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Voltei até a casa de Grethel para tomar um banho, a fim de refrescar a mente e rever melhor o que estava escrito naquele pedaço de papel que me fez agir com tanta loucura e displicência. Procurei pela carta, encontrando-a entre os livros. Precisava de uma saída para meu problema e ficar sentado o resto da vida em torno de um túmulo não ajudaria em nada. Relendo com calma, me pergunto como a velhota tinha tanta convicção que alguém encontraria a carta por mim, mas não era o momento para pensar nisso.

[...] a morte é inevitável e necessária.

Sabia que aquela linha era a chave para ficar livre da floresta e também o que Serene tanto quis me avisar. Pensando melhor, até poderia aceitar o fato da morte ser inevitável, pois ela é a única certeza que temos no fim das contas. Apesar das três pessoas que tinham laços estreitos comigo não precisassem partir da forma como partiram, uma hora ou outra acabaria acontecendo. 

"Para morrer, basta estar vivo", lembrei de ter ouvido isso quando criança. E, querendo ou não, era verdade. 

No entanto, não poderia concordar com o fato de ser necessária. Por qual razão já nascemos sentenciados à morte? Por que não podemos viver para sempre? 

Quando uma pessoa falece, traz tristeza a outras. Ninguém quer perder um ente querido. Não é justo se afeiçoar a alguém para depois ficar sem ela ou ele simplesmente porque os anos passaram e envelhecemos, ficando mais frágeis. Já vi muitas coisas patéticas, mas o ciclo da vida conseguia ser pior do que tudo no mundo. É claro que julguei necessária a morte de Brasjen, de seu filho e dos demais que acabei tirando a vida, porém outros meios poderiam ser utilizados. Não era uma solução única e eu deveria admitir isso.

Deixei a carta de lado, sem parar de pensar na última linha. Fui à cozinha procurar algo para comer e então vi os peixes. Talvez a falta de oxigênio de pouco tempo atrás não tenha sido tão ruim afinal, pois comecei a entender a tal "necessidade" da morte e vi que estava enganado. A morte de uns seria sim necessária para outros, visto que já tirávamos a vida de animais e vegetais para suprirmos nossa necessidade de alimentos e nutrientes. 

"A vida é uma troca constante, tudo neste mundo tem um preço". A velhota vivia repetindo isso para mim quando acabávamos discutindo assuntos "mórbidos" e nunca quis entender, mas ela talvez tivesse razão. 

Quanto mais pensava e tentava imaginar certas coisas, mais conseguia compreender a realidade que tanto desprezei e neguei. Logo, me vi obrigado a reconsiderar o que disse a respeito do ciclo da vida. Não era tão patético como julguei o tempo todo. Na verdade, fazia sentido e era até necessário para o bom andamento da natureza. 

O que seria do mundo caso todos os seres vivos fossem imortais ao tempo? Embora achasse há menos de cinco minutos que era o certo, aqueles pescados me mostraram que não era bem assim. Imagine os rios e mares sendo lar de vários peixes nascendo e nenhum morrendo naturalmente? Seria questão de tempo até que superlotassem, prejudicando a qualidade de vida deles. 

Com os humanos aconteceria a mesma coisa. O mundo era grande, mas chegaria um ponto em que faltaria espaço e arrisco dizer que até os alimentos esgotariam, causando um completo caos. Olhando por esse ângulo, a morte era necessária sim em prol do equilíbrio e da renovação para que pudéssemos, ironicamente, viver melhor. 

Além disso, a morte também acalentava certos acontecimentos. Para Grethel, sacrificar o restante de seus dias para me manter a salvo foi necessário, pois assim ficaria tranquila e teve um fim melhor do que a fogueira por ser uma bruxa. 

Também era necessário para Serene morrer por mim para não sofrer mais com o fim que sua família teve. Apesar de amá-la com todas as minhas forças e perceber que ela também se sentia do mesmo jeito, ao menos agora estava livre daquilo que a atormentava. Independente de onde estivesse naquele momento, era certo que passaria a eternidade em paz e em um lugar muito melhor. Só esperava encontrá-la no mesmo plano quando minha hora chegasse.

Já meu pai, garantir que eu continuasse vivendo por ele foi necessário, vez que o próprio sempre ficava deprimido pela partida de minha mãe. Mesmo minha companhia não era suficiente para preencher o vazio em seu coração e nenhuma outra pessoa conseguiu cativá-lo para curar aquela ferida. Dessa forma, a morte eliminou aquela tristeza.

No fim das contas, de nada me adiantaria negar, rejeitar ou sentir desgosto da morte por tirar de mim pessoas importantes como aconteceu, pois era a única saída que tinham para não sofrerem com algo pior. Sempre fariam falta, mas nada poderia fazer para trazê-los de volta e o ideal era aceitar isso de uma vez. 

Deveria, portanto, honrar o sacrifício deles fazendo com que Lucios recuperasse seu poder, impedindo mais sofrimentos por parte de Brasjen. Meu desejo ainda era arrancar a cabeça daquele cardeal acima de qualquer coisa e sem dúvida nenhuma poderia fazê-lo, contudo não seria algo sensato. Nunca gostei de depender dos outros, mas boa parte da cidade estava a favor dele naquele momento. Caso tentasse matá-lo por conta, cedo ou tarde eu seria abatido como os outros corvos.

Ao voltar à realidade e digerir com calma todas as reflexões, notei que o céu estava anunciando o anoitecer e decidi ir até Serene mais uma vez. Não pude deixar de passar primeiro por Grethel e agradecer pela carta e pelo que fez por mim, pois nunca demonstrei nenhuma gratidão, apenas revolta. 

Quando finalmente cheguei até meu destino, não me importei em deitar ao relento ao lado da cova de minha amada e sentir ainda um aperto no peito, o qual me acompanharia pelo resto da vida. 

O Último CorvoWhere stories live. Discover now