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 Quando acordei, Avren estava lá, com o café da manhã pronto. Havia pães, mel e suco de amoras. Sequer imaginava a existência de uma colméia pela floresta, provando que ele de fato conhecia tudo por aqui. No entanto, o mais impressionante foi ver que não levou uma ferroada sequer durante o processo. Me ajudou a levantar da cama e comecei a comer.

— Sabe, estive pensando em uma coisa que não ficou esclarecida para mim.

— E o que seria? — perguntei, passando o mel no pão.

— Quando Brasjen perguntou se você estava apaixonada pelo demônio, você não respondeu.

— O que tem isso?

— Você sabe que o "demônio" ao qual ele se referia era eu, certo?

— Mas é claro, não era difícil entender isso. — Tomei um gole de suco, tentando disfarçar meu nervosismo com aquilo. Nem me lembrava mais daquela pergunta e preferia continuar assim.

— Então seu silêncio foi realmente um sim?

A expressão dele era indiferente, contudo seus olhos estavam esperando por uma resposta. Desviei olhar, tentando pensar em algo.

— E quando ele disse que viu que era recíproco? O que tem a me dizer sobre isso?

— Você está se desviando da pergunta...

— E você também.

— Eu perguntei primeiro. Você está arrumando desculpas para mudar de assunto, como sempre. — Avren ainda olhava para mim, curioso — Então é verdade?

— Talvez — falei, por fim. E isso não o deixou satisfeito — E quanto a minha pergunta? É recíproco?

— Talvez — respondeu, utilizando-se do mesmo tom que o meu de maneira que me incomodava e o divertia.

Fui tomar banho e depois as ataduras foram trocadas. Admito que ainda doía e não pude deixar de xingar baixinho quando ele acabou puxando um dos pontos sem querer. Apenas o anestésico acabou com meu sofrimento. Minha esperança era que aquilo se curasse logo, pois não estava disposta a sofrer por muito mais tempo. Suportar dores nunca foi meu forte e duvido que seria algum dia.

— E seu braço? — Tentei puxar conversa.

— Com certeza está melhor do que seu ombro.

Apesar de ter sido ferido no dia anterior, já estava se cicatrizando.

— Imagino que o feitiço tenha seus lados positivos — constatei.

— De fato.

— O que mais você pode fazer além de se transformar?

— Tenho regeneração rápida, posso alterar a cor das minhas penas de acordo com o tom da vestimenta que estou usando e possuo mais força do que um humano comum. Não em proporções gritantes, porém o suficiente para sair livre de uma luta contra qualquer soldado da guarda real. — Deu de ombros, como se aquilo não fosse nada de importante — Mas gostaria muito de poder de ler mentes, sabe?

— E para quê? Às vezes não é bom saber o que os outros estão pensando. — respondi, entendendo onde aquela conversa iria chegar — Isso se chama violação.

— Só que eu faria apenas uma vez, não é nada demais.

— Avren, por que insiste tanto nisso? Vai fazer alguma diferença na sua vida?

— É claro que vai. Se não fosse, jamais perguntaria.

Não respondi. Senti o rosto esquentar e desfiz contato visual por um momento. Ouvi seus passos se aproximando e o vi se agachar a minha frente, segurando meu queixo com uma das mãos enquanto analisava minha expressão com cuidado. Não conseguia ficar daquele jeito e acabei desviando o foco para o chão outra vez, me sentindo incomodada com o silêncio que estava no ar.

— Serene, olhe para mim.

Voltei a encontrar suas íris, que ainda transpareciam dúvida.

— "Será que é por que está apaixonada pelo demônio?"

Era a mesma fala do cardeal. Avren levantou, inclinando-se na minha direção com cuidado enquanto estudava minha reação. Me afastei devagar até as costas encontrarem a parede, pois estava sentada na cama e não tinha como dar tanta distância, bem como seria impossível me livrar dele com um ombro machucado. Uma de suas mãos continuava no meu rosto e sua respiração ficou perto demais. Fechei os olhos e esperei por seja lá o que fosse.

Os abri novamente ao não perceber mais nenhum movimento e recebi um beijo na testa. Foi impossível ignorar minhas bochechas pegando fogo, principalmente quando ele olhou para mim outra vez e sentou no chão ao lado da cama, com o queixo apoiado em uma mão. Parecia satisfeito.

— Por que está me olhando com essa cara?

— Já tenho a resposta que eu queria. E estou com essa cara pensando em quão ruim você é para esconder seus sentimentos.

O encarei com uma pontada de rancor, que acabou tirando um sorriso dele. Aquilo sem dúvida lhe era uma forma de diversão, e precisei admitir que só sabia de seus sentimentos quando Avren de fato os demonstrava, do contrário não tinha ideia do que se passava em sua cabeça. E, para variar, estava acontecendo de novo. Não conseguia perceber se suas palavras e intenções eram verdadeiras ou uma brincadeira para me deixar balançada.

— Eu odeio você, sabia?

— Não foi o que percebi.

Seu sorriso aumentou assim como minha timidez, a qual chegou ao ponto de eu querer me esconder em uma caverna. O odiava por conseguir tirar isso tão facilmente de mim, mas gostava dele por inúmeros motivos, que resumidos resultavam em Avren ser o oposto do bruto Antony Brasjen em todos os sentidos.

— E você responde a isso? — Tornei a perguntar. Não tinha nada a perder caso fosse rejeitada.

— Vou te deixar pensando.

— Avren...

— Não tenho nada melhor para fazer além de te importunar, não me culpe. — Ele franziu o cenho um instante — Confesso ter pensado que iria me distrair mais tentando descobrir a verdade, porém, como foi fácil demais, alguém aqui precisa complicar um pouco, não acha? Senão não tem graça. — Revirei os olhos e recebi uma risada como resposta — De toda forma, acho que a velhota tinha razão, afinal.

— Razão no quê?

— Que eu encontraria uma pessoa capaz de me fazer sorrir de novo de verdade. — Seu tom pareceu sincero — Ultimamente, o único sorriso que consigo dar é o de deboche, mas fico leve e bem de forma inexplicável quando estou importunando você em momentos como esse e te deixando tão corada quando um morango.

— Trate de arrumar algo melhor para fazer — resmunguei, olhando para o lado, mais desconfortável e envergonhada do que nunca.

Avren estava de pé, indo até a porta. Antes de fechá-la, olhou para mim e advertiu com severidade bem real:

— Se eu te encontrar fora da casa quando voltar, pode ter certeza de que vai estar em apuros maiores do que pode imaginar. Vou dar uma olhada nos arredores para ver se estão tramando alguma coisa na floresta. Não demoro.

O Último CorvoWhere stories live. Discover now