55. May

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1 DIA DEPOIS DOS CRIMES

22/02/17 – quarta-feira, 01h50

May conseguiu quebrar a barreira dos policiais e saiu em disparada à editora. Entrou jogando tudo para o lado, qualquer coisa significava um obstáculo no seu caminho. Desequilibrou-se porque corria feito louca. Rodrigo a perseguia, repreendendo-a aos gritos. Os ouvidos dela ignoravam.

Corria até Norberto para ter a certeza se ele estava de fato morto. Subiu ao escritório, chorando. Desceu, chegou no almoxarifado. Um policial tomou sua frente e ela se desvencilhou como uma lutadora numa cena de batalha; venceu o policial e se jogou sobre o corpo de Norberto. Os policiais tentaram impedi-la; em vão. Sem se importar com as consequências ela puxou o revólver da mão dele, engatilhou sem dificuldade, como ele havia lhe ensinado um dia e, mesmo com o cano da arma babado pelo sangue do marido, ela enfiou na própria boca e ameaçou atirar. Estragou toda a cena e as evidências do crime.

Os policiais permaneceram estáticos. Alguns com as mãos no coldre, prestes a despontar o revólver, enquanto outros desciam os degraus da escada do almoxarifado com a maior cautela do mundo, como se cada degrau fosse feito de casca de ovo. As expressões dos policiais: "Não se atreva a fazer essa estupidez". Também pediam "calma" com gestos das mãos. Contudo, eram clamores inúteis. Para ela só restava uma opção: disparar a arma e acabar com tudo.

E o fez. POW!

*****

Acordou suada. Atordoada. Estava numa cama de hospital.

Sua vida havia virado uma daquelas cenas de extremo silêncio e calmaria depois de um evento estrondoso com o objetivo de acalmar o leitor.

May se sentia um clichê. Onde estou? O que aconteceu comigo?

"Planeta Terra chamado", disse as cortinas de plástico em tom pastel envolta dela, cercando seu leito. Se antes, ela estivesse numa cena de tiroteio, esta seria a parte em que algum enfermeiro estaria arrancando uma bala de seu ombro dolorido, ou um especialista em retirar projéteis utilizando uísque e algum ferro em chamas para cauterizar.

Foi só um sonho... Um pesadelo.

Até que não demorou muito para que recuperasse seus sentidos, afinal, ela não estivera numa perseguição.

Foi se lembrando aos poucos do que havia acontecido: A ligação de Rodrigo. A chegada brusca até a editora. Os policiais. Morte... Suicídio... Norberto!

Sentiu a boca seca.

Se deu conta de que havia um cateter enfiado em seu braço esquerdo. O conhecido frasquinho de soro com medicamento já estava murcho e quase vazio.

A vontade era de que nada daquilo estivesse acontecendo.

Ela sabia que seu marido não havia cometido suicídio.

Uma enfermeira negra e gorda apareceu, estava dentro de um uniforme verde-sem-graça, combinando com as cortinas "decorativas", com a cara de plantão 12x36 horas, e perguntou se ela estava bem.

— Acabei de perder tudo. — A voz de May saiu sem força.

— 'Tô sabeno. Sinto muito. Vou tirar.

— Ahm?

— O seu medicamento. Já acabou. Vou tirar.

E depois que você tirar isso de mim, o que vai ser da minha vida sem o meu marido?

May sentiu um misto de raiva e de arrependimento ao se lembrar do marido. Entretanto, de nada adiantava agora. O caos já havia sido instalado. Tudo já havia passado.

— Fiz compressa no seu olho, 'tá melhorzinho agora.

Ela deveria agradecer?

Ela verificou a quantidade de chamadas em seu celular e de mensagens em suas redes sociais. Percebeu que, talvez pelo horário, sua mãe ainda não soubera da desgraça, pois ela estaria ali, plantada a seu lado e segurando sua mão se o soubesse, e agradeceu em silêncio por isso. Ignorou todas as mensagens, até as ofertas de companhia e quaisquer tipos de ajuda.

Recebeu alta do hospital quando o dia já estava surgindo nas janelas. E, antes que sua mãe batesse no hospital desesperada, ela resolveu pedir um Uber e voltar para seu lar.

E o que resolveu fazer quando chegou em casa aos frangalhos? Sofrer mais ainda. Abriu o Notebook e clicou no vídeo que havia feito download; o que mostrava o almoxarifado. Neste momento ela entrou numa dimensão diferente.

Repassou o vídeo várias vezes. Viu a luta corporal entre Norberto e Cris; viu Laura quebrando a cabeça de Norberto com uma pancada violenta; viu Cris e ela indo embora desesperados; visualizou a chegada de Rodrigo e seu desaparecimento no armário do depósito; depois viu a chegada repentina da dupla anterior; arregalou os olhos todas as vezes em que viu o tiro sendo dado dentro da boca do marido; e seu chora sempre engrossava quando via Rodrigo finalizando a cena antes de acionar a polícia e de ligar para ela.

Sua angústia sincronizou-se com o replay do vídeo. Vocês serão responsabilizados por matarem meu marido! O turbilhão de pensamentos a deixou doida. Pensou em várias e várias hipóteses sobre o que fazer em seguida. Dopada das substâncias fortes dos remédios, adormeceu na frente do MacBook.

Quando acordou, assustada, babando, de um novo pesadelo, ela foi sofregamente até o banheiro para tomar um banho e tirar toda a maldição de sua pele. O vapor ajudou a refletir.

A polícia poderia colocar os melhores inspetores para investigar o suposto suicídio, mas ela, apenas ela, sabia de TODA a verdade. Ela sabia que não fora suicídio. Ela sabia que tudo foi armado e planejado. Ela sabia que Rodrigo fora o mandante de seu sequestro. Seu próprio marido sabia disso e havia usado isso a seu favor. Ela tinha provas sobre Norberto ter mandado Rodrigo matar Nicolas. E ela sabia que Rodrigo tinha ido fazer isso para pagar a dívida dele...

Tontura; sensação claustrofóbica; mal-estar... Concluiu que sempre estivera rodeada de traições de vários tipos, na verdade, dos piores tipos: os tipos mais comuns. Sentiu-se uma completa vítima de sua própria história.

Norberto não era e nunca foi um herói ou santo. Nem Rodrigo. Nem Nicolas. Muito menos Micael que tinha começado aquilo tudo.

Os únicos inocentes eram Laura e Cris. E isso estava deixando May atordoada. Entregava de vez o vídeo para a polícia ou não? Valeria a pena preservar Laura e Cris? Seu maior desejo naquele momento era o de acabar com a vida de Rodrigo, mas se entregasse o vídeo, ferraria com os únicos inocentes também. Entretanto, pensando melhor, seria questão de tempo para a polícia chegar até eles. É claro que, se Rodrigo fosse interrogado pela polícia, ele os deduraria. Afinal, Rodrigo presenciara toda a cena. Seria uma consequência.

É melhor acabar logo com isso de uma vez!

Entregaria o vídeo.

A quem queria enganar? Nada estava decidido ainda em sua cabeça.

May tinha noção de que responderia um processo na justiça se fizesse uso do vídeo, pois, até onde sabia, era ilegal filmar pessoas no ambiente de trabalho sem que os funcionários soubessem da existência da câmera. Isso acarretaria algum prejuízo legal para a empresa. Torceu para que a polícia não encontrasse a câmera. Daria um jeito de tirá-la de lá o mais rápido possível quando o local fosse liberado.

Refletiu mais uma vez sobre Laura e Cris.

Não posso entregá-los de bandeja para a polícia e aliviar o fardo de Rodrigo, como se pudessem ser colocados na mesma balança de culpa. Se for para os dois serem presos, que sejam por meio dos outros. Eu não farei isso com eles.

Então, por fim, decidiu por omitir a prova cabal.

Contudo, mesmo que não pudesse fazer uso do vídeo do almoxarifado, tentaria dar um jeito de acabar com a vida de Rodrigo. E claro, poderia fazer isso, afinal, possuía o outro vídeo que capturou a conversa de seu marido com ele. E este ela podia usar como prova, pois, a câmera estava instalada em sua casa, num ambiente particular.

Conseguiu dar um sorriso antes de a crise de pânico a acometer em pleno banho. Foi ao chão, escorreu como a água morna. Esvaiu-se pelo ralo.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora