Capitulo 43

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Blue
Here is a shell for you
Inside you'll hear a sigh
A foggy lullaby

There is your song from me

• Joni Mitchell - Blue



ANGEL

 O gramado, as flores e até a garoa que caía construiu um ambiente prostrado. O frio não me incomodava, embora eu tivesse usando um vestido preto por cima da meia-calça que não fazia muita resistência a baixa temperatura.

Diversos sentimentos borbulhavam no meu interior enquanto eu tentava processar a nova realidade.

Eu nunca mais iria vê-lo.

A ficha só havia caído quando as pessoas foram se dissipando, a última rosa escorregando pelos meus dedos enquanto as lágrimas do Robert se misturavam com a água da chuva.

   Marina me lançou olhares discretos de preocupação, tudo porque não chorei. Enquanto ela chorara um mar inteiro, não consegui sair desse estado de espirito sombrio e quieto. No fundo, eu esperava que tudo fosse uma peça trágica, que quando as cortinas caíssem, vovô apareceria para tocar suas músicas no piano.

Eu não estava pronta para aceitar.

   Suspirei. Agarrar lembranças era o consolo para suportar todas aquelas pessoas estranhas dizendo seus pêsames em memória do vovô. Quem eles pensavam que eram? Ninguém parecia se lembrar dele quando sua mente travou uma guerra com ele mesmo.

Taylor e Grace apareceram com suas condolências e ar de arrependimento. Achei que os ver outra vez fosse trazer o pior de mim, mas, a indiferença comandou as minhas ações, resultando numa cordialidade de ambas as partes. Os dois disseram que sentiam muito pelo meu avô, embora senti referência a traição.

A única coisa esquisita foi o olho roxo de Taylor que ele jurou ter sido um "acidente". E não fiquei surpresa quando ele foi embora de mãos dadas com Grace. Aparentemente eles estavam juntos. Fiquei, genuinamente, feliz pela página virada, embora me sentisse mal por ela.

   — Querida, vamos? — Marina tocou meu ombro. Ela estava muito bonita de vestido preto, os cabelos ondulados soltos atrás das costas.

— Vou ficar mais um pouco. Você se importa?

— Como vai voltar para casa nessa friagem?

— Mãe, por favor. Preciso ficar um pouco sozinha.

— Marina, deixa a menina. — Robert ajeitou o blazer preto. — Angel não vai demorar, certo?

Isso me trouxe a lembrança do tempo que ele ficava contra ela para me defender. "Como assim não pode comer chocolate antes do jantar? Eu divido uma barra com ela para não estragar a refeição". Aí comíamos não só uma, mas duas ou três as escondidas, e se Marina descobrisse, ele terminava qualquer discussão dando um beijo na ponta do seu nariz.

— É verdade. Não vou demorar.

A minha mãe suspirou vencida. Por fim, beijou o meu rosto e pediu: "seja cuidadosa, sim?" Robert a abraçou para conduzi-la gentilmente até o carro.

Sozinha, eu agachei em frente à lápide segurando o guarda-chuva com cuidado. Fechei os olhos e visualizei o vovô me recebendo na sua casa com aquele sorriso mágico. O velhinho sempre usava seu chapéu da sorte enquanto alegrava o ambiente com as melodias de piano. Sons que faziam a vovó sorrir como se fosse jovem para sempre.

1994 - A canção Memória oculta LIVRO 1 (Privilegiados)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora