03 - O intruso (parte 1)

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Mesmo distante, conseguia ouvi-los de modo razoável.

— Não acho que ele seja perigoso — disse o ser feminino.

Ela tinha cabelos escuros, estava com uma trança que dava a volta na cabeça. Assim que a encarei, notei suas marcas vermelhas abaixo dos olhos.

— Quem não me garante que ele é um enviado de Farmug? — retrucou o outro jovem.

Ele, por sua vez, usava um gorro marrom e segurava um machado. Parecia ser o mais novo.

Quando reparei que estavam se aproximando da grade, recuei, pois desconhecia suas intenções. Apesar de ter uma voz suave, o do machado não parava de me encarar. Se a intenção dele era me deixar com medo, talvez nem precisasse se esforçar tanto.

— Você... ser humano! Eu sou... Dartion. Como chegou aqui? — em pausas, ele tentava se comunicar comigo como se eu fosse incapaz de compreendê-lo.

Não fazia ideia do que era um Dartion, mas tinha certeza de que estava diante de dois elfos. Afinal, passei a vida toda pesquisando sobre eles, mas nunca imaginei que os veria em carne e osso.

Antes que eu o respondesse, sua companheira interferiu:

— Já disse! Ele entende a nossa língua.

Olhando fixamente para a lâmina do machado, que refletia o brilho do sol, perguntei:

— O que pretendem fazer comigo?

— É você quem deve explicações! — disse ela.

— Não vão me assar numa fogueira ou algo do tipo, não é?

Até onde eu sabia, elfos não se alimentavam de carne humana. Contudo, diante daquela situação, eu precisava ter certeza. Sentia-me como uma presa encurralada.

— O quê? — ela riu. — Estou dizendo, Gaspar, esse humano é maluco.

Ao ter seu nome mencionado, ele colidiu o braço direito contra o esquerdo dela.

Utilizando a jaula como apoio, Gaspar tentava me encarar. Porém, o meu costume de evitar esse gesto era tão comum que, sem perceber, abaixei a cabeça.

— Ele não me olha nos olhos — disparou Gaspar. — Deve mesmo ser um enviado de Elmer Farmug.

— Como chegou aqui? Não sabe que os humanos foram banidos há tempos? — insistiu ela, elevando a voz.

Depois de tanta pressão, acabei falando sobre a praia, a mulher estranha e o mar. Não entrei em detalhes, disse apenas que fui atraído até o oceano, e que acordei ali.

Após ouvir minha explicação, ela comentou:

— Sei que eu não deveria dizer isso, mas, pensando melhor, acho que devemos libertá-lo e fingir que nunca o vimos. Já percebi que ele não diz coisa com coisa, vai acabar nos botando em perigo.

— Será que não entende, Salua? Ele é um humano... um HUMANO. E olhe só essa roupa! Não vê? São listras.

Dava até para entender que não gostavam de humanos, mas o que as listras tinham a ver com a situação?

— Ele não é problema nosso. E se o pegarem por aqui... Sabemos muito bem o que vai acontecer. Temos que manter distância. Não vale a pena arriscarmos a nossa liberdade por causa dele — concluiu ela.

— Tudo bem, Salua. Mas se o garoto for valioso, é bom lembrar de quem vai ser a culpa.

Sem demora, Gaspar ergueu o machado, deu dois passos para trás e golpeou as barras frontais da gaiola. Não precisou mais de uma tacada para que um grande buraco fosse aberto. A partir disso, fui libertado.

— Fuja enquanto pode! E não ouse a cruzar o nosso caminho outra vez! — advertiu ela.

A frieza das palavras de Salua me lembrou Ulisses. Porém, a cada momento em que ele vinha à minha mente, brigava comigo mesmo, pois queria apagá-lo das minhas lembranças. E por mais que isso me causasse dor, havia decidido que dali por diante tudo seria diferente. Se eu sobrevivesse, é claro.

As dúvidas me preenchiam. Queria interrogar os seres que estavam diante de mim, mas depois de ser tratado daquele modo, preferi me isolar. Afinal, sempre me dei melhor sozinho.

Gaspar continuava a me encarar de forma assustadora. Enquanto isso, Salua virou as costas para seguir seu caminho.

— Vamos, Gaspar. Ele não vai nos causar nenhum mal. A desvantagem o acompanha.

— Ele que não se atreva.

Gaspar resmungou ao mesmo tempo em que caminhou de costas. Até atingir uma distância confortável, continuou apontando o machado para mim.

Reluscer - O SucessorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora