71. May

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DIA DOS CRIMES

21/02/17 – terça-feira, entre 19h27 às 20h15

E agora?, pensou ela, recordando-se de que havia um plantão policial logo ali ao lado do Carrefour. Abro um B.O. contra Norberto ou fico aqui chorando até não aguentar mais?

Perdida, e ainda sem saber o que fazer, May abriu as imagens das câmeras em seu celular. Ela viu o almoxarifado da editora sem vida (como se fosse uma foto, e não um vídeo) e depois mudou para as imagens da sala de casa para vigiar e saber o que seu marido estava fazendo depois de sua saída.

Norberto falava ao telefone com alguém. O áudio estava baixo, portanto, ela abriu sua bolsa, abriu uma caixinha, retirou dela um pequeno objeto, inseriu no ouvido, conectou ao celular via bluetooth, aumentou o volume no máximo, e conseguiu ouvir com mais precisão.

"— Para você se safar de ir para a cadeia por ter sequestrado a minha esposa, você terá que matar Nicolas... Nem que seja a facadas! Acabe com ele! E tem que ser AGORA!"

De súbito, ela entendeu tudo. De súbito, ela soube de toda a verdade. De súbito, deu-se conta de que havia sido traída de várias formas e por várias pessoas. Por Norberto, por Rodrigo, por Nicolas, e de alguma maneira, por Micael também.

Ao constatar a brutalidade dos fatos, algo de proporções desconhecidas se apossou de todo o seu corpo a partir daquele momento. May não chorou dessa vez. Não derramou mais uma gota de lágrima sequer. Convenceu-se de que não poderia e nem ficaria parada como uma inválida. Os mais religiosos costumavam culpar o demônio por se apoderar da mente das pessoas e colocar pensamentos assassinos em suas cabeças. Porém, May estava mesmo era possuída pelo desejo de vingança. Cada um de vocês vai me pagar! Um por um! Vou destruir cada um de vocês como fizeram comigo! Desgraçados!

Claro que não era o demônio dominando a mente de May, mas aquilo que cresceu dentro dela fez com que ela desconhecesse a si própria. Ela quis fazer vingança com suas próprias mãos. Duvidava que Rodrigo tivesse culhão de atender ao pedido mortal do marido. Rodrigo era um merda. Com certeza não faria o que Norberto estava mandando. Mem mesmo Norberto o faria, por isso estava terceirizando o serviço. Os dois eram uns bostas! Então, sem dar espaço para dúvidas ou esperar que aquele ódio todo se tornasse uma futura compaixão, ela decidiu agir. Mataria Nicolas ela própria. Ninguém poderia tirar aquilo dela. E ainda daria um jeito de ferrar com todos eles. E se fosse para morrer por conta de um ataque cardíaco fulminante provinda de uma crise de pânico incontrolável, que fosse se vingando!

Destruiría Norberto.

Destruiría Rodrigo.

Destruiria Nicolas.

Destruiría Micael.

Micael... Quase que magicamente, as palavras de Micael lhe vieram à mente: "A segurança daqui é péssima, pode acreditar, conheço esse lugar. A câmera na entrada do supermercado fica lá longe, nem pega a gente aqui por causa dessas árvores na frente..."

Sua capacidade criativa, a mesma que dava vazão às ideias para tantos enredos e tramas policiais repletas de jogos lógicos e quebra-cabeças, começou a operar para o mal verdadeiro desta vez, e, num instante, o plano maligno tomou forma na sua cabeça. E em vez de sair correndo para escrever as ideias para não esquecer depois, ela resolveu atuar como uma grande vilã ardilosa.

Arriscou em acreditar no que Micael lhe disse sobre as câmeras e a segurança daquele lugar. Pelo espelho retrovisor ela viu que seu cardigã cinza canelado jazia no banco detrás do carro há meses. Poderia ser uma capa protetora dos respingos de sangue. Teria tanta sorte assim por ser um tiquinho desorganizada? Remexeu na peça e constatou que seu cachecol estava debaixo do cardigã e poderia muito bem lhe servir de "luva".

Pronto. Já sabia o que fazer, afinal, todo mundo tinha uma faca de cortar carnes em casa, até mesmo Nicolas, que mal cozinhava.

Claro que naquele calor, as pessoas que a vissem de sobretudo e cachecol pensariam que ela era uma louca bem-vestida. E por usar óculos escuros em plena luz da lua, teriam a certeza! Era um disfarce fajuto, mas prático. E mesmo que estranhassem, ninguém poderia imaginar ou saber o que ela estava prestes a fazer de verdade. E assim, toda paramentada para matar, saiu do carro com o celular na mão, assistindo e ouvindo tudo em tempo real. Só deu uma pausa para chamar um Uber pelo aplicativo. Saiu do estacionamento pela escada de pedestres, a qual já vira Micael sair. Entrou no carro que estacionou à sua frente. Sentou-se no banco de trás, e quando o motorista perguntou para onde ia, ela confirmou o endereço de onde Nicolas morava.

O carro começou a andar e entrou no grande fluxo do trânsito. Não dizia nada, e o rapaz, de certa forma, havia percebido isso e não puxou papo com ela. Nem mesmo sobre o clima.

Enquanto via tudo pela telinha do celular, ela já ia premeditando todas as suas próximas ações, como uma boa psicopata faria. Afinal, ela sabia muita coisa sobre assassinatos graças às pesquisas criminais que realizara com o objetivo de criar personagens mais cíveis e verossímeis; e graças às leituras de artigos científicos sobre como funcionava a mente de um assassino. Havia aprendido por tabela e ganhado certa habilidade em premeditar um suposto assassinato. Restava agora saber se funcionaria na prática.

May passou todo o percurso se tremendo debaixo daquele cardigã abafado e quente. Quase não desviou os olhos do celular. Quando fez isso por algumas vezes, percebeu que o motorista olhava-a de esguelha, desconfiado, pelo retrovisor. Até sentiu uma vontadezinha de rir, pois, sabia que parecia uma maluca mesmo.

Aproximar-se do seu objetivo maldoso daquela noite a deixava eufórica. E para dizer a verdade, aquele desejo assassino competia com a sua crise. Como se uma lutasse contra a outra e, incompreensivelmente, se anulassem de alguma maneira. Sentia-se embriagada pelas sensações confusas que a acometiam, no entanto, não se sentia fraca ou a ponto de entrar em stand-by ou desmaiar, pelo contrário, parecia que seu corpo finalmente estava mais vivo. Era algo... Inacreditável. Havia arranjado forças desconhecidas que a encorajavam a fazer o que devia ser feito e, com bastante clareza, pensou em tudo.

O plano não permitiria falhas — como todos os planos malignos.

Havia uma lista extensa de extremos cuidados para serem colocados em prática num assassinato, mas não havia tempo. Então, o básico mesmo era não ser vista por gente conhecida. Não criar provas contra si própria. Ser muita rápida, fria e calculista.

Deu-se conta de que não queria que aquele desejo assassínio e de vingança esfriassem.

May, durante toda sua vida, sempre agira com bastante cautela e tomava decisões sempre movida pelas engrenagens da razão, mas desta vez, ela tinha que mudar completamente seu modus operandi, e partir para o improviso. Como isso seria? Ela não fazia ideia. Afinal, as coisas estavam acontecendo em tempo real, quer dizer, nem tudo: algumas aconteciam com um delay de apenas alguns segundos.

Quando voltou ao marco zero, neste caso: dentro do carro estacionado no supermercado Carrefour, ela pôde pensar no absurdo que acabou de fazer. E o pior: havia sido bom, libertador! Afinal, sentiu que a vingança era mesmo viciante, mas claro, seu corpo todo pagava por esse prazer inconsequente; seus músculos doíam de tão tensos. Custou a se recuperar da adrenalina. Seus pensamentos estavam mais embolados que seu cardigã e seu cachecol no banco detrás do carro.

Sabia que nas próximas horas não poderia desgrudar de seu maravilhoso cúmplice: seu smartphone. E continuaria improvisando para que seu plano desse certo. Não sossegaria até que as pessoas que destruíram sua vida pagassem por cada mágoa que ela estava sentindo agora.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora