O Exorcismo de Marlon Gayler...

By AngeliPietro

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"Internado contra a vontade em um colégio religioso liderado por freis, Marlon Gayler precisará unir-se a Dan... More

[PRÓLOGO] Pecados do Passado
[LIVRO UM] Cap.1 - Trancafiado
Capítulo 2 - O Garoto Problema
Capítulo 3 - Saint-Michel
Capítulo 4 - Regras Rígidas
Capítulo 5 - Garoto em Fuga
Capítulo 6 - Sombras na Escuridão
Capítulo 7 - Dan Mason
Capítulo 8 - Sussurros
Capítulo 9 - Laços de Sangue
Capítulo 10 - O zunido do vento
Capítulo 11 - Descendo
Capítulo 12 - Algo estranho no ar
Capítulo 13 - Murmúrios
Capítulo 14 - Uma mente atormentada
Capítulo 15 - Diálogos suspeitos
Capítulo 16 - Ventos Frios
Capítulo 17 - A Vila
Capítulo 18 - Pétalas na Neve
Capítulo 19 - Flocos de Gelo despencam do Céu
Capítulo 20 - Sombras do Passado
Capítulo 21 - Hábitos, Caixas e Recordações
Capítulo 22 - Sob o manto da noite
Capítulo 23 - Soterrados
Capítulo 24 - Castiçais, lamparinas e uma densa escuridão
Capítulo 25 - Sete palmos de terra
Capítulo 26 - Falsa Calmaria
Capítulo 27 - Pecados na noite de natal
Capítulo 28 - Estilhaços
Capítulo 30 - Tormenta
[LIVRO DOIS] Interlúdio "A chegada da escuridão"
Capítulo 31 - Asas Negras
Capítulo 32 - Crepúsculo dos Irmãos
Capítulo 33 - O chocalho da Serpente
Capítulo 34 - Confidências
Capítulo 35 - Frio e Neve
Capítulo 36 - Ratos e Homens
Capítulo 37 - Nervos Aflorados
Capítulo 38 - Fotografias
Capítulo 39 - Uma noite movimentada
Capítulo 40 - O velho embriagado
Capítulo 41 - Quarto 24
Capítulo 42 - Sem Voz
Capítulo 43 - O retorno
Capítulo 44 - Reencontro
Capítulo 45 - O passado está aqui
Capítulo 46 - Cúmplice
Capítulo 47 - Tramas Sombrias
Capítulo 48 - O visitante da Madrugada
Capítulo 49 - O Princípio
Capítulo 50 - Segundo Andar
Capítulo 51 - Verão
Capítulo 52 - Sob o capuz
Capítulo 53 - O sangue
Capítulo 54 - O frei Jubilado
Capítulo 55 - Promessas Quebradas
Capítulo 56 - Quando a noite cai
Capítulo 57 - Traição
Capítulo 58 - Tensão
Capítulo 59 - O silêncio da Mata
Capítulo 60 - Homicida
Capítulo 61 - Onde o choro não pode ser ouvido
Capítulo 62 - O trono da Escuridão
Capítulo 63 - O julgamento
Capítulo 64 - Sob o raiar do sol
Epílogo - O doce perfume da primavera
Vem se apaixonar...
Livro Físico - Adquira já o seu

Capítulo 29 - Preto e Branco

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By AngeliPietro

— Um corvo? — questionou o padre-diretor parado frente aos curiosos. Adiante, os vários cacos do vitral se espalhavam pelo piso, e os olhares projetavam-se por todos os lados. A noite de natal estava fria, mais fria que o costumeiro. O vento soprava trazendo flocos de neve pelo grande vão onde outrora estivera o Arcanjo, e Alex Cotton também não conseguia explicar o que pensara ter visto.

— Sim — Ele umedeceu os lábios, ajeitando o hábito — Um grande corvo escuro, ele... bem, não sei como entrou, mas no susto para sair, deu contra a vidraça e ela se partiu.

O padre-diretor o encarou por um momento mais.

— Mas um corvo? Você tem certeza? — O bispo os interrompeu, analisando a bagunça — Em Palência pássaros sempre rondam as vidraças das catedrais, e não há notícias de que partiram alguma. Principalmente do jeito que aconteceu a esta — Olhava assustado para os vários cacos coloridos pelo chão, e frente a eles, o quadrado intacto do que um dia fora o rosto da abominação.

— Deve ter sido um dos garotos — O frei Mantenedor passou o olhar pelo aglomerado de rostinhos a fofocar lá embaixo — Algum deles deve ter atirado um objeto contra o vitral.

