avren até o final do livro. 

O Último CorvoWhere stories live. Discover now