03 - O intruso (parte 2)

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Vi os dois sumirem no horizonte com uma rapidez tão incrível que cheguei a duvidar se os conheci de verdade. Diante da pressa, levantei outras duas hipóteses. A primeira era que deveriam estar atrasados para algum evento importante. A segunda era que talvez estivessem fugindo de alguém — o que me deixava mais perto da morte, pois como Salua disse, eu estava acompanhado pela desvantagem.

A incerteza de não saber para onde ir me sufocava. Para todos os cantos em que virava, via sempre as mesmas coisas: uma fileira de árvores com folhas brancas, o riacho cristalino e os pássaros cinzentos que me seguiam.

Passados alguns minutos, quando achei que havia me decidido, fiquei abismado com o que vi sair do riacho! Um animal semelhante a um camaleão, mas com um casco preto nas costas, no formato de um coração deitado.

No início, não tive medo, porque apesar de gosmento, o bicho parecia inofensivo. Mas quando ele inclinou o pescoço e me encarou, acelerei os passos. Quanto mais eu caminhava, mais ele se aproximava. Logo comecei a correr.

Ao contrário de mim, o animal não corria, apenas saltava, mas seus pulos eram amplos.

Em decorrência da perseguição, saí em disparada sem olhar para a frente. Resultado: caí de cara numa lama escura e pegajosa. No instante em que virei para trás, percebi que o bicho havia diminuído o ritmo. Os pássaros que antes me observavam atacaram-no em bando.

Com um gosto desagradável na boca, levantei aos poucos, buscando equilibrar-me naquela área escorregadia. Tentei limpar o rosto com as duas mãos, mas ele permaneceu escurecido. Então concluí que ficar esfregando só pioraria a situação.

Depois do ocorrido, deduzi que o melhor a fazer era seguir os dois estranhos, pois conheciam aquele lugar e deveriam estar em busca de um local seguro. Era grande a chance de ambos me encontrarem primeiro, mas eu precisava me movimentar.

Por causa das pegadas no trajeto úmido, rastreei-os com rapidez e, apesar dos passos longos, não corri novamente. Precisava ser cauteloso. Pouco a pouco, percebi certas alterações no ambiente. Algumas das folhas brancas se tornaram azuis; outras vermelhas. Quando o vento as derrubava, elas dançavam no ar e demoravam para atingir a grama verde-esmeralda, que agora surgia.

Por um instante achei que os meus pés não aguentariam mais. No entanto, o pensamento alterou-se quando ouvi um grito de desespero:

— Socorro... Socorro! — era Salua.

Diante do apelo, fiquei apreensivo. Achei que fosse uma armadilha, mas como durou mais de cinco minutos, resolvi arriscar. Antes de evidenciar a minha presença, escondi-me atrás de um arbusto — ficando a observar numa certa distância.

Durante alguns segundos olhei para cima e notei que os pássaros continuavam me encarando. Mas o que me surpreendeu mesmo foi ver Salua sendo perseguida por um animal gigante, que estava de costas para mim.

Naquele momento, não vi Gaspar pelos arredores. Acreditei que ele tivesse fugido a ponto de abandonar sua companheira. O que, a meu ver, soava como injusto. Pois, apesar de ameaçado, fiquei convencido pela fraternidade antes demonstrada.

Pendurada numa árvore de médio porte, Salua implorava por socorro, e eu não sabia o que fazer. Esperava o momento certo para me revelar. No entanto, estava ciente de que, se eu demorasse mais um pouco, poderia ser tarde demais.

De repente, avistei um fruto apodrecido no chão. Então, eu o peguei e o atirei contra a cabeça do bicho.

— Deixe-a em paz, bicho papão!

Assim que o animal se virou para mim, notei que se tratava de uma fera. Ela pulou na minha frente. E, de perto, era mais assustadora do que pensei. Tinha olhos vermelhos e uma boca imensa, sem contar as garras gigantes. Movimentava-se como um lobo, mas seu corpo lembrava o de um gorila.

Logo Salua parou de gritar. Quanto a mim, senti o coração disparar.

Por que eu tinha feito aquilo? Era suicídio.

Antes que eu pensasse numa saída, a fera guinchou. E para intensificar meu medo, disse:

— Como se atreve a me desafiar?

Não tive forças para responder e nem a contrariar. Era como se eu estivesse ali, mas não estivesse. Foi como se a minha alma abandonasse o meu corpo.

— Corra, garoto estúpido! Salve sua vida! — alertou Gaspar.

Enquanto achei que ele tinha fugido, encontrava-se pendurado numa outra árvore, a alguns metros de mim. No momento em que olhei para Gaspar, notei que ele não estava com o machado. Por isso, procurei o objeto pelo chão, na esperança de usá-lo a meu favor.

Como não tive tempo para pensar numa solução, corri por um novo lado. Porém, não fui longe. A fera interditou o caminho. Tentei deslizar por baixo dela, mas isso não funcionou. O solo já não estava tão úmido.

Quando menos esperei, ela me enrolou em sua cauda peluda e me arremessou contra algumas plantas escuras, que amorteceram o impacto.

Apesar da circunstância, percebi que havia algo de errado. Parecia que aquele animal não estava agindo por vontade própria, porque não sabia se me atacava ou recuava.

Ao tentar levantar, fui impedido, pois na medida em que me mexia, cipós finos e resistentes me acorrentavam. Enquanto meus braços eram amarrados, um dos cipós pressionava meu pescoço, deixando-me sem ar. A fera se divertia, mas, ao mesmo tempo, demonstrava desespero.

Quando achei que finalmente iria embora, ela voltou, me encarou e passou a língua gosmenta contra o meu rosto, limpando-o. Acreditei que aqueles seriam os meus segundos finais. Mas, ao olhar no fundo dos meus olhos, em vez de me devorar, a fera partiu os cipós.

— Fuja! Corra para o Refúgio de Mislan! — ordenou com uma voz tenebrosa.

Antes que ela dissesse mais alguma coisa, foi interrompida por Gaspar, que atirou o machado contra as costas da fera.

Devido ao impacto inesperado, o animal não parou de se contorcer. Com a arma grudada no corpo, cambaleou pela floresta, aos gritos, deixando rastros de destruição pelos arredores.

— Você está bem? A sua boca está roxa — disse Gaspar, demonstrando compaixão.

Por mais que quisesse respondê-lo, não conseguia. Ofegante, olhava para os meus braços e via as marcas das cipós, sem acreditar que aquilo havia acontecido comigo.

Assim que a minha respiração normalizou, vi Salua descer com agilidade do ponto em que se encontrava. Ainda distante, ela gritou:

— Aquele monstro poupou sua vida! Por que fez isso? Quem é você?

Reluscer - O SucessorWhere stories live. Discover now