— Não havia garotos por aqui — Cotton murmurou, sentindo o vento frio soprando as vestes — Apenas eu e o frei Beterrabas conversávamos quando aconteceu.

O padre caminhou por entre os cacos, seu hábito escuro sendo esvoaçado pelo vento. Então, entre os vários freis que ali estavam, ouviu-se uma voz retrucar baixinho:

— Um sinal de reprovação por termos realizado festa com tamanha comilança.

Todos os olhares se voltaram para o velho, que ergueu a cabeça fitando o padre.

— O que disse frei?

— Que esta ceia nunca deveria ter sido realizada padre — o homem resmungou uma vez mais — Que o nascimento de Cristo deveria ser celebrado com maior reverência, não com comilanças desnecessárias, e sim jejuns e orações.

O bispo limpou a garganta sentindo ali um grande equívoco.

— Quando nasceu, o menino Jesus foi presenteado por quem vinha visitá-lo frei — disse amavelmente, com o vento corando suas bochechas — A noite de nascimento do Senhor, deve ser celebrada com alegria, porque ele nos anunciou a salvação.

O velho pareceu não dar ouvidos àquilo, seus pensamentos pareciam reprovadores demais para ater-se a qualquer nova doutrina.

Então a voz do padre-diretor sobressaiu:

— Frei Mantenedor, providencie a limpeza disto e algo para isolar o vão até tomarmos alguma providência. E quanto a vocês... — se aproximou do corrimão, e encarou o aglomerado de garotos lá embaixo — Todos devem seguir para seus dormitórios.

Murmúrios descontentes soaram entre os internos, afinal, muitos esperaram pelo momento da ceia como quem espera pelo aniversário, e agora não poderiam sequer saborear algum dos assados.

Foi quando o Bispo chegou pelas costas:

— Padre, perdoe-me a intromissão, mas — ele fez uma pausa observando o homem se virar — Acredito que não seja para tanto. O que ocorreu esta noite foi apenas um imprevisto. Permita que a comemoração prossiga.

Todos ficaram em silêncio aguardando uma resposta. Apenas o som do vento podia ser ouvido, e então o zunido de sapatos vindo do corredor lateral. Quando Beterrabas se projetou entre eles, todos viraram as cabeças.

— Frei das hortas? — O padre deixou o Bispo, e o observou se aproximar desajeitado — Onde esteve? — questionou, e Beterrabas sentiu os olhos de Cotton postos sobre si.

— Eu, bem...

— Ah, tudo bem, isto não importa — interrompeu-o — Você também viu o tal corvo do qual Cotton fala? Realmente uma ave se lançara contra o vitral?

Beterrabas olhou uma segunda vez para a feição de Alex Cotton, e então tornou ao padre, gesticulando positivamente com a cabeça.

— Curioso — O bispo murmurou — Talvez tenha entrado por alguma porta ou janela aberta. Não estaria alguma esquecida nos andares acima?

— Mas eles não morrem quando chega a neve? — um dos freis sussurrava baixinho com o companheiro, e exatamente quando falava, todos pareceram ouvir. Diante do silêncio repentino, curvara a cabeça ficando vermelho, então a voz do padre ecoou:

— Frei John, por que não auxilia o frei da manutenção com as taboas para tapar o buraco? — o homem curvou a cabeça respeitosamente, e virando-se, seguiu o colega para baixo — Quanto a você frei Beterrabas — virou-se para o responsável pelas hortas — Escolha dois garotos e limpe esta bagunça.

"Deus misericordioso"

De repente uma voz assustada ecoou lá embaixo, interrompendo o diálogo. Apreensivos, todos os internos viraram a cabeça em direção ao salão comum, para onde o frei da Manutenção olhava assustado. A voz ecoou, completando a lacuna:

— Padre, acho que o senhor queira ver isso.

O bispo olhou fixamente para ele, e ajeitando o hábito, o velho tomou postura e pôs-se a descer a escadaria em companhia dos demais. Abrindo um corredor para que ele passasse, os internos estavam a murmurar assustados, e quando o padre se colocou à entrada do refeitório, parou de supetão, surpreendendo-se com a imagem que vira.

Ratos. Havia ratos por toda parte. Sobre as mesas ratos roíam os assados, abaixo das cadeiras ratazanas desfaziam pedaços de pães. Vários ratos escuros e manchados, grandes e medianos, passeavam pelo elevado. Eles se espalhavam por cada centímetro como uma infestação esfomeada, e diante da cena, os freis começaram a fazer o sinal da cruz.

