26 - O primeiro ataque (parte 1)

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Em meio a tanta tensão, voei por cima de mim mesmo e só desci quando tropecei na realidade. Assim como muitos, ajudei no que podia e no que não podia.

De certa forma, sentia-me preparado. Entretanto, se eu fosse analisar tudo o que já tinha vivido, notaria que a inexperiência também é uma forma de crescimento, por mais árduo que seja o percurso.

Após o pronunciamento de Rafiq, nos foram entregues armas, roupas e tudo o que precisaríamos para seguir adiante.

Ao receber a vestimenta das mãos de Fred, notei que ela não era tão leve. Revestida de couro, possuía diversas camadas. As luvas estavam cobertas por metais e, além de termos proteção para os ombros, os joelhos também ficavam protegidos. Talvez o pecado tenha sido a insuficiência dos capacetes. Como não tinha para todos, concordamos que entregaríamos aos mais "vulneráveis". No entanto, contra a minha vontade, acabei recebendo um.

Por mais que a armadura fosse pesada, todo o treinamento valeu a pena, pois conseguia me movimentar com mais rapidez.

— Preparado? — esbarrando em mim, Natanael perguntou.

Antes disso, ele estava ao lado de Slian, debatendo um assunto que não me interessava.

— Desculpe. O que disse? Estou meio distraído hoje.

Nem sabia que Natanael e Slian se falavam, mas não fazia diferença. O que me surpreendeu foi o humor de Natanael, que mesmo naquela situação, conseguia rir.

— Distraído? Só hoje...?

Ouvindo isso, Slian mostrou-se confuso, visto que desconhecia meu lado "aéreo".

Depois de forçar um sorriso, passei entre eles, indo até o lado de fora. Estava perto de amanhecer, o céu se dividia entre o laranja e o vermelho. Como poderia ser a última vez em que veria aquilo, aproveitei o momento. Em alguns minutos, eu não era mais o único a estar ali.

De repente, uma mão se encaixou na minha. Com isso, virei o rosto.

— Você não seguiu o roteiro — disse Jen, pressionando meus dedos. — Era para ter ido atrás de mim e dizer que eu estava errada.

— Não me culpe por ignorar os livros românticos.

Sacudi as nossas mãos. Então, Jen apoiou a cabeça no meu ombro. Em seguida, fez uma pergunta que me surpreendeu.

— Se o amanhar não chegar, o que faria diferente caso pudesse voltar no tempo?

Diante da indagação, fiquei em silêncio por alguns segundos. E mesmo despreparado, formulei uma resposta:

— Eu tinha uma lista de coisas que gostaria de ter feito. Só que, agora, não tem mais serventia. Queria viver da arte, viajar o mundo, conhecer outras culturas. Mas acho que só mudaria uma despedida — suspirei. — E você?

— Queria ter feito mais amigos, ter vivido um romance. Não sei ao certo... — aproximou o rosto do meu.

Ainda que o meu sentimento por Jen não fosse tão intenso, me senti sensibilizado a tocar os lábios dela e fui correspondido com um beijo. Enquanto nos beijamos, os raios de sol se fortalecerem. Parecia que o universo estava tentando nos unir a qualquer custo.

— É uma pena — sussurrou ela, interrompendo o gesto. — Poderia ter sido uma grande história de amor.

Ouvindo-a, fiquei sem palavras. O fato é que eu não estava ali para viver um romance, não naquele momento. Por outro lado, não queria magoá-la com a primeira frase que saísse da minha boca. Em virtude disso, repeti o beijo de modo mais lento.

Assim que o gesto acabou, reparei que éramos observados por muitos, inclusive Soraia, que, quando me viu, abaixou a cabeça e andou para trás.

Não sei como o meu rosto estava, mas tenho certeza que, naquele momento, fiquei vermelho. Eu não sabia para onde olhar, fiquei sem saber como reagir.

Meia hora depois, juntei-me aos outros para a confraternização da bebida da vitória, compartilhada em momentos decisivos. Segundo os Dartions mais antigos, Uvulsitam, como é chamada, transmite vitalidade e sorte para aqueles que a apreciam.

Com uma cuia em mãos, alguns passavam com o balde cheio do líquido.

Perto de mim, estavam Jen, Salua e Slian. Natanael ficou em outro grupo. Fred ajudava com o repasse da bebida. Lembro que na minha vez, o líquido acabou. Então, Fred foi buscar um novo balde. Contudo, assim que ele voltou, trouxe somente duas cuias com a quantidade suficiente para mim e para Jen. Afinal, só restavam nós dois.

Ao receber a cuia, aproximei o objeto do rosto e observei a parte interna. Em relação à cor, Uvulsitam lembra vinho. Mas o sabor é adocicado. Depois de eu ter bebido, foi a vez de Jen. E quando isso aconteceu, tive a leve impressão de vê-la desconfiada. Porém, não hesitou. Assim que a confraternização acabou, Fred passou duas vezes por nós como se fôssemos desconhecidos.

Antes que eu pudesse me afastar da caverna, quis ver Gaspar pela última vez. Contudo, na metade do caminho, senti uma pontada na parte lateral da cabeça. Em vista disso, encurtei os passos enquanto pus a mão na área afetada.

— Ei, para onde está indo? — gritou Fred, aproximando-se.

De longe, Fred parecia normal. No entanto, assim que  se aproximou, notei que ele estava com os olhos trêmulos. Parecia atordoado, impaciente, como se tivesse feito algo terrível.

— O que aconteceu, Fred?

— Crispim! — segurou o meu braço.

— O que está fazendo?

— Eu sinto muito...

Tentei me desprender de Fred. No entanto, ele me segurou com mais força ao dizer:

— Pode me odiar o quanto quiser, mas é pelo seu bem.

— Do que está falando...?

Naquele momento, Fred tentou se explicar, no entanto, não entendi o que ele disse. Aos poucos, perdi o foco. De repente, as coisas giraram, as palavras se distanciaram, tudo se desintegrou. As minhas pernas começaram a tremer. Era como se eu tivesse carregando algo pesado sobre os ombros.

— O que está acontecendo? O que fez comigo...?

Caí de joelhos. Senti como se eles estivessem pressionados contra milhares de agulhas, sem falar do gosto amargo na boca. Depois disso, perdi os movimentos e boa parte da visão. Tudo o que vi foram imagens embaçadas. Não adormeci, mas perdi a noção do tempo.

Reluscer - O SucessorWhere stories live. Discover now