11 - Agir como um leão (parte 2)

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— Algumas horas antes daquela coisa me atingir, eu ouvi algo que... — abaixou o tom de voz, aproximando-se de mim. — Por Alssami, eu não sei como dizer isso...

— Pare de enrolar, eu preciso saber do que se trata.

— Parece que, em breve, você passará pelo "Ritual de Transição" — disse ele, preocupado.

Sabia que a informação era importante, mas desconhecia o impacto dela.

Cruzei os braços e perguntei:

— Transição? E como é isso?

— Não sabe? — ofegou. — Como passou muito tempo longe e será o próximo rei, provavelmente terá que matar um leão para mostrar que tem sangue de líder. Também ouvi dizer que isso vai acelerar sua metamorfose.

Naquele momento, Gaspar mudou o modo de falar. E, talvez, no lugar dele, eu fizesse a mesma coisa.

— Não que eu desacredite no seu potencial, mas você não merece isso.

— Espere aí! Isso... só pode ser brincadeira, Gaspar! — gaguejei. Porém, pelo olhar dele, vi que se tratava de uma situação real.

— O pior não é isso, pelo que li sobre o seu mundo, pude concluir que os leões daqui são bem mais fortes — prosseguiu, cada vez mais rápido.

— Eu não vou sobreviver! É loucura. Nunca matei um animal, nunca cacei... Até tentei ser vegetariano. Gaspar, eu não nasci para fazer esse tipo de coisa.

— Então fuja! Ainda há tempo! Nunca concordei com isso. Mas é algo cultural, não dá para mudar do dia para a noite — pausou. — Ah, não...! — enfiou as mãos no couro cabeludo, enquanto franziu a testa. — Meu avô disse uma vez que todos os sucessores que tentaram fugir, morreram misteriosamente.

Perfeito, agora eu vou morrer de um jeito ou de outro, pensei.

Naquele instante, diversos Dartions passaram pelo nosso meio, sem ao menos pedir licença, interrompendo temporariamente o nosso diálogo.

— Não. Talvez não. Você passou boa parte da sua vida em outro mundo. Se encontrarmos um meio de te mandar de volta, talvez consiga ter uma vida normal.

Mesmo com a solidariedade de Gaspar, senti-me traído.

— Vamos andando — disse eu, tentando controlar a fúria. — Preciso ter uma conversa séria com Fred.

— Tudo bem, mas não comente sobre a possibilidade de partir. Não sei como ele ou os outros reagiriam.

Nem precisei andar muito para ver Fred sentado num banco de uma pequena praça. Gaspar, por sua vez, preferiu me deixar a sós com ele.

Aproximei-me discretamente, sentei no banquinho de madeira e disse:

— Por que não comentou sobre o ritual?

Não sei onde ele estava com a cabeça, mas Fred se assustou.

— Você só é desastrado nos momentos errados — olhou para a frente. — As coisas não são tão fáceis como parece. Se dependesse de mim, você nunca passaria por isso. Mas eu não posso impedir. Não conheço ninguém que possa.

— Faz ideia de quantas vezes eu já lutei com um leão?

— Não — entristecido, encarou-me. — Mas se não começar a agir como um, muitos inocentes vão morrer.

Fiquei em silêncio e, depois de um tempo de reflexão, levantei, seguindo pelo corredor que dava acesso à biblioteca.

— O que ele disse? — questionou Gaspar, que, naquele momento, estava acompanhado por Jen.

— Disse que se eu não fizer o que deve ser feito, muitos inocentes vão morrer... Não sei o que faço. Vale a pena lutar por algo que não vai dar certo?

— Você só precisa descansar — disse Jen. — O seu corpo ainda não está acostumado com toda essa movimentação.

— Jen está certa. Por mais que esteja longe da sua antiga casa, ainda tem a resistência de um humano.

— Tudo bem — respondi e segui andando de cabeça baixa.

Mesmo cansado, daquela vez não fui para o quarto. Ao invés disso, dediquei-me a andar pelo Refúgio. Havia vários locais por ali que eu ainda não tinha explorado.

Depois de tantas voltas, notei que as minhas energias estavam gastas. E quando acreditei que eu finalmente descansaria, algo me tirou o sossego. Na parte verde do Refúgio, avistei uma cerca. Ela era coberta por bambu e rodeava uma imensa árvore alaranjada. Antes, quis debruçar-me no chão gelado. No entanto, senti-me tão tentado a descobrir o motivo pelo qual ela estava ali, que ignorei o meu cansaço.

De alguma forma, aquela construção me prendeu. Foi como se algo do outro lado dissesse: "Vem... vem. Não tenha medo."

Em vista disso, segui pela trilha da grama até me aproximar da cerca. Como não tinha ninguém por perto que me explicasse o motivo da vedação, decidi encontrar a resposta sozinho.

Através de algumas brechas, espiei o que se escondia ali dentro. Mas, no início, não vi nada de interessante. As únicas coisas presentes do outro lado eram a árvore, a sombra dela e as folhas laranjas que cobriam quase toda a grama. Não havia motivos para seguir em frente. Porém, depois de algum tempo, decidi ultrapassar a barreira. Parecia ser um ótimo local para descansar.

Apoiando-me na cerca, olhei para trás, certificando-me de que estava sozinho. Então, ao confirmar a ausência de qualquer outro ser pelas redondezas, ultrapassei o limite.

Após chegar no novo lado, sentei debaixo da árvore como se estivesse me preparando para meditar — apesar de isso ser um comportamento raro. É fato que nunca tive paciência para realizar essa prática, mas isso não significa dizer que eu não a tenha feito por algumas vezes, ou pelo menos tentado.

Enquanto alinhava o queixo e quase me quebrava todo para deixar a coluna reta, fechei os olhos para encontrar o equilíbrio.

— Vamos lá, Crispim! É só interagir com a natureza — comentei em voz alta, encostando-me no caule robusto da árvore.

Esse poderia ter sido um grande momento de espiritualidade. Mas alguém o interrompeu ao dizer:

— Vamos?

Esforcei-me para não desfazer a posição em que estava.

— Quem disse isso? — abri um dos olhos.

— Quem? — questionou a mesma voz.

Notei que o som veio da parte superior da árvore. Então, ergui a cabeça e olhei para cima, mas a única coisa que vi foi um vulto atravessando os galhos.

Reluscer - O SucessorWo Geschichten leben. Entdecke jetzt