— O frei das granjas tinha razão — um dos irmãos sussurrou baixinho com o companheiro — Foi um erro realizar a ceia. Devíamos encerrar o festejo agora mesmo e rezar por perdão.

— Besteira — Outro frei murmurou, saindo por detrás dos companheiros — Os ratos sempre estiveram entre nós. Vieram porque não foram de um todo exterminados como devido — encarou o frei da manutenção que franziu o cenho — E o corvo, certamente entrou observando-os se movimentar.

As conjecturas e murmúrios se espalharam por todos os cantos. Fosse entre os freis, ou entre os internos, cada um dava sua opinião para o motivo de tantas coisas estranhas estarem acontecendo em uma só noite. Ninguém entrava em consenso, e logo a discussão tornou-se mais acalorada, até que perdendo a paciência, a voz rude do padre ecoou acima das demais.

— SILÊEEENCIO — Os murmúrios cessaram imediatamente, e ele encarou a multidão sentindo-se tremer — Todos vocês — dirigiu-se aos internos assustados — subam agora mesmo para os quartos, e não saiam até segunda ordem — virou-se ao aglomerado de freis que o observavam surpresos — E quanto aos monitores, acompanhem-nos e confiram os corredores, para certificar-se de que não há ratos nos demais andares.

— Diretor...

— Perdoe-me bispo, eu... não imaginei este imprevisto — ele interrompeu o velho sem diminuir a postura de responsável pelo lugar. A última coisa que precisava no momento era de novos palpites — O inverno em Saint-Michel sempre foi rigoroso, este ano chegou mais cedo, e acredito que houve algum desequilíbrio da natureza — então se virou para os demais que aguardavam um momento — Quanto ao restante de vocês, providencie a limpeza do refeitório. Exterminem todos os roedores e depois vão se deitar. Pela manhã discutiremos o que houve aqui.

***

Marlon estava de pé, parado perto da porta com os pensamentos revoltos quando ouviu a estranha movimentação lá fora. O som dos cânticos já havia cessado há algum tempo, e o silêncio repentino só podia indicar que o momento da ceia era chegado. Entretanto, diferente do que esperara acontecer, agora os colegas vinham pelo corredor a cochichar intensamente, em uma nuvem de murmúrios desconexos e sons de passos vacilantes.

Ao que parecia, mencionavam algo acontecido lá embaixo. Ouvia ruídos sobre ratos, corvos e a suspensão da refeição. Nada do que falavam fazia sentido, e Marlon pressentia que havia algo muito estranho no ar.

Afinal, por que Beterrabas viria a seu quarto com visível feição aflita? Por que mesmo depois de flagrá-los, não contaria ao padre o que vira? Será que podiam mesmo confiar no frei das hortas? Confiar que suas intenções eram reais em ajudá-los a fugir?

Ele caminhou de volta à cama observando os lençóis repuxados. A lembrança dos corpos enroscados voltava o tempo todo, fazendo o coração acelerar e o baixo ventre remoer.

Aquilo fora uma loucura, nunca imaginou que sua primeira vez fosse ser de forma tão aflita e confusa, muito menos que Dan retribuiria com aquela intensidade. Pensar nele não contribuía para se acalmar, sentia algo ruim movimentando-se naquela noite, e isto fazia a garganta pressionar.

No corredor aos poucos os internos iam passando, cessando os ruídos conforme as portas rangiam sendo fechadas. Para sua sorte, a neve dera uma trégua já fazia algum tempo, e agora precisava unicamente se apressar, pois segundo as ordens do frei das hortas, deveriam encontrá-lo na porta dos fundos assim que as luzes fossem apagadas. E bem, isso já não demoraria tanto.

Afinal, o que levaria consigo? — pensou — Não poderia carregar muita coisa já que aquilo era uma fuga. Entretanto, sem saber por quais dificuldades passariam no caminho, precisava ao menos estar bem aquecido.

Ele respirou fundo caminhando até o guarda-roupa, revirando os uniformes pendurados. Jogou a camisola de um lado e passou a trajar uma das peças, rapidamente, sem dar vazão aos temores que tentavam fazê-lo vacilar.

Ainda que desse errado, ainda que fossem pegos, precisava tentar pela última vez. Não por si, mas por Dan e o irmão, que neste momento eram os que mais importavam. Sentia-se estranho por de repente não imaginar-se sem eles, por de repente o senso de proteção falar mais alto e ele querer apenas estar com os dois até as últimas consequências. Era diferente não pensar somente em si, perceber que estava amadurecendo, deixando de ser tão, egoísta.

Calçando os sapatos ele caminhou até a cômoda, antes de abri-la, conferiu a porta para ter certeza de que não seria surpreendido uma segunda vez. Então se abaixou puxando a última gaveta, e ajoelhando-se frente a ela, esticou a mão até o fundo, a fim de pegar os objetos que ocultara. Ele puxara na ponta dos dedos o pequeno embrulho onde estava o pingente de Dan Mason. O coração acelerou ao recordar-se da história contada no subsolo, e isto o fez sentir arrepios subindo pela espinha. Aquele objeto de alguma forma passara a fazê-lo sentir-se mal. Pensou em esquecê-lo para trás, entretanto, precisariam de dinheiro, e sabia que revendê-lo renderia um bom valor.

Então recordou outra vez o flagrante na porta dos fundos, aquele que os condenara às masmorras. Beterrabas vira o objeto, ele vira e Marlon percebera sua expressão assustada, porém, o frei das hortas não os denunciara ao padre, pelo contrário, agira em cumplicidade.

Afinal, por que Beterrabas estava fazendo isso? Qual seria seu interesse em ajudá-los? Ele saberia algo que os garotos não sabiam?

Erguendo-se Marlon fechou a gaveta e caminhou pensativo até a lateral do colchão. Ele desfez o embrulho vermelho e abriu a mediana caixinha tocando uma vez mais o adereço. Era impressionante como brilhava, e como mesmo guardado entre vários tecidos, permanecia frio.

O brasão de árvore dançava no fundo dos olhos, retorcida e espiralada. O brasão da família Mason, revendedores de madeira.

Erguendo-se com o objeto a balançar, caminhou em direção ao pequeno espelho que havia sobre a pia, e desfazendo os primeiros botões da camisa, o trouxe à altura do peitoral, passando a correntinha ao redor do pescoço a fim de apresilhá-la. Contra a luz, o adereço reluziu uma vez mais, e Marlon sentiu um arrepio quando o medalhão acomodou-se. Ele afastou as mãos e observou o contraste do pingente em ouro com a curva de seu torso, e tocando-o, outra vez recordou dos dedos de Mason acariciando-o bem ali.

Respirou fundo meneando a cabeça, e então se virou a abotoar a camisa. Precisava se apressar, o adereço viajaria em seu pescoço para não correr o risco de perdê-lo.

Ele caminhou de volta ao guarda-roupa, tomando dali um agasalho mais pesado e quente, e enquanto vestia, pressentiu uma estranha sensação às costas. Virou-se imediatamente e deslizou o olhar pelo recinto. Nada havia exceto o silêncio e o murmúrio do vento na janela. Só podia ser coisa da sua cabeça, embora os braços houvessem ficado arrepiados.

Ele voltou ao guarda-roupa e procurou um cachecol, então outra vez pressentiu aquela estranha sensação. Tornou a se virar com arrepios subindo pelo pescoço, olhando com atenção todos os cantinhos, mas nada havia exceto os móveis.

Era o temor — pensou — Ele estava outra vez tentando fazê-lo desistir, mas, não conseguiria, iria dar o fora, mesmo que para isso fosse necessário se arrastar até o andar inferior.

Respirando fundo, Marlon deixou o guarda-roupa e cruzou o ambiente colocando o ouvido na porta, a fim de conferir o movimento do outro lado. Percebeu então que todos os internos já haviam se recolhido, e que agora, o velho frei passava a verificar se as luzes já estavam apagadas.

Marlon manteve-se imóvel olhando para o nada quando pressionou o interruptor, trazendo o escuro, atento aos passos mancos que seguiam em linha reta frente às portas. O coração palpitava acelerado, recordando-se de Beterrabas surpreendendo-os e então de sua resposta quando fora questionado acerca do motivo para a pressa: "Algo muito ruim está para acontecer".

Afinal, o que Beterrabas queria dizer com aquilo: "Algo muito ruim". Será que mais alguém sabia do encontro? Será que o padre-diretor fora informado e agora aguardava o momento apropriado para castigá-los? Será que estavam em perigo?

Só de imaginar algo parecido deixava Marlon com o baixo ventre gelado. Foram descuidados demais, muito descuidados em se entregar ao desejo logo naquele local, frente ao corredor, em noite tão inapropriada. Mas agora isso não importava, não adiantava querer voltar atrás.

Observando a escuridão engolir o monastério, ele deixou a porta e retornou à cama sentando-se a esperar. Pensava em Dan, pensava em Jeremy, e então começou a pensar em seu primeiro dia sob aquele teto, quando o pai o abandonou aos cuidados dos velhotes sem escrúpulos.

Ele recordava-se do acordo sendo firmado com o padre-diretor quando na escuridão ouviu um estranho "baque".

Ergueu-se apreensivo. O coração pulsava acelerado, e sentia-se assustado quando caminhou em direção à porta, onde recostado com as pernas trêmulas, levou os dedos ao interruptor. Infelizmente não podia acender a lâmpada, não agora, antes que o frei do outro lado fosse se deitar. Então cerrou os olhos.

Mas afinal, o que fora aquilo?

Passando os olhos pelo escuro, observava o reflexo da neve na janela e ouvia o zumbido do vento nos pinheiros, fazendo o portão ranger. Ele respirava hesitante tentando encontrar o que fizera o ruído na lateral do quarto, mas a ansiedade apenas criava imagens sem nexo, o que o deixava cada vez mais apreensivo. Ele queria acender a lâmpada para revelar de uma vez por todas o que fora aquilo, sentindo arrepios, mas temia que o frei no corredor viesse repreendê-lo, então, precisava se acalmar e aguardar um pouco mais.

Ansioso e hesitante, Marlon umedeceu os lábios controlando a respiração, atento a qualquer novo zunido, e só após alguns minutos, certo de que os passos do frei se dirigiram à saída, tomou coragem para finalmente pressionar o interruptor.

A claridade imediata espalhou-se pelo quarto trazendo alívio. Percebendo então que o ruído nada mais fora do que o pequeno exemplar da bíblia que escorregara de uma pilha de livros e caíra no chão, ele esboçou um sorriso constrangido. Que idiota — pensou — A culpa fora toda sua, já que não organizava os materiais há dias.

Respirou fundo e se aproximou tomando o objeto, e erguendo-se, abriu a primeira gaveta e pôs-se a guardá-lo ali, junto com os demais materiais espalhados sobre a superfície. Enquanto os acomodava para passar o tempo, Marlon sentia estranhos arrepios pelas costas, e vez por outra se virava discretamente a fim de conferir os arredores, como se não estivesse sozinho, como se algo o estivesse a espionar em algum lugar.

Aquilo era muito desagradável e só o fazia recordar o episódio no banheiro, quando vira alguém o espionando pela fissura na parede. Dias haviam se passado, ele mesmo havia investigado, porém, sequer a fissura existira realmente.

Confuso, chacoalhou a cabeça para espantar as lembranças e voltou a ater-se à tarefa, tentando focar os pensamentos em coisas boas, como a primeira vez em que vira Dan, ou o passeio juntos ao vilarejo, ou ainda o encontro no armário de vassouras. Era bastante estranho tentar lembrar-se de momentos com ele, sem trazer junto as impressões nada agradáveis que faziam companhia. Ele refletia sobre elas quando tocou um dos livros, e puxando-o, fitou sua capa por um longo momento.

Observou os detalhes da brochura recordando-se da tarde no subsolo, da faxina no quartinho de bagunça, das silhuetas tramando algo no escuro. Marlon engoliu em seco passando as páginas vagarosamente até reencontrar a fotografia que roubara dos guardados do frei Monitor. As faces misteriosas continuavam a estampá-la, observando-o com olhar sem emoção, acompanhadas por vários outros rostinhos que ocupavam toda a escadaria.

Quem eram? O que tramavam? Como os vira tão nitidamente, frente a frente, se a maldita imagem datava de quinze anos antes? Se a maldita imagem datava do outono de 1995?

Muitas perguntas sem respostas. Muitas respostas sem cabimento. Tudo o que Marlon desejava era dar o fora dali, tudo o que Marlon desejava era reencontrar-se logo com Dan Mason, e finalmente deixar tudo aquilo para trás.

***

— Você precisa aguentar Jeremy — O sussurro do garoto cortou o silêncio, enquanto ele vestia uma roupa mais quente no irmão. Lá fora estava frio, e o rapaz adormecido bastante frágil. — Eu sei que é uma loucura ir pelas ideias do Beterrabas, mas, ele parece diferente dos demais, demonstrou-se confiável, como você mesmo dizia — retrucou ajeitando-o com cuidado, observando sua feição pálida. Desde que adoecera, o irmão caçula havia perdido muitos quilos, e aquilo era preocupante e de cortar o coração.

— Ele disse que tem uma charrete nos aguardando no estábulo — prosseguiu baixinho, um nó pressionando a garganta — Certamente dará um jeito de abrir os portões, ou talvez, pela forma como falou, até venha conosco — Umedeceu os lábios ajeitando seu corpo com cuidado, e novamente suspirou afastando-se. — O que não entendo é por que deseja nos ajudar, sabe? — caminhou parando aos pés da cama, colocando de lado o pano que usara para umedecer-lhe os lábios — O que ganhará com isso, por que se preocupa tanto?

Dan fez um momento de silêncio, reflexivo, recordando-se dos primeiros anos naquele lugar, quando foram transferidos do orfanato municipal para a colina do Arcanjo. Desde o começo Beterrabas fora o único a demonstrar-se amigável para com eles, e ainda que Mason tivesse retribuído de forma indiferente a princípio, o tímido frei nunca desistira de tratá-los com educação e atenção, atitudes completamente contrárias àquelas de Alex Cotton, monitor chefe da turma.

O homem desde o princípio demonstrara antipatia e desprezo pelos novatos, mesmo que nunca houvessem convivido, mesmo que nunca tivessem dado motivos aparentes. Alex Cotton simplesmente os odiava de graça, como fazia a todos, como se isto o conferisse prazer.

Entretanto para Dan pouco importava o que pensava de si, apenas queria dar o fora o quanto antes.

Agora, ajeitando a mochila com os remédios que levaria na viagem, recordava-se com maior nitidez do primeiro café da manhã que fizera sob aquele teto. Pensara a princípio que o confinamento em Saint-Michel tornaria a vida mais fácil do que fora no orfanato, pois diferente do abrigo onde a princípio foram alojados, o monastério era um ambiente que se dizia "cristão", administrado por homens que se intitulavam "servos do Senhor". Dan, no entanto, percebera que a tal colina não era bem como um dia idealizara, pois as atitudes daqueles homens vestidos de simplicidade demonstraram-se completamente contrárias àquilo que tentavam aparentar. Percebera que em seus corações reinava apenas o preconceito e a condenação, o julgamento e a amargura, como deixaram bem claro naquela manhã.

Mason respirou fundo lembrando-se daquilo, voltando a recostar-se aos pés da cama. Naquele dia ele mal se sentara no salão comum, e observara os olhos julgadores voltando-se para si, e então os murmúrios nada discretos começarem entre eles: "O mais velho matou os pais" — diziam de forma audível, como se fosse a coisa mais natural do mundo falar daquilo em frente a uma criança, pois era assim que Dan considerava o irmão caçula — "Ateara fogo na casa, matou os pais sem um pingo de remorso".

Malditos. Todos eles. Homens amargos que só pensavam em julgar. Mais preocupados em apontar erros que acolher, e infelizmente, mesmo que de forma indireta, conseguiam acabar por feri-lo.

Todos os dias era assim, sem exceção, e no quarto, ao fechar os olhos Dan os via novamente. Não aos freis, mas ao fogo lambendo as paredes da mansão, à mãe em seus gritos de desespero, ao pai, e então a Jeremy tossindo em seus braços, quando o retirou das chamas. Era perturbador rever tudo aquilo e acordar sufocado, sentindo o cheiro da fumaça, as cicatrizes a queimar, a angústia de não ter respostas.

"O cérebro criara uma espécie de bloqueio", fora o que os psicólogos disseram em uma das últimas sessões antes de ser transferido para Saint-Michel. Que sua mente criara um bloqueio para não ter que lidar com a dolorosa verdade, que o cérebro criara seu próprio mecanismo de defesa para ocultar a vergonha do que fizera.

Mason estava cansado de tudo. De sofrer perdido em uma noite sem respostas, de sentir-se outra vez sozinho, de sentir que fizera mal ao irmão, à família.

Meneando a cabeça, tentava afastar os pensamentos, voltando à lateral da cama e pondo-se a acariciar o irmão adormecido. Diante do silêncio e da respiração cálida do caçula, observava o corpo franzino e sem vida, como se a alma um dia alegre e radiante de Jeremy o tivesse abandonando aos poucos.

Talvez fosse o melhor para ele, que estivesse em sono profundo, afastado de todo aquele mal. Onde quer que estivesse agora, Jeremy parecia não sentir dor, deixando-a apenas para ele, que sentia outra vez os olhos marejar.

Ah. Como estava com saudade de ouvir sua voz quando ficavam sozinhos a conversar. Como estava com saudade de sentar-se na grama e senti-lo cutucar sua cintura sempre que o novato engomadinho se aproximava.

Jeremy confessara várias vezes que gostava dele, de Marlon Gayler, mesmo que Dan revirasse os olhos achando aquela história um absurdo. O irmão, no entanto, parecia não dar importância, pelo contrário, sempre que Dan punha-se a insultar o rapaz, ele o defendia, desdenhando de sua cara, percebendo que por detrás de tanta "implicação", havia algo escondido que Dan ainda era incapaz de compreender.

O que será que Jeremy diria ao saber sobre a aproximação entre eles? O que será que diria se soubesse que, bem, haviam se "aproximado" de forma mais intensa que o esperado? Será que o caçula encheria a boca para dizer "eu falei que vocês combinavam" ou talvez "no fundo sempre desconfiei"?

Imaginando a cena, Dan esboçou um sorriso triste, e massageando sua mão, sentiu uma tímida lágrima rolar pela bochecha. Secando-a depressa, acomodou Jeremy nos cobertores e deixou a lateral da cama, parando frente à janela, estudando uma forma para tirá-lo dali.

Certamente iria precisar da ajuda de Gayler, já que não conseguiria carregar o garoto e também os cobertores e a mochila com seus medicamentos, precisava apenas aguardar que ele viesse, como haviam combinado e então começariam a se movimentar.

Agora, porém, precisava passar água no rosto para continuar desperto, mas quando deixou a janela seguindo para a pia, ouviu o suspiro baixinho que o fizera interromper-se de imediato.

Jeremy?

Engolindo em seco, retornou com o coração acelerado. Parou rente à cama e tomou sua mão, conferindo se estava tudo bem.

O garoto estava da mesma forma, exceto pelos murmúrios que tentava expressar com muita dificuldade. Preocupado, Dan começou a tentar fazê-lo se acalmar, mas não estava adiando, Jeremy parecia necessitado de falar, e então, diante do nome sussurrado inúmeras vezes, ele aproximou os ouvidos para atentar-se melhor ao que dizia:

Gayler — o garoto umedecia os lábios, parecendo saber que Dan estava a ouvi-lo — Marlon Gayler. Perigo. Ajude-o... Ajude-o.

***

Na fotografia, as duas silhuetas persistiam em observá-lo de entre os demais vestidos de preto e branco. O interno mais alto e forte tinha expressões firmes, olhos penetrantes e ar de desdém, já o menor, gordinho e com grandes bochechas, parecia sentir-se envergonhado diante da câmera. A expressão séria e sem sorriso combinava perfeitamente com a textura antiga daquela fotografia, e aos fundos, o grande vitral do Arcanjo dava um ar mais "sombrio" às turmas bem enfileiradas.

Mantendo o silêncio, a ouvir somente o sussurro do vento, Marlon permanecia tentando decifrar o mistério sobre aquela gravura, esperando que o relógio sobre a cômoda marcasse duas da madrugada. Faltavam apenas quinze minutos, os últimos quinze minutos que pretendia esperar antes de ir até o quarto de Jeremy Mason e colocar o plano em andamento.

"Monastério Saint-Michel" — estava escrito em caneta no verso da fotografia — "Classe de 1995. Outono".

Não fazia sentido algum. Não fazia sentido a inscrição no verso da imagem, não fazia sentido ela ser tão antiga, e muito menos a feição dos garotos tão nítida em seus pensamentos, a tramarem na escuridão. Ele esperou por dias para que aquele mistério fosse solucionado e quando enfim tivera a oportunidade, as coisas ficaram ainda mais sem nexo. Pensando melhor, talvez Gurkievicz tivesse algum tipo de razão, talvez os tais rapazes fossem... fantasmas. — um arrepio subiu pela espinha e Marlon olhou ao redor, sentindo uma presença desagradável — Será que aquilo era possível? Será que Saint-Michel era realmente um lugar mal assombrado?

Pensar em fantasmas tornava inevitável retomar a memória sobre Margô de Beauvoir contando-o acerca do paradeiro de Flor de Lis, a amiga de Dan Mason: "Ela está morta" — a garota explicara no topo da escadinha, quando olhavam em direção ao rapaz parado no beco — "Minha prima Flor de Lis está morta há anos".

Engoliu em seco uma vez mais, voltando a analisar a fotografia. Era impossível lembra-se das estranhezas do lugar e não se arrepiar. Afinal, aquele tipo de coisa só existia nos filmes, fantasmas eram criações de escritores que buscavam ganhar dinheiro explorando o medo das pessoas, entretanto, não podia negar que as silhuetas à sua frente eram exatamente iguais àquelas que vira lá embaixo.

Ele respirou fundo uma vez mais tornando a olhar para o relógio, os ponteiros corriam vagarosamente e aos poucos a madrugada parecia mais fria. Envolveu os braços ao redor do corpo e dando de costas, aproximou-se vagarosamente da porta, colocando o ouvido sobre ela para ater-se ao movimento do outro lado.

Tudo estava quieto como esperava, então voltou para perto da cômoda, a fim de devolver a fotografia ao interior dela. Não levaria aquilo consigo, era inútil e, atemorizador. Deixaria os mistérios de Saint-Michel para Saint-Michel cuidar. Ele não pertencia àquele lugar, assim como Dan, assim como Jeremy Mason, ele não esquentaria a cabeça com aquilo, não mais.

"Olhe com atenção"

De repente um sussurro ecoou as costas e ele virou-se de imediato, explorando cada canto do quarto com olhar apreensivo, em busca do interlocutor. Não havia nada na quietude exceto os móveis e os lençóis amarrotados. Mas então a voz retornou:

"Olhe com mais atenção Marlon Gayler".

Assustado, Marlon sentiu-se vacilar, e engolindo em seco correu para próximo da parede. Aquilo era fruto da imaginação? — Questionou, meneando a cabeça — Seria a mente tentando pregar outra peça?

"Descubra a verdade. Descubra a mentira".

Não. Ele sentiu o corpo arrepiar, e atormentado, voltou para a região da porta, observando a fotografia cair das mãos e deslizar pelo soalho, dando curvas até descansar à sola dos sapatos. Então gaguejou:

— Quem está aí?

O silêncio respondeu, somente o portão e o zunido do vento ecoavam lá fora. Trêmulo e sem respostas, abaixou-se vacilante tomando a fotografia, e outro calafrio despertou as ligações nervosas do corpo.

"Olhe. Descubra. Compreenda".

Meu Deus. Desta vez buscou a maçaneta com apreensão, e tentou a todo custo abri-la, a fim de deixar o quarto. Mas para seu desconforto, a porta estava trancada por fora. Beterrabas não a deixaria aberta?

"Eu avisei para não confiar nele Marlon Gayler, e você confiou" — A voz retornou mais ameaçadora, vinda de todos os lados e de lado nenhum. — "Avisei para se afastar. Você não compreende o que é manter distância?".

— Vá embora — ele finalmente rebateu, sentindo vontade de gritar por socorro, mas... isto colocaria os planos a perder — Me deixa em paz, isto é apenas uma alucinação. — colocou as mãos nos ouvidos, não queria ouvi-la, e no desespero, voltou a tentar girar a maçaneta, mas sentiu as pernas anestesiarem vagarosamente.

Congelando como se estivesse paralisando, ele foi cedendo rente ao chão, sentindo-se desesperado pela falta de movimento, até sentar-se no soalho. O coração batia descompassado quando erguendo os olhos percebeu a silhueta parada do outro lado da janela, a observá-lo em silêncio. Olhinhos miúdos e escuros tinha a grande ave que via em seus sonhos, pousada sobre o peitoril coberto de neve.

"Eu avisei para não confiar" — A voz retornava parecendo vir da ave, e ao mesmo tempo de todos os lados — "Eu disse para se afastar, disse que mentia" — sussurrava ameaçadora.

Marlon gaguejou, sentindo a boca seca, e uma intensa vontade de chorar.

— Eu não compreendo, eu... por favor, deixe-me em paz.

"Ele mente. Veja a foto, veja a mentira. Descubra a verdade".

Ele protegia os ouvidos, estava assustado demais, e então, sem alternativas, tomou a imagem e trouxe-a outra vez a altura dos olhos.

A princípio tudo parecia exatamente como antes. No silencioso aglomerado de pessoas em preto e branco, o ajuntamento de freis era visível à lateral do refeitório, então vinham os garotos enfileirados sobre a escadaria do Arcanjo, e no topo o vitral do Arcanjo e a abominação. Então, duas imagens chamou a atenção, destacando-se entre os demais...

Meu Deus. Marlon sentiu um nó na garganta e firmou melhor as vistas que começavam a embaçar.

"Compreende agora?"

A voz questionou, tornando-se mais nítida, e o garoto gaguejou.

— Como... é possível?

Murmurou erguendo os olhos para a figura na janela, e finalmente percebeu que ela havia sumido, e agora, a imagem pálida de um garoto se projetava bem à sua frente, quase acima dele. Seus lábios estavam bastante arroxeados, os cabelos caíam por sobre os olhos, e a escuridão parecia envolvê-lo. Marlon gaguejou sentindo-se sem ar com a visão daquele garoto. Uma angústia inexplicável dominava seu interior, e a única coisa na qual conseguia pensar era em como Dan Mason podia ter ocultado aquilo.

Então a voz tornou a sussurrar enquanto parecia roubar sua vida:

"Elemente Marlon Gayler" —tocou sua alma fazendo-o sentir-se vazio e desesperado — "Ele mente e por isso deve pagar".

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