Capítulo 29 - Preto e Branco

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— Um corvo? — questionou o padre-diretor parado frente aos curiosos. Adiante, os vários cacos do vitral se espalhavam pelo piso, e os olhares projetavam-se por todos os lados. A noite de natal estava fria, mais fria que o costumeiro. O vento soprava trazendo flocos de neve pelo grande vão onde outrora estivera o Arcanjo, e Alex Cotton também não conseguia explicar o que pensara ter visto.

— Sim — Ele umedeceu os lábios, ajeitando o hábito — Um grande corvo escuro, ele... bem, não sei como entrou, mas no susto para sair, deu contra a vidraça e ela se partiu.

O padre-diretor o encarou por um momento mais.

— Mas um corvo? Você tem certeza? — O bispo os interrompeu, analisando a bagunça — Em Palência pássaros sempre rondam as vidraças das catedrais, e não há notícias de que partiram alguma. Principalmente do jeito que aconteceu a esta — Olhava assustado para os vários cacos coloridos pelo chão, e frente a eles, o quadrado intacto do que um dia fora o rosto da abominação.

— Deve ter sido um dos garotos — O frei Mantenedor passou o olhar pelo aglomerado de rostinhos a fofocar lá embaixo — Algum deles deve ter atirado um objeto contra o vitral.

— Não havia garotos por aqui — Cotton murmurou, sentindo o vento frio soprando as vestes — Apenas eu e o frei Beterrabas conversávamos quando aconteceu.

O padre caminhou por entre os cacos, seu hábito escuro sendo esvoaçado pelo vento. Então, entre os vários freis que ali estavam, ouviu-se uma voz retrucar baixinho:

— Um sinal de reprovação por termos realizado festa com tamanha comilança.

Todos os olhares se voltaram para o velho, que ergueu a cabeça fitando o padre.

— O que disse frei?

— Que esta ceia nunca deveria ter sido realizada padre — o homem resmungou uma vez mais — Que o nascimento de Cristo deveria ser celebrado com maior reverência, não com comilanças desnecessárias, e sim jejuns e orações.

O bispo limpou a garganta sentindo ali um grande equívoco.

— Quando nasceu, o menino Jesus foi presenteado por quem vinha visitá-lo frei — disse amavelmente, com o vento corando suas bochechas — A noite de nascimento do Senhor, deve ser celebrada com alegria, porque ele nos anunciou a salvação.

O velho pareceu não dar ouvidos àquilo, seus pensamentos pareciam reprovadores demais para ater-se a qualquer nova doutrina.

Então a voz do padre-diretor sobressaiu:

— Frei Mantenedor, providencie a limpeza disto e algo para isolar o vão até tomarmos alguma providência. E quanto a vocês... — se aproximou do corrimão, e encarou o aglomerado de garotos lá embaixo — Todos devem seguir para seus dormitórios.

Murmúrios descontentes soaram entre os internos, afinal, muitos esperaram pelo momento da ceia como quem espera pelo aniversário, e agora não poderiam sequer saborear algum dos assados.

Foi quando o Bispo chegou pelas costas:

— Padre, perdoe-me a intromissão, mas — ele fez uma pausa observando o homem se virar — Acredito que não seja para tanto. O que ocorreu esta noite foi apenas um imprevisto. Permita que a comemoração prossiga.

Todos ficaram em silêncio aguardando uma resposta. Apenas o som do vento podia ser ouvido, e então o zunido de sapatos vindo do corredor lateral. Quando Beterrabas se projetou entre eles, todos viraram as cabeças.

— Frei das hortas? — O padre deixou o Bispo, e o observou se aproximar desajeitado — Onde esteve? — questionou, e Beterrabas sentiu os olhos de Cotton postos sobre si.

O Exorcismo de Marlon Gayler [Romance Gay]Where stories live. Discover now