01 - Os primeiros passos (parte 1)

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Existia uma barreira à minha volta. E apesar de não ter ajudado a construí-la, sabia que desabaria. Eles me viram perto do muro, mas não entenderam o motivo. Era tentador espiar pelas brechas. Todavia, eu estava insatisfeito. Por isso, decidi subir.

Dentro da barraca, podia ouvir os ex-colegas de classe. Ao escutar meu nome, deixei os papéis de lado e foquei naquela conversa.

— O olho de gato? Sério...? — uma gargalhada interrompeu. — É. Ele parece um anjinho, mas é tão aéreo quanto um astronauta — finalizou Filippa.

— Já chega! — disse Carina. — Nenhum de vocês é próximo do Crispim para dizer essas coisas. O que ele fez, hein? Faz dez minutos que não param de falar mal dele.

— Confesse, Cacá. Você tem uma quedinha pelo olho de gato, não é? — insistiu Filippa.

Não sei qual foi a reação de Carina. Porém, depois de um breve silêncio, ouvi risadas. Tentei enxergá-los, mas só vi as chamas da fogueira.

— Sabe, ele é esquisito e quieto demais. Talvez seja um sociopata — argumentou o rei da hipocrisia.

Foi fácil reconhecer aquela voz irritante. O pior foi ter que aturá-la, pois, durante meses, insistiu para que eu o ajudasse em algumas disciplinas escolares — noventa e cinco por cento delas.

Não me incomodava em ser o assunto principal. O que me tirava do sério era a falsidade daquele aproveitador.

Por entender que a conversa era antiga, parei de dar atenção. Grudei um desenho na parte superior da barraca. Em seguida, deitei-me, cobrindo parte do corpo. Liguei e desliguei a lanterna por diversas vezes, apontando-a para as imagens que criei.

Como saíram logo, voltei a questionar-me. Eu estava onde queriam que eu estivesse, mas meu lugar não era ali. Depois de pensar e repensar, finalmente agi.

Antes de desfazer a barraca, juntei os meus pertences e, ao colocar a mochila nas costas, fiz questão de visitar Karl Venudo.

Naquele momento, eu baguncei o cabelo, desajeitei as mangas da camisa e caprichei na cara de louco. Para completar, retirei o canivete do bolso da calça e o elevei, aproximando-o do meu rosto.

Com os olhos avermelhados e bocejando como se fosse devorar o mundo, Karl saiu da barraca, resmungando baixinho.

— Ei, Karl — disse eu, forjando um sorriso doentio. — Já compartilhou segredos com um sociopata?

— Quê?! — esfregando os olhos, mostrou-se assustado. — Que merda é essa, olho de gato? Enlouqueceu, foi?

— Ué, mas você não disse que eu sou um sociopata?

Apontei o canivete para ele, movimentando-o como se desenhasse um crucifixo em pleno ar.

Olhando para o objeto cortante, ele se afastou. Então, diante daquela reação, furei o dedo mindinho da mão esquerda. Em seguida, abaixei-me e pinguei o sangue sobre as folhas de hortelã ali presentes. Depois disso, arranquei-as e as mastiguei de boca aberta.

— Hummm! Tem um gosto incrível! Acho que o segredo está no sangue. Não quer provar? — prossegui.

Karl, por sua vez, permaneceu na defensiva. Tremendo os lábios, não conseguia dizer nada.

— Bom, de qualquer forma, prefiro as folhas de pinheiro! — continuei.

Ainda que me sentisse desconfortável, era evidente que eu estava tentando assustá-lo. Queria dar uma boa lição em Karl, mas sabia que não valeria a pena. Ele tinha um rosto tão plastificado que, se alguém amassasse, daria trabalho para normalizar. E, outra, seria injusto bater em alguém incapaz de diferenciar a esquerda da direita.

Reluscer - O SucessorWhere stories live. Discover now