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Em nosso reino, Elisyum, as coisas ficaram diferentes. O rei tinha adoecido e, sem condições de administrar como antes, permitiu que o Clero gerisse praticamente tudo até que sua saúde estivesse reestabelecida. A partir daí, nossas vidas foram transformadas da água para o vinho, mas não para melhor. As mulheres que moravam sozinhas perto de florestas e as conhecedoras das ervas medicinais começaram a ser perseguidas e sentenciadas à fogueira, acusadas por usarem magia negra.

Também começou a surgir o repúdio a animais específicos. Denominados como sendo "demônios", "companheiros das bruxas" e "criaturas impuras", gatos pretos e em especial corvos desapareciam pouco a pouco. Os que se aventuravam pelas cidades acabavam mortos com flechas de caçadores ou mesmo a pedradas pelo povo, restando apenas o sangue manchando as ruas como uma marca permanente de toda aquela atrocidade e loucura.

O medo foi se instaurando em nossos corações dia após dia. O modo como agíamos ou o que falávamos poderia ser usado contra nós sem aviso caso suspeitassem de qualquer coisa, fazendo com que inúmeras pessoas fossem sentenciadas à fogueira ou a outros tipos de execução desumanas em público. Ao poucos, tudo passou a girar em torno dos clérigos, que interpretavam os acontecimentos como "castigos divinos" ou "recompensas divinas" a depender de quem fosse o envolvido. As condições se tornaram propícias para alguns e desfavoráveis para muitos.

Meus pais, que faziam parte dos mais ligados à Igreja, ficaram felizes com a maior parte de concentração do poder nas mãos dos religiosos. Para eles, todos os acontecimentos faziam parte dos planos celestiais para livrar o mundo do "mal", no entanto eu desprezava aquelas atitudes em silêncio por cada animal e pessoa inocente morrendo em virtude de mera superstição e até por capricho daqueles covardes.

Todavia, jamais imaginava que tivesse como piorar. A partir dos meus dezoito anos, os clérigos faziam questão de importunar minha família com ofertas de casamento para mim, e claro que meus pais — cegos e ingênuos — achavam uma ideia maravilhosa o fato de eu me unir ao filho ou parente de algum deles. Sempre quando me arrastavam para assistir às celebrações, os religiosos insistiam em empurrar algum pretendente, contudo os recusava todas as vezes na esperança de que desistissem e esquecessem da minha existência.

As semanas se tornaram meses e, ao contrário do que esperava, as propostas continuaram. Junto com elas, porém, passaram a vir as ameaças de que eu seria considerada uma bruxa por não aceitar ninguém como marido. Era visível o desespero deles, afinal o casamento seria interessante por conta das condições financeiras da minha família. No fim, tive certeza de que estava lidando com pessoas completamente controladoras, gananciosas e, por consequência, perigosas.

Como se não bastasse, ainda tinha sido proibida de fazer coisas que antes eram meu maior passatempo. Não podia mais escrever, desenhar e sequer chegar perto de um livro outra vez. Os que estavam em casa foram queimados, assim como de todas as outras famílias, restando apenas a Bíblia Sagrada para nós.

A partir daí, me limitei a ficar trancada em casa, sem fazer nada além de aprender a cozinhar, costurar e lavar de maneira impecável apenas para agradar a um homem que sequer conseguiria amar. Haviam tirado de mim não apenas o que eu gostava, mas também minha liberdade de ir e vir para onde e quando quisesse.

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Um ano se passou e consegui sobreviver até completar dezenove anos, no entanto não mais poderia escapar do casamento. Uma vez que recusei outra vez a me reencontrar com os parentes dos clérigos para escolher um deles, meus pais fizeram isso por mim e acabaram entregando minha mão a Antony Brasjen, filho adotivo do Segundo Cardeal. O noivado oficial aconteceria antes da celebração às seis da tarde naquele mesmo dia, perante todas as pessoas.

Mamãe me obrigou a usar um vestido que estava guardado há não sabia quanto tempo e que pertencia a ela quando mais nova. Contudo, não ousei dizer uma única palavra em protesto sob o risco de ser estapeada e severamente punida por parte de papai, já que a felicidade dos dois era extrema a ponto de não se importarem com mais nada, nem com os sentimentos da própria filha. Se já não davam a chance de me manifestar antes de estar noiva, a tendência seria piorar dali em diante. 

Seguimos até a igreja a pé, afinal morávamos a alguns minutos de lá e minha mãe achava que a brisa do outono poderia me ajudar a colocar as ideias no lugar, porém não respondia o que me perguntavam ao longo do caminho para não demonstrar a repulsa presente em cada canto de mim. As mãos estavam geladas e eu andava devagar, de modo a ficar distante dos meus pais, os quais tagarelavam sobre o casamento o tempo todo.

À medida que a distância entre nós e a igreja diminuía, o ar faltava nos pulmões e a força de vontade para continuar andando naquela direção desapareceu por completo. Ao vislumbrar o sangue seco dos pobres animais assassinados e ao me imaginar mais uma vez casada com um homem que eu sequer conhecia direito e seria escrava pelo restante dos dias, criei coragem para fazer o que tive vontade desde quando tudo aquilo havia começado.

— Serene!

— Serene!

Não voltaria para lá nem que minha vida dependesse daquilo, pouco importava o fato de estar com aquela roupa ou mesmo por estar anoitecendo. Me sentia cansada de ser apenas empurrada de um lado para o outro sem ter o direito de dizer o que pensava de verdade, de ter que concordar com tudo para não ser condenada à fogueira.

Estava cansada de ver meu futuro ser reduzido às cinzas drasticamente.

Quando me dei conta, fui parar na floresta a uma distância considerável da cidade. Decidi então que era o momento de diminuir a velocidade para respirar melhor. Caminhei até ter certeza de não ser encontrada por ninguém e sentei na grama, com as costas apoiadas em uma árvore de tronco grosso o bastante para me esconder. Suspirei e fechei os olhos, processando o que tinha feito e acabei sentindo um misto de alívio por ter feito o que achava certo junto à insegurança por não saber que rumo tomar dali para frente.

Ouvi o bater de asas perto de onde estava e vi um corvo pousar no galho perto de mim. Ele não parecia amedrontado com a minha presença e mantinha os olhos negros sobre mim, como se estivesse me analisando. Também fiquei o observando por um tempo, uma junção de temor e fascínio tomando conta de mim. Nunca havia ficado cara a cara com um pássaro daqueles, porém o pequenino à minha frente parecia intrigante.

Despertei do estado hipnótico em que me encontrava ao ouvi-lo emitir um som e bater as asas para longe dali. Tive a estranha sensação de que deveria segui-lo, mas não o fiz. Apenas me encolhi e fechei os olhos, procurando adormecer e ficar aquecida ao mesmo tempo, uma vez que já estava começando a esfriar e por sorte o vestido era longo para não me deixar passar tanto frio.

O Último Corvoजहाँ कहानियाँ रहती हैं। अभी खोजें