Capítulo 51 - Verão

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O padre Daniel parou frente à porta, e ali, no centro do corredor mal iluminado, sentira algo estranho que não pôde definir. Olhou para o lado, e viu o bispo segurando o terço contra os lábios, e então para o outro, onde Alex Cotton e o padre-diretor o fixavam imóveis. Havia se passado tanto tempo desde a última vez que estivera diante daquele quarto, que mesmo tentando reprimir as memórias, elas tornavam a vir como sombras e sussurros, lembranças de um tempo que procurou esquecer. Deu um passo para trás.

— Padre. Eu... tem certeza de que este é o quarto?

Alex Cotton mantinha os olhos sobre sua feição. Desde que o visitante chegara a Saint-Michel, se perguntava por quanto tempo agiria em tamanho cinismo, fingindo ter se esquecido de tudo o que lhe ocorrera ali. Para ele, era nítido como num dia ensolarado, a última visão do antigo colega deixando as portas do monastério, a fim de ser educado em Palência. Na ocasião não se sentiu perdendo algo, pelo contrário, o sentimento fora de alívio por livrar-se de alguém cuja presença lhes fizera tanto mal.

— Sim meu filho — foi o bispo a responder, fazendo-o virar-se na direção contrária — Este é o quarto de Marlon Gayler.

Cotton continuava a encará-lo. Ele sabia que estando diante da porta que um dia fora seu próprio dormitório, o visitante de Palência não iria conseguir manter-se impassível por muito tempo. Então, quando trocaram rápidos olhares, umedeceu os lábios e procurou encontrar a voz.

— O que houve padre? O aposento lhe causa algum incomodo?

Eles trocaram novos olhares. No rosto do visitante, a feição de segurança que carregara desde a chegada agora começava a se desfazer, e ao seu lado, o bispo retrucou:

— Filho, creio que o ambiente lhe seja um tanto familiar, mas, não permita que as recordações atrapalhem sua missão.

O bispo, no entanto, não compreendia. O bispo de Palência nunca soubera da verdade, e talvez apenas por este motivo aceitara recebê-lo na catedral para os fundamentos religiosos. Em Palência fora instruído sobre o perdão de Deus, sobre os pecados serem apagados pelo arrependimento, sobre sermos feitos novas criaturas após os votos. Por isso procurara manter-se calmo, recuperando a postura.

— Não bispo, não me compreenda mal. Refiro-me ao silêncio, não estranham? — umedeceu os lábios e mudou de assunto, percebendo a quietude que havia no local — Se é como dizem, o garoto deveria estar praguejando, principalmente ao sentir nossa presença.

— Por isso tenho dito que se trata de um surto, e não um quadro de possessão.

— Ora. Cale-se diretor — o bispo perdeu a paciência. Pensar na possibilidade de Lúcios estar sendo dopado deixava-o irritado, um furor que crescia dentro de si e não conseguia controlar — O senhor por acaso tem formação em demonologia? O senhor por acaso teve algum contato com possessões ao longo da vida? Estudou para isso?

— Bem, não bispo — o velho ficou sem graça e curvou a cabeça — Eu apenas quis...

— Então não atrapalhe, apenas obedeça as ordens.

— Senhores, por favor. O ambiente já está demasiadamente pesado para que entrem em conflito agora. Não permitam que as forças das trevas entorpeçam suas mentes, colocando-os uns contra os outros.

Quando fechou os lábios voltando a olhar para a porta, teve a atenção roubada por Alex Cotton, que parado às costas, sentiu uma forte pontada no punho. Cerrando os dentes, este não resistiu soltar um gemido, fazendo os três se virarem para ele.

— Cotton? O que há com você?

— Voltou a incomodar padre, apenas isso. — ele pressionou o pulso enfaixado, onde a ferida oculta parecia queimar — Eu... céus... Está ardendo bastante.

O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora