28 - Uma surpresa a cada degrau (parte 1)

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Na caverna, durante uma oscilação luminosa, tive a sensação de ter visto o rosto de Karl. Já na segunda vez em que isso aconteceu, notei a presença de Ulisses.

Isso é impossível, pensei, enquanto tateava as paredes rochosas, procurando alguma saída que me tirasse dali.

Depois de mais uma breve alternância em relação à luminosidade, a imagem de Ulisses regressou, acompanhada por dois focos de luzes brancas, iluminando tanto ele quanto eu.

— Sentiu minha falta, palmito? — disse ele, com um sorriso doentio, a uns cinco metros de distância.

Usando uma jaqueta preta, Ulisses estava descalço e com a voz mais grave do que me lembrava.

— Até que não! — recuei. — Mas agora que matou a saudade, já pode desaparecer.

— Desaparecer, é? — ele gargalhou. — Você continua um bobão! Tá se achando o príncipe, o escolhido, o salvador do universo, não é? Mas deixa eu te contar um segredo — abaixou o tom de voz, pondo as mãos ao redor da boca. — Eu vim fazer o que não fiz antes. Vou acabar com a tua raça.

— Eu não vou cair nessa... você não é real — tentei me controlar. Porém, naquele instante, comecei a me incomodar com o local. Era como se as paredes estivessem se fechando contra mim, embora eu soubesse que isso não estava acontecendo. — Vai embora daqui! Vai embora daqui!

Por mais que expulsasse Ulisses, ele permanecia me encarando com uma feição de psicopata, falando sobre o quanto todos estavam felizes desde que parti de Francis Uller. Escorando-me na parede, agachei-me até sentar naquele chão arenoso, onde era possível encontrar uma pedra ou outra pelos arredores. Tentei ignorá-lo de todas as formas, porém, Ulisses continuou presente, sem calar a boca. Suas palavras estavam me deprimindo.

— Ninguém lembra mais de ti, ninguém mesmo! Não há fotos, roupas, coleções de quadrinhos. Nada! Absolutamente nada! Tudo foi queimado, tudo virou cinzas, maninho... Mas não se preocupe, você vai ter um destino semelhante.

Ainda que me recusasse a acreditar naquelas palavras, de alguma forma, aquilo estava me atingindo. Enquanto aquele local ecoava as provocações de Ulisses, encolhi-me em posição fetal, pondo as mãos no rosto, sabendo que meu psicológico não aguentaria por muito tempo.

Aos poucos, ele começou a se aproximar. Mas isso não me apavorou. O que me surpreendeu foi vê-lo retirar um revolver prateado do bolso da jaqueta.

— Quer dizer que não sou real? — arregalou os olhos, erguendo a arma com as duas mãos, mirando meu rosto.

Naquele momento, gelei. Tudo o que fiz foi erguer a espada e me levantar do chão — mesmo sabendo que não resolveria nada.

— Palmito! Seja menos ridículo, vai... — provocou, aproximando-se outra vez.

— Não dê mais nenhum passo! — adverti, evidenciando a espada.

Ulisses riu, ergueu os braços como se tivesse concordado. Porém, no abaixar das mãos, imitou o som de tiros:

— Bang... Bang... Sabe o quanto sou bom de mira, não é? — dito isso, pôs o dedo no gatilho.

Sem saber como reagir, fiquei imóvel.

— Você não seria capaz de...

— Não, é? Acha mesmo, palmito?

De repente, o barulho do tiro. A arma disparou, com isso, meu ombro foi perfurado. Olhando para o sangramento, joguei a espada no chão, mas logo me toquei de que não existia dor alguma.

Por um instante, achei que teria mais disparos. Entretanto, o ambiente começou a girar, fazendo-me cair e rolar pelo chão. A partir disso, fui transferido para um novo local — sem a presença de Ulisses.

As árvores, o barulho distante de um cachoeira, o som de vozes conhecidas, que falavam sobre assuntos aleatórios. O acampamento, pensei.

Olhei para os lados, mas não acreditava. Pus a mão no ombro e notei que não havia nenhuma bala alojada. No entanto, eu ainda estava machucado.

Precisava de água, então, procurei. Contudo, mesmo sabendo onde ficava o rio, não consegui encontrá-lo nos primeiros minutos. Eu parecia estar dentro de um sonho confuso, em que as coisas fugiam do meu alcance. Com os lábios ressecados, eu respirava pela boca, enquanto olhava pelas redondezas, sem ter ideia do que fazer.

Quando pensei em desistir, notei que os meus pés estavam molhados. Em virtude disso, observei que me encontrava na beira d'água. Naquele momento, ajoelhei, juntei as mãos em formato de concha e, em desespero, mergulhei-as, tentando matar a sede, que parecia não ter fim.

Enquanto bebia, alguém empurrou minha cabeça na água, pressionando-a para o fundo. Com isso, fiquei sufocado. Sem fôlego, agitei-me em desespero, debatendo-me, não conseguindo puxar o ar necessário. Apesar do sufoco, aquele alguém não queria me ver morto, queria apenas se divertir com meu sofrimento. Por esse motivo, soltou-me minutos depois, deixando-me livre para vomitar o liquido ingerido.

Naquele instante, vi Karl. Mas como ele tinha chegado ali? Como eu tinha chegado ali? Estava distante de todas as respostas.

Assim que Karl se aproximou de novo, a ferida do meu ombro voltou a se abrir, como se eu tivesse levado outro tiro.

— Por que está fazendo isso? — perguntei, recuperando o fôlego. — Qual a finalidade?

— Detesto histórias com finais felizes! — afirmou, antes de acender um cigarro.

Apesar de termos nos desentendido muitas vezes, em momento algum ele havia sido agressivo. Ignorante, talvez, mas não violento.

— Isso te faz bem?

— Nem imagina o quanto — tragou, lançando anéis de fumaça na minha direção, o que me fez tossir.

Antes que o diálogo fosse prolongado, uma ventania se fez presente. E isso modificou o cenário. As folhas das árvores se tornaram cinzas e voaram. No lugar de todo o verde, surgiram rochas. O chão tremeu. Um buraco enorme e profundo surgiu. O cigarro de Karl atingiu a água, transformando-a em lava vulcânica.

— O fim se aproxima. Não acha? — disse ele, abrindo os braços.

Enquanto sentia o calor das chamas, tentava não olhar para baixo. Porém, era inevitável. A coloração avermelhada do fogo me trouxe lembranças que, inicialmente, não fizeram sentido. Lembrei-me da morte de Natanael. E, na minha visão, o sangue dele também se transformou em lava.

— Entendeu agora? É culpa sua! Veja, toda essa luta é em vão. Sabe disso!

Ao meu redor, vi imagens da guerra, mas não sabia se eram verídicas. Visualizei acontecimentos chocantes como, por exemplo, a morte de Salua.

Salua e outros dois tentaram impedir que encontrassem nossos aliados não selecionados para batalhar. Ela se perdeu e, enquanto despistava os inimigos, tornou-se alvo deles. O mais chocante daquilo foi saber que ela não teve um descanso rápido como muitos tiveram. Penduraram-na de cabeça para baixo numa árvore seca e, em seguida, atearam fogo.

Não vi o fim da cena, mas, diante das circunstâncias, deduzi o que tinha acontecido, principalmente por ter ouvido a seguinte frase:

— Crispim... as minhas flores, não esqueça.

Não éramos melhores amigos, mas se ela me enxergava como um herói. Então, tentaria ser um.

Ainda que o final não fosse o mais feliz de todos, não iria me entregar tão fácil. Ciente disso, fechei os olhos.

— Esse não pode ser o fim... Esse não pode ser o fim — repeti inúmeras vezes.

Meu gesto intensificou a fúria de Karl, que, por um instante, me puxou pelo braço. E mesmo tão próximo do fogo, não tive medo. Havia decidido que tudo era obra da minha imaginação.

— O que foi? Acha que não tenho coragem?

— Você, eu não sei — aproximando-me, segurei-o firme. — Mas eu... Ah! Eu tenho.

Dito isso, pulei contra as chamas, mas não fui sozinho. Segurando-o firme, eu o puxei comigo.

Reluscer - O SucessorWhere stories live. Discover now