21. May

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6 MESES ANTES DOS CRIMES

As ordens haviam sido claras.

Levanta. Mãos pra cima. Não mexa em nada. Deixe o celular na mesa. Dê a volta na mesa. Ande devagar. Espere de costas aí mesmo na porta. Esperar pelo quê? Um tiro nas costas?

O homem resgatou o celular dela.

Cadê você, Norberto?

Como se o malfeitor tivesse lido o pensamento de May, respondeu:

— Seu maridinho mandou mensagem.

Depois do risinho nojento vieram mais ordens com a voz ativa e mandona.

May simplesmente obedeceu.

Como é que isso vai terminar?

Ela foi andando vagarosamente até a saída do escritório, sabendo ser o alvo da arma. Podia até jurar que o cano encostava em suas costas. Ousou olhar para o lado.

— Para frente! Não tente nada estúpido, senão explodo sua cabeça agora mesmo.

Não parecia brincadeira.

Estava vivendo na pele o que já fez com suas personagens. May desejava ser tão astuta quanto as heroínas que criou. Porém, na ficção as coisas aconteciam diferentes.

Desceu as escadas sem movimentos bruscos. Sentiu suas pernas fraquejarem em alguns degraus.

Estava em desvantagem. Seu algoz às suas costas, as luzes da recepção e do estacionamento: apagadas. Ruas vazias, sem movimento, sem ninguém para ajudá-la.

Por um instante ela esperou o estranho mandar entrar no seu próprio carro (como acontecia geralmente em seus romances), contudo, ela não dirigiria sob a mira de uma arma, o que ele a mandou fazer saiu do roteiro:

— Abaixe as mãos, aja naturalmente. Nem tente gritar nem correr. Poderemos até sermos pegos e presos, mas quem morre no final das contas é você.

"Poderemos", ela pensou. Então não é só ele. Ele não está agindo sozinho.

O medo era quem dava vida e movimentos aos seus membros. Ela baixou os braços, como uma garotinha obediente e caminhou para fora.

— Não olhe para trás. Vai andando. Isso. Agora entra no carro.

Entra no carro...

Só podia ser a "caranga velha" estacionada na calçada.

A porta do passageiro abriu, como se fosse automática. O banco do carona já estava reclinado liberando passagem para os bancos detrás. Rua desértica. Ninguém passando para que ela pedisse socorro.

Como estava em choque, nem reparou uma possibilidade de fuga. Se olhasse com atenção o reflexo do vidro empoeirado, perceberia que o malfeitor não estava apontando a arma para ela a fim de não parecer suspeito. Nem ao menos teve a inteligência de olhar a placa do carro como faria sua heroína literária. Sua burra!

O interior do carro cheirava a mofo e o assoalho estava sujo de terra.

O segundo homem, ao volante, ficou com a arma apontada para ela enquanto o primeiro amarrava suas mãos usando cordas finas. Sua pele branca ficou irritada e com marcas vermelhas por causa dos nós. Virou o rosto ao perceber que teria seus olhos vendados com uma tira de tecido preto. Levou um tabefe bem dado na cara como punição. Sentiu, na hora, o ardor se alastrar pela bochecha. Assustada e dada por vencida, deixou o homem terminar a tarefa.

Para sua surpresa não vedaram sua boca.

Imóvel, rezava para que alguma câmera de segurança estivesse vendo aquilo.

Sem enxergar nada, sentiu algo duro na sua têmpora. Só poderia ser o cano do revólver. E junto com o toque frio da arma, veio a ordem:

— Vai deitando, devagar.

Definitivamente as situações reais em nada se pareciam com os romances. Toda a audácia, sagacidade, esperteza e agilidade dos personagens fictícios era pura imaginação mesmo. Constatou aquilo da forma mais real e perigosa possível. Literalmente, sentiu na pele.

Se ajeitou como pôde no banco imundo. Era um enorme feto, indefeso. Ouviu o ronco sofrido do motor de arranque. O carro não pegou. Na segunda partida, mesmo engasgando, o motor deu sinal de vida. A lataria trepidou, avisando que estavam prontos para um passeio alucinante. Sentiu o carro ganhar movimento.

Aos poucos May detectou o cheiro de poeira subir. Aonde estão me levando? O que vão fazer comigo? Ela saberia mais tarde.

Ouviu, mesmo que abafado, o som característico do seu smartphone. Uma nova mensagem. Risadas. Norberto! Será que ele já notou a minha falta?

Queria gritar por socorro, já que estava com a boca livre, sem a típica fita prateada dos filmes policiais, porém, nesse momento, algum dos dois ligou o rádio para ouvir algum rock pesado. Essa lata velha tem "som"?

Ela desconhecia a banda responsável pela trilha sonora do seu sequestro. O que chegava aos seus ouvidos eram os gritos de um vocalista possuído pelo demônio, algazarra de tambores e pratos de bateria, guitarras fervendo e baixos grunhindo repetições cansativas. Aumentaram este som infernal para eu não gritar o para eu não ouvir direito a conversa?

As batidas ritmadas que chegavam aos seus ouvidos causavam dor de cabeça. Piorou quando o solo de guitarra entrou.

Seu corpo inerte, deitado, detectava algumas ações: aceleração, frenagem, curva à esquerda, à direita, inclinação, declinação, etc. Amaldiçoou-se por não possuir a sagacidade de sua personagem. Sentiu-se a pessoa mais burra do mundo, pois sua heroína havia sido salva justamente por ter decorado todos os movimentos do automóvel. Cada parada. Cada curva. Cada possível semáforo fechado. Tinha tido noção do tempo que passara cativa dentro do porta-malas, com todos os sentidos aguçados... e ela, May, não havia prestado atenção em nada.

Sentiu o sacolejar do automóvel quando entraram no que parecia ser uma rua de pedregulhos. Uma estrada, talvez. Depois de mais uma virada brusca a caranga derrapou. Onde diabos estamos?

May nem sabia que ainda haviam ruas de terra em Sorocaba.

Ela, escritora reconhecida de romances policiais — dona de uma mente inteligente e expert em criar situações sufocantes, clímax incríveis, situações de extremo perigo; personagens fortes, perspicazes, astutos, bravos, heróicos, atuando em tramas super complexas; ao mesmo tempo em que passavam por conflitos internos e desafios nada fáceis — estava ali, deploravelmente deitada num banco de uma lata-velha precisando de alguém para salvá-la. Escritora de merda!!!

Bom, se saísse dali viva, poderia colocar em prática mais da "verossimilhança" tão cobrada nos cursinhos de escrita criativa. Deplorável...

Logo após ouvir a terceira mensagem vinda do seu celular, sentiu seu corpo ser jogado para frente ao som do "arranhar" do freio-de-mão. O carro parou com violência. Foi içada por uma mão bruta do assoalho poeirento. Seus seios foram esmagados pela garra indelicada. Nojo, asco. Queria cuspir na cara do desgraçado. Chegamos ao cativeiro. A venda ficou úmida de lágrimas.

A sensação era a de estar nas páginas finais, no clímax, de um romance policial. Os que ela havia escrito, acabavam bem, mas e agora, diante do perigo real, como é que acabaria?

Então, como se o cenário do drama tivesse mudado abruptamente, ela assumiu o papel de donzela em perigo, e clamou em pensamento: Venha me salvar, meu amor!

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora