19 - A explosão (parte 2)

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A minha resposta gerou um grande alvoroço. Não tive forças para confrontar o olhar de Rafiq. Corri e empurrei todos os que estavam no caminho. Por sua vez, ele deve ter feito o mesmo, pois, quando menos esperei, estava próximo a mim, ordenando que eu parasse de me movimentar.

— O que disse? — indagou desacreditado. — Mas que tipo de brincadeira é essa?!

De costas, preservei o silêncio, porém, Rafiq insistiu:

— Vamos, rapaz! Responda! Exijo uma explicação!

Apesar da voz firme, naquele momento, ele demonstrou desespero.

— Eu poderia fazer isso — comentei —, mas não conheço tão bem a minha história. Talvez Mislan possa explicar tudo, Majestade. Aliás, ele sabe mais sobre a minha vida do que eu mesmo.

Por mais que tentasse não parecer arrogante, expressei-me como Salua. Acreditei que assim seria levado a sério.

— Mas foi o próprio Mislan quem me comunicou sobre a morte do meu filho...

Diante da afirmação, dei meia-volta e disse:

— Como isso pode ter acontecido? Mislan disse que não o vê desde que me entregou à sereia.

Naquele instante, observei Rafiq tão perdido quanto eu.

— O que sabe sobre Mislan? Onde ele está?

O que eu estava prestes a contar não era novidade para muitos deles. Por esse motivo, chamei-o para fora da caverna.

Temendo que eu fosse um impostor, alguém quis interferir:

— Majestade! Não acho que seja uma boa ideia. Não sabemos de onde ele veio. Lembre-se: foi por confiar num estranho que tudo desandou.

Se eu estivesse no lugar daquele Dartion, poderia ter feito o mesmo, então, não me ofendi com aquela colocação.

— Se quer conhecer a história, venha comigo — falei.

Sem hesitar, Rafiq passou por mim.

Por sua vez, aquele que se mostrou contrário tentou segui-lo, mas foi impedido por outros.

Lá fora, Rafiq me esperava. Ele se sentou na grama e pediu que eu fizesse o mesmo.

Antes de falarmos sobre qualquer coisa, tive uma sensação estranha. Na verdade, foi uma visão embaçada. Por um instante, vi diversos pés afundando no solo. Eles demonstravam pressa, pareciam fugir.

— Sei que a história deve ser longa, então já pode começar — disse ele, fazendo a minha mente regressar.

— Bom, quem quer que tenha visto, não foi Mislan. Ele se doou para salvar minha vida. Entregou a própria juventude em troca disso.

Logo expliquei toda a história para Rafiq.

— Faz sentido, mas tem outras coisas que ainda não se encaixam. Continue...

— Fui parar no mundo humano. Lá, fui adotado por um casal humilde. Eles me deram de tudo, mas, de certa forma, me sentia incompleto. Eu costumava ter muitos pesadelos e, quando isso acontecia, não saía de casa. Assim que descobri sobre a adoção, quase enlouqueci. Foi então que segui o chamado de Iris.

Pelas feições de Rafiq, diria que estava avaliando tudo o que eu dizia. Mas, ao ouvir o nome de Iris, retrucou:

— Não é possível! Então é verdade... Esse tempo todo acreditei que tinha perdido tudo, mas, não... Iris e Farmug são cúmplices. Conseguiram o que queriam.

Rafiq vasculhava o passado; fez-me compreendê-lo.

— Iris deve ter suspeitado de que Mislan era o único a quem eu entregaria o herdeiro. Ela se adiantou porque sabia que o mundo humano era a melhor opção.

— Então acredita em mim?

— Se Iris roubou a juventude de Mislan, levou o meu filho e trouxe de volta... Isso só pode significar uma coisa.

Daquela vez, eu não disse nada, apenas apoiei as mãos para trás.

— Vingança! — continuou. — Ela quer vingança. Iris jamais dividiria algo. É por isso que nunca se deu bem com as outras sereias. Farmug não é o único inimigo.

Dito isso, Rafiq me abraçou de forma acolhedora. E foi então que os meus olhos se encharcaram. Ele beijou a minha testa, disparando em me pedir desculpas. Diante da situação, eu quis saber como reagir, mas fiquei todo sem jeito. Não guardava mágoa dele. Todavia, naquele momento, através daquela abraço, senti que Rafiq nunca seria capaz substituir Miguel.

— Não precisa se desculpar — foi a única coisa que consegui falar.

Na entrada da caverna, vi o pai de Gaspar de braços cruzados. Ele assistia ao reencontro, mantendo o sorriso. Assim que virei o rosto, visualizei os mesmos pés de antes, mas tive a sensação de estarem próximos.

— Por que evita olhar nos meus olhos? — perguntou Rafiq, erguendo meu queixo na direção do sol. — Lembro de quando os seus olhos eram diferentes. Achei que nunca mudariam. Agora vejo que não existe mais divergência.

Diante da afirmação, fiquei confuso, pois, até onde sabia, a heterocromia permanecia comigo.

Eu tinha que ver para ter certeza. Então, após pedir-lhe para permanecer onde estava, corri para o lago. Ao ver meu reflexo na água, vi os meus olhos completamente azuis. Porém, depois de um minuto, eles voltaram a ser como antes.

Até então, eu ainda não sabia, mas a transição intensificou a minha audição e visão. Agora, cada vez que visualizo algo real, mas que esteja distante, os meus olhos ficam azuis. Cada vez que me esforço para ouvir algo, eles se tornam castanhos.

No lago, retirei a sujeira acumulada do rosto. E como consequência da minha autoadmiração através do reflexo presente na água, alguns me olharam torto.

Quando voltei para fora, notei que Rafiq e o pai de Gaspar estavam próximos. Eles olhavam para os lados como se esperassem algo acontecer.

— Fique onde está — advertiu Rafiq. — Isso pode ser perigoso! — por mais que eu tentasse, não conseguia parar de movimentar os pés. — Você é tão teimoso quanto a sua mãe! — reclamou.

— Qual o motivo disso?

Mal perguntei e logo vi uma estranha névoa se dissipando pelo ambiente.

Os dois se colocaram em posição de defesa. E, talvez, por impulso, quase atacaram o alguém que tomava a frente de muitos.

— Não! Esperem! Não façam nada! — gritei ao correr na direção deles.

De repente, Múcio surgiu da névoa. Ele carregava Soraia, que estava desacordada e ferida.

— Mas... o que aconteceu? — agitei-me.

— O Refúgio — disse Múcio, ofegante. — Eles invadiram e atearam fogo em tudo... Não sei se conseguimos salvar a todos. É o começo da nossa extinção. Não vamos sobreviver a isso!

Antes eu acreditava que não perderia mais nada, porque já tinham levado embora todas as coisas boas que me importavam. Mas, através daquela informação, percebi que desconhecia o conceito de perda.

Reluscer - O SucessorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora