14 - A morte (parte 1)

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Ao chegar no local combinado, outra vez, enfrentei uma multidão. E assim que vi a extensão da fila, confirmei que estava atrasado. Depois de infiltrar-me nela e ficar parado por um certo tempo, senti um toque no ombro.

— Sabia que não precisa disso? — disse a Dartion, aquela que, antes, segurava o bebê. — Se você quiser, sempre será o primeiro.

— Não... não — sorri, timidamente. — Isso vai contra os meus princípios.

Minutos depois, Fred apareceu.

— Está atrasado! — disse ele, arrastando-me.

— Ei! Isso é falta de educação, sabia? Fez eu me contradizer.

— Crispim, a vida é uma contradição — respondeu, sem parar de me puxar.

Depois de ser "forçado" a furar fila, logo chegou minha vez. Dentro dos recipientes havia alimentos que faziam meu estômago embrulhar, devido à aparência grosseira.

No momento da escolha, fui o mais cauteloso possível, pois só pretendia colocar no prato o que eu fosse comer. Quando achei que tinha visto de tudo, presenciei algo inimaginável. De repente, eu estava frente a frente com uma porção de larvas amareladas, que se contorciam sem parar. No início, tentei conter a rejeição. Porém, não foi fácil.

Enfim, servi-me com uma carne esbranquiçada, um molho vermelho e vegetais.

Não tão distante dali, existia uma mesa que me foi reservada. Após todos sentarem, observei que Gaspar havia optado pelas larvas. Em vista disso, evitei encará-lo.

— Gostou da comida? — perguntou Jen.

Quando percebi que era comigo, confirmei sem erguer a cabeça. Eu ainda estava envergonhado por tê-la deixado falando sozinha.

— Já entendi o porquê de ele estar assim — comentou Gaspar, de repente. — Sabia que essas larvas são uma delícia? Mamãe sempre disse que são ótimas para a vista.

Ele provocava, mas nem dei assunto, apenas devorei as tiras cortadas. Havia mesas por todo o local. E isso tornava o lugar barulhento. Dezenas de assuntos estavam em pauta.

Durante uma semana, a minha rotina foi saudar os Dartions que falavam comigo, ignorar quem se mostrava indiferente a mim, e rir daqueles que pareciam ter medo. Sim, às vezes, um ou outro mudava a postura quando me via por perto — como se eu fosse capaz de mandar alguém para a guilhotina. O fato é que, todo final de tarde, eu estava na parte superior do Refúgio. E, depois disso, costumava descer para jantar com Salua, Jen, Gaspar, Fred e Zambzug.

Após o terceiro dia, o clima pesou. Não tínhamos mais assuntos, não riamos mais, e Gaspar passou a se comportar enquanto comia. Eu sabia que o grande momento estava chegando, mas ao invés de planejar minha fuga, permiti que tudo acontecesse de modo natural.

No refeitório, na oitava noite, todos estavam quietos, inclusive os Dartions que rodeavam as outras mesas. O barulho mais intenso daquele lugar era o do arrastar das colheres.

O sabor da comida estava agradável, então não tinha do que reclamar. Assim que terminei, ergui a cabeça. Com isso, todos riram ao mesmo tempo. Bem que tentei entender o motivo, mas, antes, fui contagiado pelas risadas.

Depois de olhar para o rosto de cada um, notei que existia uma cadeira vazia ao lado de Gaspar. Então, virei para as outras mesas, procurando por Zambzug. Notando a ausência dele, nem tive o trabalho de citá-lo, apenas perguntei:

— Cadê ele?

— Tem certeza que quer saber? — interrompeu Salua.

Antes que pudesse respondê-la, Gaspar adiantou:

— Por ser um Domador, foi encarregado de preparar o leão para o ritual — vi a tensão nos olhos dele.

Através da informação, senti as pernas bambearem.

— E quanto a mim...? — questionei, confuso. — Ninguém comentou que seria hoje! Quem vai me preparar? Estão brincando, só pode!

Queria estar enganado, porém, naquele instante, todos ficaram em silêncio.

Para início de conversa, eu nem deveria ter tocado no assunto. Contudo, não pude controlar a ansiedade.

Por um momento, todos os que estavam à nossa volta se retiraram. Alguns me encaravam com um olhar de reprovação; outros pareciam sentir pena de mim.

Durantes longos minutos, minha única reação foi apoiar e tirar os cotovelos de cima da mesa.

— Acho que está na hora — disse Fred, com a voz enfraquecida. — Precisamos ir, Crispim!

O modo como me olhou me fez entender o recado. Gelei dos pés à cabeça.

— Tudo bem... tudo bem, já entendi! — gaguejei. — Agora, por favor, parem de me olhar assim!

Levantei de vez, mas precisei de uma mão para servir como apoio. Percebendo minha aflição, Gaspar sussurrou:

— Não se esqueça. Ainda temos uma saída.

Segundo Gaspar, eu ainda poderia fugir. No entanto, sentia que deveria ficar e assumir o risco. Estava ciente de que minha teimosia poderia me matar. Por outro lado, existia uma parte de mim que se dizia preparada para o momento em questão.

— Espere! Por que eles pararam? — perguntei ao perceber que Fred era o único a me acompanhar.

— Só o Farol pode seguir adiante — respondeu ele.

— Então é isso...? — olhei para trás. — Nenhuma palavra de incentivo? Obrigado, muitíssimo obrigado. Foi bom conhecê-los.

Percebi que eu não era o único a ficar perdido em meio à situação.

— Desculpe, Crispim — disse Gaspar, em pausas. — Não quero encarar isso como uma despedida. Acredito no seu potencial.

Salua, por sua vez, permaneceu calada. E talvez eu preferisse assim.

Enquanto Fred me chamava, Jen tentava falar algo. Porém, estava tão nervosa que se perdia nas palavras.

Quando ia me retirar de vez, fui surpreendido pela mão trêmula dela. De repente, Jen se aproximou mais do que o comum e beijou o canto da minha boca.

— Sobreviva — sussurrou ela.

— Vou tentar.

Chamado pela terceira vez, prossegui. E a última coisa que vi foram eles dando as mãos.

Fui encaminhado a uma pequena sala circular, rodeada por uma cortina grossa e escura, onde recebi outra vestimenta. Ali, encontrei um par de sandália revestidas de couro, com placas de bronze e tiras traçadas até a altura dos joelhos. Também encontrei uma calça, um cinto marrom; assim também como uma veste branca, de seda, com detalhes dourados nas mangas.

Enquanto trocava de roupa, pedi que Fred ficasse de costas. Eu sentia vergonha do meu corpo, embora não tivesse motivos.

Será que isso é um castigo por eu ter reclamado de tanta proteção? pensei.

— Pronto! Acho que estou pronto! — engoli em seco.

— Não, ainda não.

De repente, vi-o abrir um cofre, que estava camuflado na parede.

— Precisa usá-la.

Fred segurava uma coroa de prata, decorada por folhas de carvalho. No meio dela, existia um triângulo e, dentro dele, havia o desenho de um cata-vento.

— Isso vai me trazer sorte?

— Não que eu saiba. Mas depois de hoje, espero vê-lo usar por bastante tempo.

Dito isso, Fred me abraçou. E, naquele instante, senti um carinho fraternal por ele.

— Faça o que o seu coração pedir, ainda que isso te deixe a um passo da morte — aconselhou-me.

Reluscer - O SucessorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora