Ceres - O Retorno Da Escuridã...

By erika_vilares

152K 13.4K 58.7K

TERCEIRO LIVRO DA SÉRIE AS ADAGAS DE CERES Após o hediondo banho de sangue e o regicídio ocorrido no reino no... More

Prólogo
Capítulo Um - Parte I
Capítulo Um - Parte II
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Conspirações Cerianas agora no INSTAGRAM!
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta - Parte I
Capítulo Trinta - Parte II
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Nos capítulos anteriores das Adagas de Ceres...
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Nove - Parte I
Capítulo Trinta e Nove - Parte II
Último Capítulo - Parte I
Último Capítulo - Parte II
Último Capítulo - PARTE III
Agradecimentos + Novidades
PRÉ VENDA

Capítulo Trinta e Oito

2.6K 182 1.9K
By erika_vilares

Capítulo Trinta e Oito

Após desenhar delicadamente a forma da lua crescente com a tinta negra no centro de sua testa, em homenagem a despedida à Lydia kan Una, Mia Norwood endireitou seu corpo diante ao espelho, e deixou um longo suspiro afugentar-se de seus lábios. Os desenhos sobre a face que contornavam suas sobrancelhas, e as tatuagens ao longo do corpo mostravam alguém inteiramente diferente de quem ela conhecera. Não era mais capaz de ver a princesa Amélia, não se vestia mais como ela, não agia mais como ela, não pensava mais como ela. Diante ao seu reflexo via uma guerreira Kadawgi, filha do Sol e da Lua, a Comandante Eklissi. Porém, somente naquele preciso momento, Mia foi capaz de compreender: não importava o traje ou a armadura que usasse, independente de quem fosse, seu coração permanecia humano, sujeito as piores dores por tornar a perder alguém.

Segurou as lágrimas ardentes que escalaram até seus olhos, não deveria chorar. Não poderia, Lydia fizera seu sacrifício em nome da causa. A decisão tomada pelo bem comum dos povos, por isso Mia apenas deveria se conformar e honrá-la. Mesmo que seu coração doesse profundamente com a relação materna que nunca poderiam ter.

Estava profundamente perdida nos seus pensamentos e somente notou a presença de Lucky Berbatov quando este já estava atrás de si. Vestia negro, e assim como ela, possuía diversas tatuagens pelo corpo, com o desenho do sol pairando na sua testa. Ela abaixou o olhar desnorteado, retomando seus movimentos esforçados e alcançou o jaspe vermelho sobre a penteadeira, colocando-o em volta do pescoço.

– Apenas mais alguns instantes – ela pediu, deixando escapar uma grande massa de ar pela boca.

– Leve o tempo que precisar – Berbatov murmurou, fitando-lhe com aqueles protetores olhos amarelados, cheios de remorso, um olhar que soubera reconhecer desde a primeira viagem juntos. – Ninguém pretende começar sem você.

Ela aquiesceu, selando os lábios.

O ladrão estudou o quarto, com um olhar desnorteado, e sentou-se sobre a cama, observando-a através o espelho.

– Eu sei que me mantive quieto – ele arfou, numa voz pesarosa, repleta de culpa e raiva. – Porém eu sinto que minhas palavras não serão capazes de consertar nada... Eu sinto muito... Sinto muito ser incapaz de evitar tantas mortes, e sinto muito por você perder tantas pessoas... Sinto muito pelo que fiz, por não ter controlado minhas emoções e ter resultado naquilo...

– Isso não é sua culpa, não é de ninguém – Mia suspirou, com uma grande pressão no peito, fazendo o esforço de manter a sua voz límpida. – Depois de tudo que você descobriu, somente uma pessoa sem coração conseguiria manter sangue frio num momento como aquele. O que fizemos foi arriscado, porém necessário. Guerras exigem sacrifícios, e Lydia quis fazer o dela. Não há nada que ninguém poderia fazer.

Berbatov se aproximou colocando as mãos sobre seu maxilar e arqueando o rosto dela para ele.

– Você não precisa fazer isso... Não na minha frente. Não estamos falando de comandante para comandante, está falando comigo, de ladrão para princesa... Vocês estavam mais próximas que antes, e ela era sua verdadeira mãe, Mia – pronunciou cada palavra com cautela, observando seus olhos marejados.

– E ela se foi – ela respondeu sem ar, numa voz embargada. – Assim como Cirelli, meus pais, Rosa... Eu não quero começar a contar corpos, e terminar por sentir o peso dessas perdas porque eu tenho medo de não saber continuar... Por isso, eu me foco no que ainda tenho, você, meus irmãos, e um povo inteiro que me cerca e acredita em mim. Uma causa e uma guerra, que devo travar para provar que todos que foram, não foi em vão. Era o que Lydia iria querer, foco, não lamurio.

Lucky anuiu e deixou um profundo beijo na sua testa, retirando do bolso um papiro e colocando-o na mão dela.

– O que é? – perguntou ao reabrir seus olhos.

– Swamalli disse ter visto Lydia jogar fora essa carta no dia de nossa união. E como um bom velho enxerido, ele fora bisbilhotar. É uma carta, de anos atrás. Acho que lhe fará bem.

Boquiaberta, ela examinou o papiro amassado, e reconhecia a caligrafia polida de sua falecida mãe.

– Eu deixarei você ler em paz – assim ele se direcionou para a porta.

Birdy – Skinny Love

– Lucky? – o arqueiro lhe fitou por cima do ombro. – Eu te amo.

Ele abriu um pequeno sorriso, como se ainda tivesse dificuldade para acreditar naquelas palavras, parecia surpreendido a cada vez que a ouvia dizer.

– Eu também a amo, Norwood.

Mia deu um meio sorriso e o viu sair, seguiu para sua cama com uma grande ansiedade dentro do peito, respirou fundo e se pôs a ler.

"Querida filha,

Aprendi devidamente muito cedo que a vida é feita de altos e baixos, e por diversas vezes, eu me deixei levar pelos baixos. E após incontáveis insistências da parte de sua avó, Cirelli, que teme os abismos de meu coração, venho lhe escrever essa carta no seu décimo aniversário, consciente que você nunca a lerá.

É uma verdade absoluta que ser mãe está longe de ser uma tarefa fácil, e pelas minhas próprias experiências como filha, terminei por temer profundamente a maternidade. Entretanto, por exigências maiores, talvez chamadas de destino, eu me tornei mãe de uma garota extraordinária, com um grande destino dourado selado por sua frente num mundo cruel.

Eu me pergunto se você é feliz, se gosta do que a vida lhe proporcionou, tornando-a princesa herdeira de Skyblower, vivendo com seu pai e sua mãe adotiva... Eu acredito que, de alguma forma, era o melhor destino que poderia ter. Distante da tristeza e da raiva dos Kadawgis...

Tenho consciência de que eu não fui nem mesmo a metade da mãe que você merece, e talvez, isso tenha sido para o melhor, porque desta forma, eu nunca teria a chance de magoá-la."

Mia fitava a pele cadavérica de sua mãe velada sobre a pira, sendo destacada pelos intensos cabelos de cachos negros. Dobrou-se para acariciar com cuidado uma mexa ondulada. Ainda era capaz de ouvir sua voz lhe murmurando o resto de sua carta:

Talvez exista um lugar, onde a vida é mansa e os erros menos drásticos, um lugar onde eu possa ser a mãe que você sempre mereceu. No tempo certo. Porque mesmo que nunca me senti preparada para ser uma, não houve uma única coisa que foi capaz de preencher o vazio que senti ao longo desses dez anos por nunca ter tido a chance de conhecer quem você é e o que se tornará.

E tudo que mais desejo, independente do que esta vida lhe reserve é que ame, e seja amada, que ria até sua barriga doer e que sinta na flor da pele o que é felicidade. Mesmo que essa seja efêmera, são estes pequenos momentos que fazem uma vida ser grandiosa. Acima de tudo, aqui deixo-lhe minha benção, o legado que caiu sobre meus pais comigo, e o que envolve nós duas, não atingirá sua próxima geração. Você compensará todos os erros e fará deste mundo um lugar melhor para seus filhos.

Com amor,

Sua verdadeira mãe, Lydia

– Hoje sua lua se apaga, mas no meu coração, você sempre brilhará. Que seja pleno seu descanso, e até breve, mamãe – Mia pronunciou, fechando seus olhos e murmurando o único feitiço que faria o fogo aceitar o corpo da sacerdotisa, em seguida colocando chamas cresceram de suas mãos e consumiram a madeira.

II

Emily Winston sentia suas pesadas pálpebras fazerem o esforço de levantarem-se, porém ainda sofria fortes vertigens e tivera respeitar seu devido tempo. Vislumbrou, com uma grande confusão, as folhas das árvores chacoalhando-se levemente com o vento debaixo do amplo céu azul. Piscou inúmeras vezes até conseguir retomar a clareza da visão, e apenas pelo cheiro que invadiu seu olfato, ela soubera no mesmo instante onde estava: no Bosque de Aeon.

Ergueu seu corpo num espasmo, lembrando-se do ataque sofrido, e com o olhar assustado encontrou uma silhueta de um homem que mexia com a fogueira a beira do onírico lago de Lânio, sua água azul como o céu tornava o local paradisíaco com as tonalidades vivas do verde que lhe cercava. Entretanto, seu olhar não se distraiu com tamanha beleza, eles permaneceram fixados no homem que estava de cócoras mexendo no fogo. Ele lentamente se pôs em pé, e Emily esforçou-se para fazê-lo também, pasmada. Rodopiou lentamente sobre suas botas e fitou-lhe com seus olhos castanhos:

– Olá, Emily. Já fazem longos anos, irmã – Kellan, pronunciou numa voz terna.

Emily levou seu tempo para acreditar que via devidamente seu irmão gêmeo diante seus olhos. Já fazia três anos desde que nunca mais tivera nenhum contato com ele, não após a trágica morte de seu pai.

– Kellan – suspirou, sendo atordoada por um turbilhão de saudosistas memórias perturbadoras.

Sentiu-se momentaneamente paralisada, mas era primordial que guardasse o sangue-frio.

– Por que estamos aqui e onde estão as bruxas?

– Isso é um assunto familiar, Emily. E eu acreditei que deveríamos estar num local familiar.

– Onde está Freya?!

– Sua amiga feiticeira está bem, com as bruxas.

– Apenas acreditarei nas suas palavras após vê-la com meus próprios olhos, retornaremos ao Clã.

Kellan abaixou os olhos, deixando um sutil movimento dos lábios, estudando sua irmã.

– Três anos após nosso último encontro, o mesmo que destruiu nossa família em pedaços, e essa é sua principal preocupação? Com uma feiticeira?

Involuntariamente, lembrou-se de seu pai segurando com rudez a mão da filha, seus gritos apavorados e a explosão de poderes que fizera o bruxo sucumbir a morte, o choro da bruxa dolorido atraiu o irmão para casa, mas este rapidamente perdeu inteiramente o controle ao notar a morte do pai e atacou sua irmã, causando a morte do bebê que ela carregava na barriga.

Emily engoliu em seco. Estavam nas mãos das bruxas, e não sabia o que aquilo significava algo ruim. A bruxa tinha dado as costas para seu clã para ir a busca da reencarnação da sacerdotisa de fogo.

– Como posso saber se você não está apenas tentando ganhar tempo?

Kellan abaixou o queixo para esconder o malicioso sorriso que desenhou seus carnudos lábios, e confessou numa voz lobriga:

– Tempo – saboreou a palavra –, tempo é o que nos falta, irmã. Mas se tanto desconfia de minha palavra, olhe o lago.

Receosa, a bruxa o fez. Seguiu no passo lento sobre a terra afofada pela grama e se aproximou da água cristalina, na mesma medida que as correntes de vento aceleravam, chocando-se sobre a superfície liquida e cristalina da água e ali formando uma espécie de portal onde a bruxa conseguia ver Freya presa numa sala sozinha amarrada, tentando escapar das suas cordas. Mas, ilesa.

Emily umedeceu os lábios, pensativa. Se seu irmão tivesse se ligado com algum membro da família Willow, aquela imagem que via poderia ser uma mera ilusão. Entretanto, mesmo que estivesse concentrada, não sentia a presença de nenhuma bruxa no local. Teria ele aprendido sozinho um feitiço de ilusão? Duvidava, afinal, isso ia contra a regra da natureza deles.

Os bruxos gêmeos eram de extrema raridade quando ambos pais eram bruxos, pela simples razão de que já no ventre da progenitora, os bebês possuíam magia correndo no corpo a medida que este ia se formando. A magia que circulava nas veias da mãe era partilhada com os filhos, ajudando o desenvolvimento deles. Era um período de extrema dificuldade para a mãe bruxa, pois era a fase que se encontrava extremamente enfraquecida e vulnerável. Quando se tratava de gêmeos bruxos, o perigo se triplicava, jogando com a possibilidade da morte de um dos filhos, ou da mãe.

Fora isso que matara sua mãe. Seu corpo não suportou a violência do parto, e sucumbira a morte no mesmo dia em que Emily e Kellan vieram ao mundo dos vivos. Criados pela irmã mais velha, Eliza e seu pai Galen Winston. Talvez pela falta de uma figura materna, Emily cresceu apegada com sua irmã, e seu irmão gêmeo idolatrando seu poderoso pai.

E assim seguiram suas vidas, até o dia em que Eliza não suportou mais conviver com os ideais das bruxas e tomou a decisão de fugir do Clã, deixando Emily para trás com seus meros nove anos de idade. Gerando o início do maior medo do pai: quem lhe substituiria como membro do conselho das famílias originais.

Segundo a tradição, deveria ser o primogênito, por ser mais velho e mais experiente. Mas a tradição era impiedosa com os gêmeos, que acreditavam que era a alma de um bruxo dividida em dois corpos, por isso, para que eles pudessem honrar a posição como um dos chefes do clã, deveriam batalhar, e o vencedor receberia sua transfusão.

Um dos gêmeos viveria com uma escassa magia, assim como suas gerações seguintes, enquanto o outro seria poderoso garantindo a linhagem mais forte como representante da família.

Com o passar do tempo, a inquietação do pai crescia, tinham lhe restado dois filhos, um seguia cegamente suas ordens e a outra parecia sempre duvidar de suas palavras, Emily que sempre fora mais ligada com a irmã mais velha, diferente dos demais bruxos, não a via como uma traidora do Clã.

Emily guardara aquele segredo, mais nunca se esqueceria da promessa que fizera para sua irmã um dia antes de sua partida. Seguiria seus passos para que um dia elas pudessem se reencontrar. E no seu aniversário de onze anos, tivera um sonho violento e brutal, com fogo e sangue, onde sua irmã lhe deixava seu legado segurando agressivamente nas suas mãos. Quando acordou, sentia-se diferente. Mas, ao mesmo tempo vazia. Foi uma questão de tempo para perceber que nas suas veias, não existia mais somente sua magia, como a de sua irmã. Tornando-a mais poderosa, e claramente, mais perigosa na visão de seu pai.

Para erradicar suas suspeitas, o pai procurou por sua filha mais velha, e descobrira que ela tinha desaparecido daquele mundo, levando a acreditar na sua morte, até ouvir os boatos que tinha sido queimada viva pelo sul. Porém, sentia sua presença na filha mais nova, compreendendo assim que Eliza tinha feito uma transfusão de seus poderes a Emily.

A tensão no núcleo a família Winston estava fadada a crescer e tornou-se num verdadeiro tornado quando o Clã das Bruxas tivera de decidir se aliar com o Império de Gardênia. No trágico dia da morte de seu pai, a transfusão não foi feita. Assim, Emily conservou seus poderes e o da sua irmã, e seu irmão somente os de seu nascimento.

Assim, apesar de serem gêmeos e nunca tiveram que batalhar para saber quem seria o irmão que guardaria os maiores poderes, Emily era mais forte que Kellan, estava certa de derrotá-lo caso precisasse, Kellan sabia disso.

Por que então atraí-la para longe do Clã, o único lugar que ele poderia estar em avantajem? Tentou concentrar-se para procurar a presença de outra bruxa, mas não havia nenhuma magia além de seus irmãos. Nenhuma outra bruxa estava ali. O que ele pretendia?

– O que você quer de mim? – perguntou friamente, ainda com os olhos fixados na imagem de Freya na água.

– Uma trégua – ele confessou, ganhando o olhar atônito de sua irmã gêmea.

O corpo de Emily estremeceu num espasmo e ela cerrou os olhos, incrédula. Apenas a menção daquela palavra vinda dos lábios do seu irmão gêmeo lhe deixara agitada. Nunca pensou que gostaria de ouvir tais palavras até serem ditas. Talvez devesse encarar os fatos: não era uma mulher batalhadora. Estar em constante conflito com alguém lhe era de extremo desconforto. Estava vivendo um sonho ou apenas estava sendo enganada?

– Uma trégua? – repetiu, incerta do que ouvira. – Após todos esses anos... por que?

– Você não esteve aqui, Emily. As bruxas conheceram um verdadeiro inferno, eu conheci um verdadeiro inferno. Sem nosso pai e sem você, foi como ter sido abandonado na maior solidão do mundo. Eu tentei odiá-la, todos os dias, e culpá-la pela morte dele. Juro pela Deusa-Mãe que tentei. Você tinha dado as costas para nosso Clã, e se recusava ver o que estava acontecendo. Você deveria ter ficado ao lado dele, e não se rebelado.

– E deixar Gardênia nos dominar?! – ela vociferou, aturdida. – Nos manipular?!

– Ele estava morrendo, Em – Kellan anunciou. – Nosso pai não quis te revelar, mas estava com uma doença terminal. Estava desesperado, e apenas queria garantir que dentre as opções, nós pudéssemos sobreviver com a menos pior delas. Ele queria garantir a segurança de seus filhos e do neto que nasceria.

O olhar perturbado da bruxa se perdeu atrás de tantas lágrimas, e ela fitou seu irmão, incrédula. Uma dor perfurava seu coração, de forma tão brutal que ela deixou gemidos escapar dentre seus lábios entreabertos.

– Ele entendia a ligação que você tinha com Eliza, porém, ele era o chefe da família e tinha tomado sua decisão. E isso foi a razão pela qual, ele faleceu rapidamente no incidente que vocês tiveram.

Emily dobrou em seus joelhos e involuntariamente desabou num choro doloroso, porque subitamente tinha sido apanhada por aquela ventania turbulenta de traumas escondidos. Era como se um peso saísse de suas costas, e outro fosse colocado no lugar. Não tinha sido monstruosamente descontrolada com sua magia causando a morte de seu pai, mas apenas com o impacto que ele tivera, fora o suficiente para ele sucumbir a sua morte.

Kellan se aproximou com cautela, e ajoelhou-se diante a sua irmã.

– Perdê-lo foi como se tivessem tirado meu chão, e me deixado num vácuo sem fim. Porém, perder você, foi tão doloroso quanto, como se tivesse perdido minha outra metade.

Ela arqueou o olhar ferido para os olhos de sândalo do irmão e limpou as lágrimas encorpadas que umidificavam suas bochechas.

– O que aconteceu com nossa família? – questionou atordoada.

Kellan abaixou os olhos e franziu o cenho, esforçava-se para não chorar.

– A guerra aconteceu. Ela nos destruiu.

Arfante, ela tentou recuperar seu fôlego, sentia-se fraca.

– Você me trouxe aqui, mesmo sabendo que eu poderia derrotá-lo.

Ele aquiesceu.

– Como podemos fazer uma trégua se lutamos em lados opostos, Kellan?

– O Norte não é sua casa, minha irmã. O nosso Clã é. A reencarnação de Ceres se foi, não há mais nenhuma razão pela qual nos opormos.

A bruxa balançou a cabeça em negativa.

– Independente do que o Norte signifique para mim, eu nunca me aliaria com Gardênia.

– Emily, eu preciso que me escute, e com atenção – seu irmão pediu, colocando a mão sobre a sua, mas foi no momento daquele simples gesto, que a bruxa notou algo vazio em seu corpo, desprovido de calor.

A bruxa arqueou o olhar desconfiado para fitar seu irmão e percebeu nos seus traços faciais uma hesitação.

– Emily, você está me ouvindo?

Notou assim que a harmonia que envolvia os dois gêmeos as margens do lago de Lânio já não existia mais, o som da natureza parecia ser falho e os odores idênticos. Algo estava errado. A bruxa se colocou sobre suas pernas com pressa e cambaleou para perto da água, onde ela notou que seu reflexo não a seguia de fato. Alarmada, levantou sua mão para seu irmão ainda de cócoras no chão.

– O que está acontecendo?

– Você descobriu – ele suspirou, colocando-se em pé. – Eu sabia que Ravenna não iria aguentar por muito tempo.

– Aguentar o que?! – ela rosnou, de forma ameaçadora.

– Abaixe sua mão, Em. Aqui dentro, não há como você me machucar, aqui você não possui magia.

– O lago não proíbe dos bruxos de utilizarem magia!

Novamente, um suspiro.

– Você é mais esperta que isso, irmã. Sabe que não estamos no lago.

Uma ventania forte soprou das árvores, violentamente chicoteando os irmãos, mas nenhum dos dois controlava aquela corrente.

– O que está acontecendo?

– Escute-me com atenção e entenderá. Tudo que lhe disse foi honesto, menos em relação onde estamos e estarmos sozinhos. Eu queria conversar abertamente com você e queria que você encontrasse as bruxas, mas da maneira certa. Entretanto, eu não sabia o que deveria esperar de você, irmã. Foi por isso que Ravena, a irmã mais nova de Ludmilla, criou esse feitiço junto da mãe delas. Chamaram-no de Mundo Espelho, é uma criação muito semelhante ao nosso mundo, e graças a um totem que representa cada um de nós, nossa alma é trazida para cá, enquanto nosso corpo dorme no outro mundo.

– Como eu não percebi nada?! Como não senti a magia do feitiço?!

– É o intuito, você foi capaz de não percebê-lo durante trinta minutos. E depois disso, meu impulsivo toque lhe trouxera de volta a razão, fazendo-a notar o que estava de errado com esse lugar. É um feitiço extremamente complexo, mas ainda assim esperava que pudéssemos terminar nossa conversa em paz.

– Você prende minha alma num mundo ilusório e espera que possamos conversar em paz?!

– Isso é algo do seu interesse, Emily! É a razão pela qual eu preciso que você volte para casa!

– Eu exijo sair daqui! – vociferou, olhando para todos os lados. O vento aumentava e os pássaros se agitavam, apesar de não controlar aquelas rajadas de ar, sua noção do espaço e sua negação sobre ele estava atormentando o mundo, seu corpo lutava para conseguir sua alma de volta.

Kellan, impaciente, agarrou o braço da irmã.

– Me ouça! Isso é sobre Eliza!

Ela parou subitamente de se debater e o furioso vento continuou a chicotear os corpos dos bruxos.

– Eu descobri que Eliza está viva, Emily! Ela é uma prisioneira do Sul! Nós precisamos resgatá-la!

A bruxa se desvencilhou-se dele.

– Não me deixarei mais levar por esse falso amor fraterno, Kellan! Qual seria o seu interesse e o das bruxas naquela que foi taxada de traidora?!

– Meu interesse é tornar a ter a minha família de volta! Não ser o último Winston da nossa linhagem, sobretudo quando sou o mais fraco dentre os irmãos! Isso seria como assinar uma carta de suicídio para o legado de nossa família no Clã das Bruxas.

– E por que as bruxas te acordariam tal desejo?!

– Porque elas estão em desvantagem e fracas! – revelou, com um olhar severo. – As cinco Famílias Originais são as mais poderosas do Clã das Bruxas porque são elas que lideram como manter a sobrevivência das bruxas. É a tradição que seguimos desde o início dos tempos. Cada família possuí um poder essencial para que as cinco possam formar o desejado equilíbrio. Porém, Eliza estando viva, isso lhe torna o membro mais velho da linhagem Winston, uma das famílias originais do Clã das Bruxas, o que lhe torna automaticamente a chefe da nossa família. E enquanto ela viver Emily, nem eu, nem você poderemos ser considerados fortes o suficiente para completar nossa missão com as Famílias Originais. O que perturbará o equilíbrio que nosso Clã precisa para sobreviver.

A bruxa estudou suas palavras, seguindo seu raciocínio.

– Vocês dobraram seus joelhos para o Império sulista, deveriam exigir sua recompensa agora – ironizou, com rancor.

– Você daria ao seu aliado o poder necessário para ele se livrar de você? – Kellan retornou a pergunta.

A raiva tinha lhe domado, mas a bruxa sabia que em nenhuma circunstância Gardênia deixaria Eliza ser livre, ela fora a responsável pela retirada de Mia do Vale de Trinton e seu título de herdeira do Norte.

– A nossa união com Gardênia apenas nos trouxe benefícios desde então, nossa guerra civil acabou. Nosso pai não estava errado sobre sua escolha, Emily. As bruxas podem viver em harmonia novamente. Mas nossas tradições exigem o respeito das regras impostas pela Deusa-Mãe! Tudo corre bem por agora, mas não demorará até as coisas desandarem, e novamente as bruxas tornarão a sofrer com a fúria dos Guardiões Ancestrais. Se eu exigir Eliza para o Império Sulista, sabe o que farão? Eles a matarão e assim me passarão seu legado. Essa situação convém as bruxas e é aonde você entra. Como irmãos, nós não podemos deixar Eliza morrer após todos esses anos de tortura.

Emily arfou, estudando a complexa situação que seu irmão lhe oferecia.

– Nem Ravena, nem qualquer outra bruxa consegue ouvir ou ver o que está se passando aqui dentro. Por essa razão quis encontrá-la aqui, à sós e não lá fora. Eu preciso de sua ajuda, Em. Após todos esses anos, descubro que Eliza está viva, nós não podemos deixá-la sofrer mais. Mas, as bruxas não estarão do meu lado para salvá-la. Apenas desejam sua morte e assim tudo voltará aos seus eixos. Eu preciso que você se una à mim, que faça as bruxas acreditarem na sua intenção de retornar para o Clã das Bruxas e juntos, encontraremos uma maneira de salvar Eliza. A vida dela agora depende de você, o que me diz?

III

Lucky Berbatov marchava rudemente sobre as botas, em direção a sala de reuniões. Estava atrasado, mas era o melhor que podia fazer quando exigiam sua sanidade e sua sobriedade enquanto os céus despencavam sobre sua cabeça. Tinha enfim descoberto o paradeiro do exército do Lorde Diámat, destinados a massacrar toda ALDA. As palavras cuspidas da memória de Nassor ainda saltitavam na sua mente, repetidamente. De alguma forma era capaz de ver através de seus nebulosos pensamentos a morte e o caos pairando novamente sobre os arqueiros.

Danira e seu filho, certamente mortos. E sua irmã mais nova... que de alguma forma e motivo retornara para casa e liderava os arqueiros. Havia uma chance dela estar viva porque segundo as palavras de Nassor, ele queria que Nália fosse arrastada até lá, para que ele mesmo certificasse de puni-la. Estremecia. Não tinha ideia de como ela era, o que tinha vivido todo aquele tempo, mas sabia que agora estava sendo arrastada pelo deserto, certamente mutilada e violada incontáveis vezes, pelas mãos dos gladiadores. Se ainda não tivesse encontrado uma maneira de se suicidar, sabia que o pior esperava por ela do outro lado do deserto.

O sangue do arqueiro fervia, a culpa se entalava na sua garganta, impedindo-o de respirar. Furioso como cada decisão que ele tomava, parecia sempre ser a pior dentre as escolhas. Um ano atrás, descobriu no Oráculo que Nália Crawford não tinha falecido no acidente que tirara a vida de sua mãe adotiva, Elena. Não, ela tinha sido encontrada pelo seu tio traiçoeiro que desejou tirar a bebê recém-nascida do Vale de Trinton e levá-la para algum lugar desconhecido de Reynes. Dando fim no único herdeiro legítimo de Yavor Crawford, seu pai adotivo.

Quis procurá-la, quis ser a família que ela certamente acreditou nunca ter. Porém, rapidamente aquelas ideias se desvaneceram. Não tinha nada a oferecer à Nália. Se algum dia ela sonhara com sua verdadeira casa, certamente não era nem próximo da realidade que Sharwood se tornara. Uma casa sofrida e com uma família destruída. Não tinha nada para oferecê-la, não ter aparecido em sua vida era o melhor para ela.

Porém, Nália não parecia compartilhar daquela opinião afinal retornara a sua verdadeira casa e estava liderando o vilarejo. O que tinha acontecido com Zahari Christoff? Estaria na guerra? E Jared, com ele? Eram tantas perguntas aturdidas e sem respostas... Deixando-o com uma única certeza: ele vingaria-se com suas próprias mãos dos Gladiadores que destruíram sua antiga casa.

Uma vez com os pés dentro da sala, deparou-se com todos os participantes do Conselho, com a falta de Lydia... Em compensação, Mia estava ali.

– Está atrasado para sua própria reunião secreta – ela remarcou, com uma voz límpida, encostada sobre a mesa.

– Mas sóbrio – retorquiu. – Em contrapartida, você deveria estar descansando.

– Eu não preciso descansar. Há muitas questões a serem debatidas, e definitivamente não iriei ficar debaixo dos lençóis me lamuriando.

– Como desejar, princesa guerreira – suspirou, seguindo para perto da mesa.

Um grande silêncio pairou sobre a sala, enquanto tensões pairavam no ar.

– Acho que o primeiro grande assunto que devemos abordar, é a adaga – Jakob arriscou falar, numa voz mansa. Tinha retomado seu lugar no conselho por pedido de Mia, que lembrava-se dele ter tentado salvar a sua mãe, apesar de todas desavenças. Lutou ao seu lado até o último momento. – Sabemos enfim sua localização e ela está mais perto do que imaginamos.

– Pode ser uma armadilha – Caliana alertou. – O imperador não deixaria a maior fraqueza dos Sacerdotes num simples lugar para que pudéssemos apanhá-la.

– Não estamos falando de um simples lugar, é o Mar do Inferno. Uma região remota que todos os seres vivos dessa terra esquivam-se, porque como o próprio nome diz, é um verdadeiro inferno – Jakob murmurou.

– Se conseguimos essa informação, literalmente, extraindo-a da cabeça de Nassor, como poderia ser uma armadilha? – Berbatov matutou.

– Não penso em nada premeditado, me refiro ao local preciso de sua localização. O Mar do Inferno possuí áreas acessíveis, mas o lugar preciso da adaga, segundo as indicações do gladiador Daemon, esta se encontra na Boca do Inferno. Um vulcão em atividade, nenhum exército poderia se aproximar.

– Isso não tem importância, porque eu estarei indo de qualquer maneira – Mia murmurou, com o olhar perdido no chão. – Minha mãe não se sacrificou para que nós nos questionássemos se é seguro ou não tal missão, eu irei recuperar a adaga que é minha por direito, mesmo que seja sozinha.

A sua voz não apresentava nenhuma hesitação e naquela altura sabia que Amélia não estava blefando ou se precipitando. Sabia que para compensar a perda da mãe, ela iria atrás daquela adaga nem que fosse sozinha, por isso Lucky tratou de tomar a palavra:

– Não precisa se exaltar princesinha, temos coisas mais importantes para nos preocupar nesse momento. O exército que massacrou os arqueiros e que agora retorna para seu covil do mal. Devemos pará-lo.

– Vamos pará-los, mas estou certa de que ALDA não foi massacrada. Seria quase impossível Nassor enviar uma grande tropa para atravessar o deserto de Harah e em seguida as cordilheiras de montanhas sem que ninguém notasse, ninguém descobrisse suas intenções. Eu tenho certeza de que os arqueiros puderam se proteger – a Comandante prosseguiu.

– Quanto otimismo, pois eu aposto que se o seu irmão soubesse ou não do ataque, ele não teria movido um dedo para impedi-lo, nem mesmo deixado os Arqueiros de Elite retornarem ao Vale – Lucky provocou.

– Skyblower não deixaria os seus serem massacrados. Lutamos e protegemos os nortenhos – naquele momento, Lucky viu pela primeira vez Mia falar como a princesa que outrora conhecera.

– Talvez, ele tenha um bom motivo para ter deixado acontecer – Caliana tomou o rumo da discussão. – Segundo as últimas cartas dos espiões, ALDA levantou uma revolta contra Skyblower.

– O que? – os comandantes soltaram em uníssono.

– E segundo o desejo de Nassor conseguir colocar as mãos em Nália, eu pressupus que ela foi a responsável por isso.

– Uma revolta interna durante uma guerra continental?! – Mia explodiu.

– Isso que eu chamo de fazer uma entrada triunfal – Lucky elogiou, como se tivesse orgulho.

– Lucky isso é um assunto extremamente sério! Uma revolta durante uma guerra é o primeiro passo à ruína de um reino! Isso gera conflitos e dúvidas, colocando a imagem de Skyblower em questão!

– E se você soubesse as condições que vivemos, estaria surpresa que não nos revoltamos antes!

– Fazer esse ato numa época delicada como essa passa a ser covardia! – ela ladrou, furiosa.

O comandante estava pronto para rebater o que na visão dele era covardia, porém censurou-se. Mia acabava de perder sua verdadeira mãe, não deveria ser ele o responsável de agravar suas emoções.

– De qualquer maneira, esse não é o foco atual do problema. Os gladiadores de Lorde Diámat estão retornando para cá. Essa deve ser nossa preocupação.

Ela fitou durante um longo tempo o arqueiro, como se o estudasse, e por fim respondeu:

– Quantos homens devem ter sido mandados?

– Não temos nenhuma certeza ainda, somente de que eles estão retornando. Mas, eu tenho certeza de que pretendo fazer cada um deles pagar pelo sangue derramado no solo dos arqueiros. Em seguida, iremos atrás da sua adaga.

Mia endireitou seu corpo e cravou seu olhar no dele.

– Faremos isso, Berbatov.

IV

Na "torre das tralhas", assim como Félix teria batizado, Nádia revirava os caixotes empilhados, criando incomodas ondas de poeiras. Mesmo que detestasse aquele ar pesado e sujo do local, ela bisbilhotava cada caixa com atenção.

– Achei que você estivesse procurando a se ocupar à descobrir o objetivo do nosso honrado Imperador nesse castelo fedido – sor Brier resmungou, limpando o nariz que escorria sem parar, delicado ao excesso de pó.

– E achei que ninguém tivesse lhe convidado a ficar aqui – ela respondeu, sem lhe dar devida atenção.

– É uma mulher perigosa, Nádia, sabe que não pode ficar sozinha – rebateu, deixando um espirro estrondoso escapar.

– Então que tal passar a mexer a bunda e me ajudar a encontrar o que preciso?

– Não vê que estou morrendo aqui? E nem sei o que diabos procura?

– Enfeites para uma festa – explicou. Sor Brier arqueou as sobrancelhas, estava zonzo, e irritado.

Humanos eram pateticamente frágeis, Nádia pensou.

– E para que?!

– O aniversário de Félix se aproxima...

O homem semicerrou os olhos azuis e lacrimejantes.

– Estamos falando sério?

Ela bateu as mãos e ele tornou a espirrar.

– Por que não estaria? O imperador deseja algo que nem mesmo ele sabe o que é, eu não estou aqui para jogar adivinha. Além do mais, a única fonte de informação desse lugar é fechada para todos.

– A biblioteca?

Nádia aquiesceu.

– Então, dedicarei meu inútil tempo livre para oferecer algo ao pirralho, ao invés de deixá-lo ter um coma de ervas de aniversário.

Sor Brier agarrou seu braço e lhe estudou.

– O que está tramando, dominadora? Sabemos que você não tem coração.

Ela desvencilhou-se dele.

– Eu aprendi a suportá-lo, e não estou aqui para pedir sua autorização para nada. Quer me ajudar? Feche a boca e comece a procurar decorações festivas, senão apenas fique no seu canto e morra engasgado com seus espirros.

+++

Quando Nádia levou o senhor do castelo para sua festa surpresa, o grito histérico de Félix voou pelo salão oval de maneira desesperada e teatral, vendo todos os servos e nobres reunidos com os olhos extremamente arregalados. Nádia segurou seu riso, observando-o extremamente chocado, experimentando diversas sensações por segundos.

– Isso é para mim? – ele finalmente pôde dizer, dando um salto inesperado, quase derrubando o macaco grudado no seu ombro, fitando a estrela com ódio no olhar.

– Não é meu aniversário – ela se contentou de responder com um sorriso no canto da boca. – Eu consegui arrombar o cadeado da adega de seu pai, temos o suficiente para festejar durante uma semana.

Os olhos contornados de olheiras varreram todo o lugar, e todos os falsos sorrisos que ele recebia, porém foi a estrela que ele fixou.e

– Minha estrela fizera tudo isso por mim? – balbuciou, incrédulo. As lágrimas já subiam ao olhar, emocionado.

– Tivera ajuda, agora aproveite sua festa – ela preferiu cortar a parte emocional. Porém Félix saltou sobre seus braços lhe envolvendo num repentino abraço, no qual ela não soubera como reagir.

– Você é o melhor milagre da minha vida, minha brilhante estrelinha! – confessou exaltado, fixando seus olhos. Nádia lhe mostrou o mais belo de seu sorriso e viu Félix sair saltitante para sua comemoração, seu macaco Klaus fazia esforços para se agarrar no dono.

Assim a festividade teve início, Nádia fizera questão de aceitar o convite do jovem Lorde na mesa principal, e partilhou inúmeras taças do vinho batizado que ela mesma preparara para servir todos ali presentes. Duas horas mais tarde, o ar abafado faziam quase todos os convidados transpirarem, e vendo-a descontraída e aparentemente ébria, os guardas da elite de Gardênia também procuraram trégua, cedendo a refrescante bebida alcoólica e as belas servas da cozinha.

Quando Lorde Félix estava ocupado demais com sua mais nova distração, recentemente admitido na guarda do castelo, um grande jovem esbelto com pele cor de cacau, foi a deixa da estrela para fora da tribuna, deixando-o o conselho de "aproveitar a noite antes que adormecesse por tanto álcool e ervas medicinais".

Nádia desceu pelas escadas, vitoriosa. Esgueirou-se pelas sombras, certificando-se de mastigar o caule da flor de Lamyca, sentiu o gosto amargo invadir seu paladar e subitamente tornou-se mais energética. Aquele grande achado nos jardins da casa de Blackrigde fora o desencadeador de todo aquele plano. Seus dias com a falecida bruxa Ludmilla Willow lhe fizera conhecer mais a botânica de Reynes. A flor de Lamyca era a mais fiel companheira de um sono profundo e pesado, porém deveria ser usada corretamente: somente as pétalas brancas possuíam esse poder doce e relaxante. O caule amargo era o seu oposto, usado como um antídoto. Ele cortava todo o efeito que as pétalas eram capazes de produzir. Era a razão que a flor era tão pouca conhecida e usada, porque poucos sabiam a forma correta de utilizá-la.

Vislumbrou uma silhueta se aproximar e tivera de engolir o caule da flor pela metade, e identificou Sor Brier com um sorriso largo nos lábios.

– Está me devendo um caneco, em vista que essa bela festa apenas se realizou com a minha ajuda.

A alegria que corria pelo seu corpo da estrela rapidamente se desvaneceu quando notou que Sor Brier possuía seu próprio odre.

– Por que beber num recipiente de couro velho quando possuí belas taças logo ali? – esforçou-se para esconder a raiva na sua voz.

– Nunca fui realmente apreciador de vinho caro, eu prefiro o bom e velho gosto da minha cerveja que carrego por todo lugar. Parece tensa, dominadora – notou.

Nádia suspirou e tentou deixar o sorriso ébrio tornar a enfeitar seus lábios, deveria encontrar uma maneira de se livrar discretamente de Sor Brier, era o mais sagaz dentre os soldados de elite de Marcus e definitivamente o mais irritante deles. Não tirava os olhos dela, nunca.

– Eu não gosto de beber com pessoas que não sabem apreciar um bom vinho – retorquiu, sem ter tempo para refletir em algo mais convincente.

O soldado riu, tragando o seu odre, sem tirar o olhar dela.

– Sempre me impressionando, nunca adivinharia que uma estrela é uma boa apreciadora de vinho.

Ele não fecharia a boca tão cedo, compreendeu.

– Aceitarei o convite, desde que partilhe seu asqueroso odre comigo.

– É um pedido um tanto contraditório, mas aceitarei sem questionar.

Sor Brier lhe guiou até uma reservada mesa, no canto do salão e um tanto afastado da confusão. Por reflexo, Nádia procurou por Félix na tribuna, e ali estava ele, radiantemente lhe acenando a mão e mostrando para seu novo admirador de pele cacau quem era responsável daquela festa. Ela não pode conter um sorriso involuntário nos lábios, vendo-o se afastar com o guarda. Independente do objetivo daquela comemoração, ela também serviu para o jovem lorde sentir-se feliz. Outrora lhe confiara que tinha sido no seu aniversário que seu pai decapitara seu amante secreto.

– Ele gosta de você – Sor Brier comentou.

– Ele também gosta de você. Isso prova que ele não tem muitas pessoas para gostar de qualquer forma – deu de ombros, sentando-se na mesa.

O cavalheiro lhe estendeu seu odre, oferecendo sua cerveja.

– Acho que julga demasiadamente, dominadora.

Ela tragou a bebida amarga.

– Julgo? Fora você que entregou seu irmão para ter a confiança do Imperador, não é mesmo?

– Sim, mas não éramos devidamente próximos. Ele me julgava fraco, me condenava desde meu nascimento.

– Por que?

Ele balançou a cabeça.

– É um assunto pesado e complicado.

– Será sua única arma para manter-me aqui – Nádia retorquiu, perversamente. Ele sorriu, sem jeito. – Eu digo meus segredos se você disser os seus, Sor Damon Brier.

– Está bem, uma pergunta por uma pergunta.

– Diga-me estrela, o que mais gostou nesse mundo?

Por descuido, Nádia lembrou-se vagamente de Nicholas Crawford. De sua feição emburrada e de seu sorriso malicioso.

– Da beleza.... Por que seu irmão lhe despreza? Posso compreendê-lo, mas procuro mais razões, para reforçar o meu desprezo por você.

– A gravidez da nossa mãe fora extremamente complicada. Era uma gravidez de risco, mas ao contrário do desejo do meu irmão e de meu pai de abortar-me, ela queria me ter. Assim, por causa de uma lenda estúpida, meu pai decidiu viajar com ela para o Vale de Trinton, onde supostamente poderiam curá-la.

Os sentidos de Nádia se aguçaram.

– Quem?

– Isso faz duas perguntas. É minha vez. Não era o suficiente ver a terra, uma vez a cada vinte e seis mil anos? – perguntou, com facécia.

– Eu queria mais – sussurrou. – Quem eram as pessoas que curariam sua mãe?

– Até hoje não sabemos, porque nunca tivemos a chance de lá chegar. Ela não aguentou a viagem e faleceu antes mesmo de chegar em Helsker. Meu pai encontrou uma parteira que pudera salvar-me, era o último pedido de minha mãe. Em seguida, abandonou os dois filhos. E assim, ganhei o desprezo eterno de meu irmão mais velho, ele tentou me matar umas três vezes apenas na nossa infância. O céu onde nasceu não é melhor do que essa imundice de mundo?

– Sempre desejamos o que não podemos ter, não é mesmo? – Nádia segredou. – No Céu, existem coisas que vão além de nossa imaginação. Eu e minhas irmãs não vivíamos, sobrevivíamos, sempre fugindo da destruição... O que aconteceu com seu irmão?

– Condenado a morte pelo imperador, ele não gosta de soldados infiéis. Assim eu fui promovido. Por que a terra? – ele quis saber, envolvido na conversa. – Digo, segundo a lenda vocês se apaixonaram por esse local, mas por que olharam para cá em primeiro lugar?

Nádia abaixou o olhar, e confessou sem mesurar sua sinceridade.

– Porque, outrora, aqui fora a casa de nosso pai, Orion. Ele fora expulso da terra, há milhões de anos, condenado a viver num outro plano, eternamente na solidão...

– E como ele teve vocês?

– Duas perguntas – ela respondeu ardilosamente. – O que procura, Damon?

– Sucesso, reconhecimento e ouro. Como seu pai teve vocês se ele era um simples humano?

– Eu nunca disse que ele era um humano. Quando ele morreu, sofrendo pela eterna solidão que consumiu seu coração, seu corpo se decompôs em muitos pedaços e assim nascemos, fracas demais para os perigos que corriam no plano superior.

– Que coisa macabra – ele soprou.

Nádia respondeu com um sorriso involuntário, e viu pelo canto do olho o homem que esperava naquela noite adentrar o salão e para sua felicidade, visivelmente ébrio. Tornou a fitar Damon e questionou numa voz lasciva:

– Por que você não consegue tirar seus olhos de mim se deseja tudo isso, Sor Brier? Não tente de omitir o que está claro nos seus gestos, suas expressões e na sua respiração. Envolver-se comigo significaria sua morte.

Sor Brier sorriu e virou o rosto, tragando mais cerveja.

– Tenho consciência disso, é a querida esmeralda protegida do Imperador Marcus.

– Então acabamos por aqui, aproveite sua noite, Sor – Nádia concluiu, levantando-se da mesa e retirando-se de perto dele. Espiou o homem por cima do ombro e ele manteve-se imóvel, continuando a beber sozinho. Assim os olhos de esmeralda caíram sobre a mais bela servente do local, rodeada de olhares secantes.

A estrela aproximou-se dela e sussurrou no seu ouvido:

– Aquele homem de olhos azuis na mesa de canto, faz parte dos Soldados de Elite de Gardênia, é o mais rico desse salão, o favorito do Imperador Marcus. Mantenha-o entretido, convide-o para conhecer as cervejas da cozinha, e eu lhe garanto que será a melhor coisa que fará para seu futuro se não quiser morrer como uma simples servente. Conselho de amiga – Nádia lhe mostrou um sorriso amargo e seguiu para a saída, esbarrando contra o bibliotecário ébrio.

Nádia andou em passos pesados, com o olhar fixo na escuridão do corredor, afastando-se do calor e do barulho abafado do salão e esgueirando-se pela escuridão. Não importasse quem era, o que fizesse e o que sentisse, deveria sempre relembrar da solidão que lhe perseguia, da prisão que vivia dentro do seu próprio coração.

Ela observou as chaves da biblioteca na sua mão que tinha roubado fugazmente do bibliotecário, no momento que esbarrou com ele, podendo assim descobrir o que havia escondido naquele lugar que segundo as ordens do castelo, ninguém poderia ter acesso senão Lorde Félix.

A estrela abriu com cautela a imensa porta da biblioteca e espiou para ver se ninguém lhe seguia ou observava, os corredores estavam vazios. Assim deslizou para dentro, graças a sua visão noturna conseguia enxergar tudo perfeitamente, mas o que viu diante seus olhos era inteiramente diferente do que esperava. Imaginou uma espaço enorme com inúmeras estantes grandiosas recheadas de livros, mas a realidade se mostrava mais simples que aquilo. Não havia inúmeras estantes, somente uma. Era relativamente grande, mas nada além de uma ampla janela, um escritório e poltronas preenchiam o local escuro.

O trabalho se revelou mais fácil, porém ainda assim eram centenas de livros sem títulos e uma única noite para conseguir folheá-los. Não tinha previsto um plano para aquilo. Encostou a porta com delicadeza e aproximou-se da estante, pensativa. Como deveria escolher as obras?

Antes que encontrasse sua resposta, a estrela sobressaltou-se com o estrondoso barulho de um livro que fora atirado para fora da estante, como num passe de mágica. Nádia aproximou-se devidamente desconfiada, quando percebeu a pequena silhueta que saía do buraco deixado pelo livro. Semicerrou os olhos e suspirou irritada quando notou o que era que tinha derrubado o exemplar.

Klaus, o macaco de Félix.

– Maldito bicho infeliz – ela rosnou, desdenhando aqueles olhos angelicais, mas sabia sua verdadeira natureza selvagem. – Maldito macaco.

Ela agachou-se para recolher escancarado livro e antes de fechá-lo, observou a ilustração da página aberta. Uma arma, mas não era uma arma qualquer. Reconhecia aquela adaga. Era uma das adagas de Ceres, a adaga feita para as Bruxas. Nádia fitou o macaco e ele continuava a encará-la, de maneira indecifrável. Desconfiada, ela pôs-se a ler desde o início.

O livro narrava de uma maneira fastidiosa a história da casa Blackrigde, mas o que Nádia achou interessante saber era que nem sempre Gardênia – apesar de ser antigamente um reino – era considerado como o mais forte de Reynes. Outrora, Blackrigde e Gardênia disputavam o poder do trono, porque segundo a narrativa, os antepassados de Félix possuíam um direito legitimo ao trono, por ter sido uma das famílias fundadoras de Gardênia. Intrigas levaram a Casa Blackrigde a fazer seu próprio feudo, o que explicava sua proximidade com a Cidade-Livre. Queriam roubar o a rota comercial de Gardênia já que não poderiam ter acesso ao trono.

A história remontava aos tempos antigos, na Terceira Era do Imperador. Quando intrigas religiosas se desperdiçavam pelo continente: referiam-se as Cruzadas, guerras religiosas que envolviam o Clã das Bruxas, os Venatores e os Sacerdotes. Foi naquele instante que Nádia compreendeu, Ceres ainda era viva naquele tempo.

Algumas páginas tinham sido rasgadas, e a continuação da leitura retomava no dia em que o senhor feudal Elijah Blackrigde recebeu uma inusitada visita de um homem misterioso que lhe oferecia em troca de ouro, um imensurável poder sobre as bruxas. A estrela viu na página seguinte a ilustração que lhe atraíra para ler aquele livro, era de fato uma das adagas de Ceres, as das bruxas. Fez um mapa da região do astral e compreendeu que de todas as casas feudais, a de Blackrigde era a mais próxima do Clã das Bruxas. Certamente uma troca infeliz daquele humano, mas como ele tinha conseguido a adaga da sacerdotisa?

A narrativa continuou, indicando que a troca fora feita, porém aquele ainda não seria o triunfo da casa de Blackrigde, porque Elijah era um senhor ambicioso e sagaz. Ele não desejava o medo das bruxas, e sim uma cumplicidade, invocou desta maneira as famílias originais do Clã e revelou o objeto que tinha sob suas mãos. Propôs assim que aquela adaga poderia passar para o domínio das bruxas, se elas tivessem algo de mais interessante para lhes oferecer. E elas tinham, algo que garantiria o poder da casa sobre todos os outros senhores do sul e sobre Gardênia, na página seguinte viu sua ilustração:

Era o desenho perfeito de uma representação do macaco que Félix cuidava.

A estrela arqueou seu olhar fitando desconfiadamente o animal ainda lhe encarando na prateleira, incrédula. O que era aquele bicho? E como ele podia representar algo mais poderoso do que as adagas das bruxas? Ele deveria ter aproximadamente mais dois mil anos e ainda estava idêntico ao seu desenho. O livro assim acabava em mais páginas rasgadas.

Não sabia o que aquele animal representava, do que era capaz, porém compreendeu naquele instante. A casa de Blackrigde era a mais poderosa do Sul, até a chegada de Marcus no poder. Ele desejava saber o que seus vassalos escondiam, e como o próprio Lorde Félix dissera, aquele macaco era a segurança dele. Sua proteção contra Marcus. Por que?

Fora arrancada dos seus devaneios quando ouviu vozes do lado de fora. Nádia saltou da poltrona e o macaco correu até a saída. Ela pousou o livro no seu devido lugar e encostou seu ouvido contra a porta para saber se a passagem já estava segura, entretanto seus ouvidos foram atraídos por um ruído atrás de si.

Pelo canto do olho viu um inesperado corvo que saia do teto da biblioteca e no momento que ela abriu a porta, ele voou para fora. Em seguida o macaco despachou-se na mesma velocidade. Por que diabos tantos animais a seguiam naquele momento? Enquanto trancava a porta, observou o macaco correr pelo corredor escuro até desaparecer. Nádia não tinha perdido a sanidade, ele queria que a estrela descobrisse seu segredo. Mas, por que?

+++

Find you - Ruelle

Agitada com suas descobertas, a estrela andou sem rumo pelo castelo, onde a maioria das pessoas dormiam em todos os lugares possíveis: pelos cantos do chão, em cima de mesas, atrás de cortinas. Seu plano tinha sido quase um perfeito sucesso, porém a euforia do momento não lhe fez notar num detalhe sórdido que não controlou e que poderia ser jogado contra seu favor: o corvo dentro da biblioteca que ficara silencioso até o momento dela partir. A única testemunha de seu plano e de sua descoberta sobre o macaco...

Havia uma única maneira de saber se estava errada sobre seus instintos – de que aquele corvo lhe perseguia.

Suas botas pararam a marcha diante uma porta específica. Ela tocou até Sor Damon Brier aparecer com o torço nu e os olhos azuis semicerrados pareceram confusos ao vê-la ainda naquela madrugada. Sem dizer nada, a estrela adentrou o âmbito e fitou a charmosa servente que ela conversara horas mais cedo:

– Se tem amor pela sua vida, saia agora daqui – ordenou a dominadora. A mulher pareceu confusa e fitou Sor Brier. – Agora!

A servente levantou-se da cama, enrolada nos lençóis, recolheu seus pertences e saiu do local, sem nenhuma oposição do cavalheiro que fitava fixamente a estrela, sem nada compreender.

– O que diabos há de errado com você?

Nádia andou pelo quarto desordenado e empurrou a porta, fechando-a. Ela fitou o cavalheiro que parecia extremamente irritado, em seguida fitou a janela que tinha no canto do quarto. Nada havia ali além do breu da madrugada. Assim, a estrela começou a desfazer seu espartilho, abrindo seu decote e por fim colocando-se nua diante ele.

– Eu quero me sentir viva. Pode fazer isso para mim?

Sor Brier parecia desconfiado, porém seus olhos não conseguiram desviar-se do corpo da estrela despido diante a si.

– Eu conheço seu risco – ele murmurou.

– Olhe para mim. Não acha que o risco vale a pena? – Nádia provocou, saboreando as palavras.

Damon então aproximou-se dela bruscamente, envolvendo-a num beijo intenso e profundo. Nádia olhou uma última vez para a janela e nada havia ali, estava sendo paranoica. Assim, deixou-se possuir. O homem lhe levantou com seus braços e a atirou na cama, subindo em cima de si. Enquanto trocavam toques e beijos quentes, ela tirou o sexo dele para fora da calça de lã e o empurrou para o lado, colocando-se em cima dele.

– Que fique claro, eu sou a dominadora aqui – Nádia sussurrou lascivamente, enquanto colocava o pênis entre suas pernas. Um gemido escapou de sua boca e Damon a agarrou com mais força, ambos levados pelo desejo.

O que nenhum dos dois percebeu, era que no canto da janela do lado exterior, escondido na penumbra do negrume da noite, um corvo observava e rapidamente levantou voou desaparecendo no vasto céu escuro.

V

Savannah Crawford se encontrava, ainda no mesmo ano, atravessando mais uma vez as traiçoeiras terras entre o Norte e o Oeste. A primeira experiência fora graças as infelizes ordens do estúpido rei de Skyblower, para que os arqueiros queimassem uma das grandes minas do Lorde Diámat. Um pedido traiçoeiro que eles pagariam o preço da pior forma: sendo massacrados pelo inimigo. Meses mais tarde, retornava para o árido deserto de Harah, desta vez, sob as ordens de um príncipe herdeiro. Definitivamente ela detestava as ironias da vida.

Foram obrigados a subir e descer montanhas, os sóis eram curtos e fatigantemente quentes, as luas longas, mas de extrema baixa temperatura. E após isso, deviam enfrentar a fúria e a aridez do deserto de Harah, onde ambas temperaturas triplicavam a força durante o dia e durante a noite.

A arqueira detestava aquelas viagens de batalhões, eram fatídicas e intermináveis, a única coisa boa de tudo aquilo era de fato que as reservas de comida do exército do Espadarte eram menos escassas que a dos arqueiros, e que incrivelmente os orientais partilhavam com eles, sem hesitação. Porém para o choque de Savannah, Thor não se alimentava melhor que ninguém. Pelo contrário, exigia igualdade entre todos os soldados.

Costumava vê-lo somente no cair da noite, quando levantavam acampamento. Era o melhor, não sentia-se confortável na presença do príncipe herdeiro. Odiava aquela sensação de inferioridade dela que exalava-se ao lado dele, aquela eterna divida que nunca seria paga.

Thor usava aquela viagem como pretexto, alegou que se Savannah convencesse os arqueiros a participarem do batalhão dele, ele reconheceria que sua dívida seria quitada. Entretanto, em momento algum aquela proposição parecia ter sentido, porque no final das contas, os arqueiros estavam carentes em todos os sentidos, necessitando de comida e medicamentos que os orientais ofereciam.

– Deveria agradecê-lo – Savannah suspirou para Jared, ao seu lado. Ele não pareceu seguir seu raciocínio. – O príncipe herdeiro de Wanderwell, você é o porta-voz dos arqueiros, deveria agradecê-lo por tudo que tem feito.

– Não está brava com ele? – Jared questionou, parecendo confuso.

– Sei que sou ranzinza, mas sei reconhecer o que ele tem feito por nosso povo.

– Confesso estar impressionado que você tenha aceitado vir.

– Do que você está falando, Jared?

Seu irmão lhe estudou meticulosamente, e em seguida arregalou os olhos, surpreendido.

– Deuses, o que lhe acontece? O excesso de calor e de frio lhe deixou completamente estúpido?

– Nada! – ele balançou a cabeça. – Eu irei agradecê-lo agora e faria bem de fazê-lo também à noite. Afinal, você é a legitima líder dos arqueiros.

Antes que ela debatesse aquela questão insana, Jared marchou rapidamente sobre suas botas, afastando-se dela em direção ao topo da fila que seguia lentamente no deserto, onde Thor e seu irmão Hans estavam montados com seus cavalos. A arqueira ficou imóvel, confusa com sua reação.

Sentindo os constantes dois olhares pesados sobre si, Savannah suspirou de forma ranzinza. Atirou sua visão fulminante para atrás de si, encontrando os olhos estupidamente observadores de Ari e Louis que há luas não paravam de estudá-la.

– Pela milésima vez! Por que diabos vocês não param de olhar para mim?!

Eles semicerraram os olhos, desconfiados.

– Definitivamente é a Savannah que conhecemos – Louis acariciou sua barba malfeita.

– Claro que sou a Savannah que vocês conheceram! – Savannah rosnou.

– Então o que você fez com a verdadeira Nália?! – Ari quis saber.

– Porcaria, eu sou a Nália!

Os ladrões trocaram os olhares confusos.

– Não somos tão idiotas assim! Não é fisicamente possível você ser as duas! – Ari insistiu, ofendido. – Ao menos que você tenha comido ela! Você a comeu?1

– Não seja estupido, ela não seria uma canibal. Eu espero. Tenho certeza que Nália está amordaçada em algum porão pelo vilarejo deles. Apenas admita que você sabotou a verdadeira Nália para conseguir cerveja e comida, entre nós, teríamos feito o mesmo! – Louis cochichou, deixando uma gargalhada estardalhada correr dos lábios ressecados.

Savannah suspirou, exausta.

– Meus pais me deram esse ridículo nome quando nasci e depois quando fui adotada, me deram a porcaria do nome de Savannah! Por isso tenho dois nomes, imbecis!

Eles franziram o cenho.

– Se você sempre foi irmã do Berbatov, por que nunca dissera nada?!

– Porque eu não sabia até então!

– Sempre desconfiei que vocês tinham o mesmo mau caráter! – o menor acariciou a barba.

– Mau caráter?! Não me insultem de tal maneira porque eu não sou a verdadeira irmã desse parvo!

– AH! Então admite que não é a verdadeira Nália! – Louis gritou, vitorioso. – Diga-me o que fez com ela?

– Ela está viva?! – Ari perguntou, horrorizado.

– Pelos malditos diabos! O que fiz para merecer isso? – Savannah lamentou-se. – Eu irei explicar a última vez e se vocês não entenderem, eu não tornarei a explicar!

– Apenas me diga que ela está viva – Ari suplicou –, Berbatov ainda é nosso amigo e não podemos mentir para ele dizendo que você matou a irmã mais nova dele.

– Fale por você, aquele imbecil nunca mais tornará a ser meu amigo! – Louis amaldiçoou.

– Eu sei que você chora de saudades dele, eu te ouvi ! – Ari implicou.

– Calem a boca, porcaria! E escutem-me! – Savannah berrou, impaciente. – Berbatov foi adotado pelos meus pais. Yavor e Elena, então ele é irmão de criação de Jared, e teoricamente o meu, mas não fomos criados juntos porque supostamente meu tio ambicioso pelo título de senhor feudal, me entregou para outra família.

– Entendeu o que ela quer dizer, Legrand?

– Você não entendeu?! Estupido!

– Se entendeu repita! – Ari continuou.

– Eu não preciso repetir, eu entendi!

– Você não entendeu porcaria nenhuma!

– Claro que entendi! Essa família é problemática, não me admira que Berbatov seja problemático. Yavor e Elena eram irmãos de Jared e deram Lucky para Jared!

– Pelos deuses – ela suspirou. – Está bem, me digam algo que saibam explicar. O que vocês diabos fazem aqui, com o príncipe? Por que não estão com o terceiro pateta?!

– AH! Nós salvamos a vida de Thor! – Louis se vangloriou.

– Aposto que estão sendo procurados e estão se escondendo aqui, com Thor – Savannah deduziu.

– Ela deve ter comido uma bola de cristal, isso sim! – Ari comentou, chocado.

Ela suspirou, e passou a andar mais rápido, além de uma caminhada exaustiva, tinha que passar seu tempo tentando entender o que aquele príncipe mimado pretendia com todos seus gestos caridosos!

– Ei, Savannah! Não nos deixe falando sozinhos!

– Procurem outra pessoa para atazanar! Uma tal de Ekaterina se quiserem, ela gosta de falar!

Savannah revirou seu olhar e observou a distância o príncipe montado no seu cavalo, guiando o exército que seguia atrás. O que Thor procurava? E por que ele insistia a ajudar ela ou os ladrões que outrora eram companheiros de Lucky Berbatov? Até onde era capaz de se lembrar, eles se detestavam. Onde estaria Lucky agora?

+++

No cair da noite, levantaram acampamento num desfiladeiro. Dentro de seu pavilhão, o príncipe Meszaros tragava o vinho do odre, sentado desconfortavelmente sobre o chão. Sentia-se mais exausto que nas luas anteriores, talvez pela ideia de que sabia perfeitamente para onde seu destino lhe levava naquele momento: reveria Mia. Ainda lembrava-se vagamente do último encontro dos dois, como ela chorava à medida que ele lhe condenava. Não sabia mais ao certo o que lhe dissera, sua mente fizera questão de sabotar aquela memória dolorosa. Porém o olhar machucado da princesa era inesquecível.

Não estava pronto para revê-la, sobretudo com Berbatov. Porém, a urgência da situação exigia sua compreensão e aceitação das coisas. Já tinha passado da hora do príncipe aprender a sufocar seus sentimentos. Estaria ali se apresentando apenas como um aliado, em prol da guerra. Nada mais.

Seus devaneios foram abruptamente interrompidos com a entrada de Jared Crawford no seu pavilhão.

– Noc, noc – Thor soprou.

Jared franziu o cenho.

– Não existe uma porta para bater.

– Poderia ter feito uma porta imaginaria para anunciar sua entrada – resmungou, sem realmente se importar.

– Vossa Alteza estaria bêbado?

– Vossa Alteza não fica ébrio, apenas degusta demasiadamente do álcool – Thor esfregou os olhos e arqueou o olhar para o arqueiro. – O que devo essa inusitada presença?

– Vim aqui para agradecer tudo que tem feito pelo meu povo. E para perguntar com qual milagre você conseguiu convencer Savannah a se unir com os Kadawgis? Eu preciso saber exatamente o que disse para ela.

O príncipe arqueou as sobrancelhas, sentindo a lentidão da visão, e umedeceu os lábios.

– Eu ponderei muito a respeito, considerando muitas hipóteses e cenários, onde ela aceitaria tal situação e após tal análise, eu...

– Você não falou a verdade para ela – Jared deduziu.

– Eu não disse a verdade para ela – confessou, sem poder esconder o ar culpado na voz. Apenas queria deixar seu corpo relaxar com o efeito do álcool e ter uma boa noite de sono, mas os problemas sempre voltavam para sua cabeça, sem nem ao menos precisar procurá-los. – Para o seu governo era um pedido desmesurado para uma situação drástica e pressurosa!

– Pelos Deuses – Jared soprou, apertando as têmporas. – Ela vai matá-lo, em seguida vai matar-me e finalmente seguirá para o norte para se matar. E esse será nosso trágico fim!

A conversa dos homens fora interrompida com a brusca entrada de Ari e Louis no pavilhão do príncipe.

– Temos uma grande revelação para fazer! Savannah é irmã do Lucky! – os dois ladrões gritaram em uníssono parecendo enfim entender toda a situação. Somente após a revelação, eles viram Jared no canto do pavilhão e sobressaltaram de susto.

– Qual é dificuldade das pessoas anunciarem a entrada delas?! – Thor resmungou, irritado.

– Esse é o irmão mais chato entre os três! – Louis apontou.

– Por que diabos você viaja com esses patifes? Não eram os comparsas de Berbatov?

Thor suspirou, colocando-se sobre as pernas cansadas.

– Talvez sejam de ajuda, eu preciso conversar com vocês dois. Dentre nós quatro, são os homens que conhecem Savannah há mais tempo. Nós precisamos revelar um grande segredo para ela, mas não sabemos como fazê-la reagir bem a isto. Conviveram com o Berbatov, o que convenhamos, eles não são tão diferentes assim. Estariam prontos para ouvi-lo e sobretudo guardar discrição?

Os ladrões acenaram com a cabeça.

– Mas é claro que sim! Por que ao contrário do que esse arqueiro arrogante diz, sabemos ser devidamente prestativos! – Louis rosnou.

– Isso mesmo! – Rhys Gleccor completou.

– Ignorem-no e me ouçam, atualmente seguimos para o Oeste, e lá vamos encontrar algo importante. Alguém importante – Thor pronunciou com cautela, na esperança que eles não se perdessem.

– E quem é esse alguém importante? – Legrand retorquiu desdenhoso.

O príncipe fitou o arqueiro e esse assentiu, mesmo que fosse com desprezo. Thor preferiu começar com o assunto que acredita ser o menos problemático:

– Lucky Berbatov.

– O QUE?! – os ladrões berraram em uníssono.

– Todo esse tempo ele estava nos levando para encontrar esse ingrato?! – Louis ladrou. – Eu me recuso! Não olharei na cara dele!

– Você mesmo disse que às vezes sonha com ele! – Ari relembrou.

– Sonho que estou quebrando a cara desse maldito Berbatov!

– Eu não acabei! E falem mais baixo! Amélia Norwood também estará lá!

– O QUE?! – os ladrões tornaram a berrar em uníssono.

– SHIU! Berbatov estava certo, Mia nunca morreu no Baile de Sangue e...

– Thor, eu esperava mais de você. Depois de todos esses anos de amizade, você nos enganou dessa maneira?! – Louis gritou, enfurecido. – Nós te acolhemos entre nós como se você fosse um ladrão!

– Minha Mia está viva e você escondeu isso de mim todo esse tempo!? – Ari explodiu, irritado. – E ainda por cima está nos levando todos para lá sem sabermos o que nos espera!

– Ari – Louis tentou interrompê-lo.

– Não vou me calar! Que pouca vergonha, você sabe que eu sofro de problemas de coração?! E não pretendia nos contar que estamos indo ver a princesa Mia, em carne e osso, ao invés de morta, e que ainda está com Lucky Berbatov! Antes de tentar conseguir o perdão de Savannah, terá que conseguir meu perdão!

– Ari! – Louis gritou e apontou para a porta, onde Savannah estava paralisada e com os olhos arregalados.

Savannah voltou a realidade após o choque, franziu o cenho e atirou um olhar fulminante para cada um dos homens naquela cabana, mas este perdurou mais tempo sobre Thor. Em seguida, sem nada dizer, saiu dali batendo os pés.

– Acredito que... isso sirva como um pedido de desculpas – Ari limpou a garganta, e mostrou um doce sorriso para o príncipe que lhe mostrou uma expressão irritada.

– Irei procurá-la – Jared suspirou.

– Não, eu vou. Eu lhe menti, devo concertar isso – Thor retomou a palavra, e seguiu para a saída.

O príncipe Meszaros saiu de seu pavilhão e não sabia por onde procurá-la, mas seu olhar cruzou-se com o de seu meio-irmão. Hans parecia ter adivinhado quem ele procurava e assim apontou para o Norte. Agradeceu com a cabeça e seguiu em passos apressados para lá. Sabia que era um caminho sem saída por ali, mas ao alcançá-lo não avistou a arqueira. Com o cenho franzido, ouviu o áspero ruído vindo de uma das paredes e viu Savannah escalando as rochas menos inclinadas.

– Savannah – chamou, fatigado. – Desça daí antes que se machuque.

– Ainda ousa falar comigo como se fosse uma criança – ela rosnou, irritada, continuando sua marcha violenta e furiosa. – Volte para seu pavilhão e me deixe em paz!

E num certo momento, perdeu-a de vista no breu. Sem escolhas, ele seguiu seus passos, aproximou-se das pedras inclinadas e verificou a possibilidade de conseguir andar em cima delas. Eram escorregadias devido os grãos de areia, porém com cuidado conseguiria fazer.

– Que os deuses estejam ao meu lado – suspirou, e começou a subir.

Por três vezes seguidas teve o risco de escorregar e quebrar seu pescoço, suspirou examinando as chances de poder retornar, porem a descida parecia apenas uma negritude sem fim. A opção menos pior parecia continuar subindo. Deuses, Thor nem ao menos sabia como ela podia subir com tanta facilidade sobre as rochas em plena escuridão, mas já era tarde demais para retornar.

Com esforço, demora e cuidado, Thor conseguiu alcançar o topo, zonzo e atordoado com o excesso de areia sobre seu corpo. Não deveria ter bebido tanto! Entretanto, quando vislumbrou a paisagem que tinha lá de cima, de certa forma, a subida não pareceu tão penosa. O céu estava forrado de estrelas, como ele nunca tinha visto, e diante a si via um horizonte decorado por montanhas escuras. Savannah estava encolhida perto da falésia.

– Garotas normais chateadas, correm para seus quartos, você poderia ter corrido para seu pavilhão – sugeriu, dobrando seu corpo e apoiando nos joelhos, à medida que tentava recuperar seu fôlego.

A arqueira lhe atirou um olhar incrédulo e irritado.

– O que está fazendo aqui?!

– Acredite ou não, príncipes também são capazes de escalar pedras perigosas no meio da noite – troçou, arfante. Mas acrescentou num murmúrio fatigado para si mesmo: – Ou talvez não.

– Apenas vá embora, Thor. Eu não quero falar com ninguém.

– Eu sei, não agi corretamente, ocultando a verdade de você – suspirou, aproximando-se.

– Pare de colocar palavras bonitas para contornar os fatos! Você mentiu! – ela corrigiu. – Diversas vezes!

– Eu sei, mas se posso dizer, fi-lo por uma razão!

Savannah colocou-se em pé e virou-se para ele.

– Boa razão? Todo esse tempo eu venho tentando compreender o que você desejava, e por um minuto acreditei que fosse de boa fé suas ações, mas em todo esse tempo, tudo que você queria era parar a revolta e me levar para sua não falecida princesa, seu grande amor! Você seguiu bem sua missão? Ela tornará à amá-lo mais do que ama Berbatov?!

Thor soltou uma risada sem humor, e abaixou os olhos. Continuou a se aproximar, passando por ela e sentando na beira da falésia.

– A verdade está bem longe disso. Acho que será mais interessante você se sentar e ouvir o que tenho para dizer, do que me ajudar a descer aquelas rochas infernais de volta para o acampamento.

SURRENDER – NATALIE TAYLOR

Savannah parecia relutante, mas terminou por sentar, distante dele.

– É verdade, Mia está viva. Esteve esse tempo todo. Berbatov foi o único que acreditou nisso, e me convenceu a acreditar. Viajamos pelo continente, tentando não nos matarmos, e terminamos por encontrá-la vivendo com um povo que morava atrás do Vale de Trinton.

– Os canibais?

– Eles inventaram esse mito para manterem curiosos afastados. Três povos diferentes moravam lá, e Mia estava com um deles. Pretendia retornar a guerra, mas precisava de um exército. Assim, tentou convencer os outros dois de se unir com ela. Acontece que numa dessas reuniões, as coisas saíram do controle. Para contornar a situação, ela fez algo que eu não aprovei. Me senti de alguma forma, usado. Assim eu decidi que estava na hora de retomar o controle de minha vida e voltar para onde eu pertenço.

– Foi dessa forma que nos encontramos pela primeira vez – ela abrangeu. – E você mentiu para mim.

– Sim – ele confessou, observando o céu. – Seu irmão Jared, ele soube que esses povos que Mia uniu atacaram uma das casas do Oeste, a do senhor que destruiu a ALDA destruiu as minas, Lorde Diámat. Assim pensamos que a melhor maneira de fazer com que as coisas voltem ao seus devidos eixos, era se fossemos ao encontro da princesa e encontrássemos um trato com ela. Acredite ou não, é alguém mais propicia a negociações do que o rei Elliot.

– Ele sabe que ela está viva?

– Eu não sei, mas acho que não. Há muitas coisas acontecendo, pouco tempo para refletir nas boas decisões a tomar e no que fazer. Porém a verdade é que: eu não salvei sua casa por Mia, ou pelo Norte, Savannah. Fiz isso por mim.

Ela enrubesceu, arregalando seus olhos.

– Por que? – perguntou com a voz engasgada.

Thor tirou o olhar do horizonte estrelado e fitou a arqueira.

– Porque no fundo, eu entendo sua necessidade por mudança e admiro seus esforços por isso. Simpatizo com você e com Ulysses. Então não podia simplesmente deixá-la caminhar para sua própria morte. Rever Mia será tão difícil para você quanto vai ser para mim. Mas, eu acho que será a melhor escolha a fazer.

– Eu teria feito desde o início se tivesse me contado a verdade. A última coisa que desejo nesse mundo é rever Mia Norwood e Lucky Berbatov, porém pelo bem dos arqueiros, eu estaria pronta a tudo.

Thor fitou o semblante dela, estudando os traços de seu rosto, e deixou um sorriso aparecer nos seus lábios. Ela rapidamente desviou o olhar.

– O que foi? Por que diabos está me olhando assim?!

– Tenho outro pedido para você.

Savannah tornou a olhá-lo.

– Terá que me ajudar a descer aquelas malditas rochas. Como conseguiu subir aquilo tão rapidamente no escuro?!

Roubou inesperadamente uma risada dela.

– Deveria deixá-lo descer sozinho e se espatifar no processo. Em recompensa pelas mentiras contadas.

– Deuses, ainda não fui perdoado?!

– Eu já lhe disse que se tivesse me contado a verdade desde o início, eu teria aceitado!

A conversa dos dois fora interrompida quando eles ouviram o nome do príncipe ser chamado. Se entreolharam e levantaram-se rapidamente, seguindo para o caminho que lhes levara até aquela falésia. Thor tentou ver quem o chamava de lá embaixo, e vislumbrou o que parecia ser Hans.

– Há um exército se aproximando pelo oeste! Acredito que seja de Lorde Diámat! Devemos levantar tropas! – seu irmão anunciou.

VI

Antes do sol erguer-se no céu, Elliot Norwood já estava fora da sua cama. Tinha um pequeno-almoço previsto com Ethel Grimhilt, segundo ela, gostaria que o rei sentisse um pouco mais "comum", como o termo que utilizara. Suas dores de cabeça vinham da realeza, se ele se sentisse como um simples homem que tem refeições na cozinha, ele aprenderia mais sobre a simplicidade da vida.

O rei não estava certo sobre suas palavras, porém uma coisa era verídica. Com Ethel, ele conseguia escapar da realidade, ela já fazia parte de sua família, e carregava seu filho. Sorridente, Elliot se vestiu, trocando algumas vagas conversas com o espectro de sua falecida irmã mais velha. Em seguida, antes de se encontrar com a aia, quis verificar se a surpresa que lhe preparava estava pronta: o quarto que acolheria o filho deles já estava pronto!

O quarto estava perfeito, misturando o azul mar com o branco. O rei recolheu uma peça de seda azul perolado. Já tinha planejado o discurso, pediria para Ethel adivinhar de onde aquele tecido pertencia, ela conhecia quase todos os quartos do castelo, nunca acertaria, assim ele lhe pediria para que lhe acompanhasse até o tal aposento.

O rei exalava alegria, e mal esperava por anunciar a surpresa a aia. Seu primeiro filho viria ao mundo mais rápido do que o esperado, e ao invés de estar aterrorizado, pelo seu título irreversível de bastardo e pela guerra, Elliot sentia-se feliz. Apesar de todos os contratempos, apesar de todos os problemas, a chegada de um filho sempre seria um presente. Um recomeço de uma família!

Retirou-se dali e reconheceu a pessoa que zanzava pelos corredores escuros no início da alvorava. Era o mensageiro do castelo. Ainda sorridente, o rei perguntou se havia algo de urgência para ele. Porém o mensageiro alegou que não, somente para Conde Butler.

Aspen não mandara notícias desde então, nem sua mulher. Estava começando a se inquietar com o demasiado silêncio dos dois. Por isso, pediu a carta destinada ao Conde, talvez fosse algo do seu interesse. Sem hesitar, o homem lhe estendeu o estranho rolo de papiro que não tinha nenhum selo, nem remetente.

– Tem certeza de que irá ler uma carta para o Conde? – Mia quis saber.

Elliot esperou o mensageiro afastar-se e cochichou.

– Conde Butler não tem família, nem mulher, então certamente não se trata de nada pessoal. E estranhamente não tem remetente.

Quis aproveitar a luz dos archotes das escadas que levavam para a cozinha para poder ver do que se tratava a carta, e quando ali chegou, abriu com delicadeza a carta à medida que descia e abruptamente parou de andar, paralisado. Ele arqueou seu olhar pálido para o espectro de sua irmã mais velha, e tornou a ver o que estava escrito.

– É uma carta sua! – ele soprou, desprovido de qualquer força. – Aqui diz que você está viva e que precisa de mim.

Ele arqueou o olhar aturdido para o espectro de sua irmã que ficou silencioso.

– O que está acontecendo? – Elliot perguntou, horrorizado.

– Elliot – Mia o chamou, aproximando-se dele. Queria acalmá-lo. – Respire e não entre em pânico. Se eu estou aqui desde a minha morte, como posso enviá-lo uma carta dizendo que estou viva depois todo esse tempo?! E ainda lhe peço ajuda? Isso é insano!

– Por que Conde Butler receberia essa carta?! – questionou, atordoado.

– Eu não sei, mas, lembre-se das palavras de Valerye – Mia afirmou. – A vinda ou o retorno de uma farsa implicará na morte certa.

– Uma falsa Mia? – ele suspirou, trêmulo.

– Em tempos de guerra e tensões políticas, existem sempre aqueles que tentarão ganhar acima de outros. Uma falsa reencarnação de Ceres seria capaz de atrai muitos seguidores que se recusam acreditar na sua morte. Você tem que parar isso, Elliot!

Uma vertigem assombrou o jovem, que precisou de ar.

– Eu não posso, eu não posso fazer nada agora!

Noah Gundersen & The forest rangers - Day is Gone

Ele cambaleou os últimos degraus e alcançou a cozinha, perturbado com a notícia que acabava de receber.

– Ethel, querida? Sei que você está irritada pelo atraso, mas rapidamente me perdoará...

O rei não lhe avistou na primeira sala, onde costumava ficar as frutas. Pelo contrário, estava vazia, porém ele não pôde deixar de notar as pegadas cor de rubro que levavam até a segunda sala, onde se encontrava os fornos. Trêmulo e com todos os pelos do corpo ouriçados, Elliot arrastou-se para o segundo ambiente atravessando o arco, e vislumbrou sob os olhos incrédulos, um corpo ensanguentado estirado sobre a pedra fria. Apesar de todo o sangue que banhava o âmbito e o cadáver, o rei sentira seu coração parar de bater ao reconhecer perfeitamente a mãe de seu filho que jazia brutalmente assassinada em seu leito. Um gemido correu pela boca fria dele, que não soubera como reagir, então continuou a choramingar seu nome, aproximando-se da jovem pálida e com os olhos esbugalhados, revelando o medo que sentiu nos seus últimos segundos de vida, antes de ser friamente assassinada.

Um choro dolorido e agoniado correu pela boca de Elliot que tivera de encontrar seu apoio no chão, e aconchegou a mãe de seu filho nos braços, tocando sua barriga e segurando seus cabelos. Implorou através de gritos desesperados que aquilo não fosse real, que ela não tivesse partido com seu filho. Mas era. E ele podia senti-lo pela pele cadavérica e pelo sangue denso que sujava suas vestes e sobretudo a seda de azul perolado que envolvia agora Elliot com o doce abraço da morte, anunciando que seus amores tinham lhe deixado.

A porta do fundo da cozinha fora forçada a ser aberta e dali viera a voz familiar de Astrid, dizendo que era um alívio chegar enfim em Skyblower, mas um pesadelo que alguém do castelo lhe visse imunda como estava. Atrás de encorpadas lágrimas, Elliot viu-a se aproximar completamente suja de barro, e sangue seco, sendo seguida pelo Conde Butler, que se encontrava igualmente sujo. Eles se depararam com o rei atirado no chão, lamuriando dolorosamente a súbita morte da mãe de seu filho que jazia ensanguentada nos seus braços. Ficaram estáticos, sob o choque, sem saber como reagir, enquanto Elliot Norwood gritava de dor.

+++

Until we go down – RUELLE

No final da noite, a escuridão da madrugada tinha dado espaço para o eminente alvorecer. O exuberante sol se erguia na negritude, trazendo claridade para o mundo sombrio. Sobre o deserto árido de Harah, a luz batalhava contra as trevas, revivendo todos aqueles que tinham sido levados pelas trevas. A aquela grandiosa luta deixava traços pelo céu, porém não importava quanto a escuridão lutasse para manter seu posicionamento, a claridade estava certa de ganhar trazendo o dia para o mundo.

Debaixo daquelas estonteantes cores, um misto escuras com claras, o exercito dos Povos Além do Vale terminavam de massacrar todos os gladiadores que retornavam da ALDA. O Comandante Berbatov tinha pelejado com ódio e sede de vingança, enquanto a Comandante Norwood com garra e fúria, descontando todo seu luto na batalha. Ambos responsáveis pela morte da maior parte dos gladiadores, lutando como se não houvesse amanhã.

O arqueiro libertou todo os seus demônios naquele momento, e quando se deparou com o último homem restante, exterminou-o sem piedade. Em seguida, arfante, ele procurou por sua companheira que era iluminada excessivamente pela luz matinal. Estava suja de sangue de seus inimigos e de pó, mas ainda assim era incrivelmente bela. Apenas com uma troca de olhares desconfiados, o Casal Comandante percebeu que havia algo devidamente errado.

Tinham acabado de enfrentar por volta de duzentos homens que retornavam da ALDA, que supostamente não tinha nenhuma proteção contra aquele massacre previsto, teriam eles conseguido se defender? Ou aquela era apenas uma parte do exército do Lorde Diámat e a outra tinha ficado no pé do Vale de Trinton para impor uma base militar? Era a hipótese mais aplausível. Porém o coração de Berbatov apertava, tinha assassinados demasiados homens, e ninguém tinha visto uma refém ou uma mulher. Onde estava Nália Crawford?

– Pode ter sido uma armadilha – Mia sugeriu, arfante, como se estivesse lendo seus pensamentos.

– Penso o mesmo – Berbatov respondeu num resmungo, ranzinza. – Mas isso não responde onde está Nália.

Mia se aproximou dele e tocou em sua mão, trêmula de raiva.

– Vamos encontrá-la.

– Comandantes! – a voz de Ken se sobressaiu, e ele apontou para o horizonte diante a eles. – Há um exército se aproximando!

O Casal Comandante seguiu sua indicação e viu o que ele afirmava, apesar da luz cegante do sol que atrapalhava excessivamente a visão deles, conseguiam ver de fato a aproximação de um grande exército, maior que aquele que tinham acabado de enfrentar.

– E aí vem a armadilha, queriam nos cansar – Lucky deduziu, com desgosto.

– Retomem suas posições! – Mia vociferou para o exército atrás de si. – Nosso inimigo acredita que esse joguinho foi o suficiente para cansarmos. Mostraremos agora nossas verdadeiras capacidades após esse aquecimento.

Os Comandantes tomaram a liderança do exército e marcharam com determinação contra seu inimigo – que avançava na mesma velocidade – todos preparados para um verdadeiro banho de sangue. A luz solar estava contra os olhos dos guerreiros, impedindo-os de decifrar quem eram os mais novos adversários.

Uma pessoa se afastou do campo do inimigo e correu na direção da princesa. Mia Norwood, de frente para o sol, não conseguia ver seu rosto, somente sua grande silhueta. Rapidamente, ela se pôs em posição de ataque com seu arco e quando estava pronta para atirar, reconheceu o rosto de Ari Rhys Gleccor. Abaixou o arco, boquiaberta e fitou o restante do exército, atonitamente encontrando o príncipe Thor Meszaros, ao lado de Hans Kovacs, seu meio-irmão. Lucky Berbatov, chocado, vislumbrou seu irmão que não via há mais de um ano Jared Crawford, e deduziu que a jovem que tinha o mesmo cabelo cor de ébano era Nália Crawford, teve receio de cruzar seu olhar com ela, mas sua curiosidade falou mais alto. Fitou-a pela primeira vez e sentiu seu coração parar quando reconheceu aqueles traços que agora pareciam tão similares aos de Jared, porém outrora nunca tinha feito a ligação. Era Savannah Campbell que agora respondia pelo nome de sua irmã mais nova Nália Crawford. 

_______________________________________________

Trigésimo oitavo capítulo da série do terceiro livro da série As Adagas de Ceres

13675 PALAVRAS

Meuuuuuu deuuuuuus, chegou o esperado encontro!!!!! Espero que estejam tão ansiosos quanto eu estou para esses dois últimos capítulos do terceiro livro!!! 

Aviso para os cardíacos de plantão : tem bombas vindo de todo o lado uhshshushuhs 

OBRIGADA POR TEREM CHEGADO ATÉ AQUI <3


Continue Reading

You'll Also Like

2K 207 19
Depois dos acontecimentos em duskwood, Isabelly se vê em mais um desafio, um cara chamado Eric manda mensagem para ela perguntando sobre seu amigo de...
Psicose (Livro I) By Andie P.

Mystery / Thriller

4M 253K 49
Melissa Parker é uma psiquiatra recém-formada que encontra seu primeiro emprego em um manicômio judiciário. Em meio aos novos desafios, se vê encanta...
96.3K 6.5K 75
𝑳𝒊𝒗𝒓𝒐 1 (𝑪𝒐𝒏𝒄𝒍𝒖𝒊́𝒅𝒐) Jade Hollister é uma garota de 22 anos que acaba de se mudar para Liberty City, uma cidade agitada e misteriosa. ...
11.9K 3.1K 101
Special Case Files of Rebirth por The Road of Fantasy (重生之特别案卷 by 狂想之途) Ano: 2013 Gênero: BL, suspense, drama, assassino. Status no país de origem: C...