Havia mesmo algo a mais para ser dito nessa circunstância?

O que deveriam dizer, afinal, a fim de consertar aquela desgraça? Tinha conserto?

May sentiu o lado direito do rosto magro formigar.

A dor apareceu; foi aumentando. A humilhação também aumentou; doía mais que o olho ferido. No entanto, o ódio ajudou a anestesiar tanto a dor quanto a humilhação.

Norberto era uma rocha.

Ela recuou, devagar.

Um passo. Dois passos. Parou.

May juntou ar nos pulmões e gritou, com todas as suas forças, mesmo que suas cordas vocais pagassem por isso depois:

- MOOONSTROOO!!!

Os sons ao redor foram voltando aos poucos, como se a bolha que os protegiam naquela sala elegante tivesse sido furada. Mais choro. Mais gritos. As lamentações voltaram também, e Norberto...

Bom, Norberto nem para abraçá-la fingindo estar arrependido do que acabara de fazer... Ainda teve a pachorra de permanecer duro, estático, assistindo sua mulher descabelada dar vida a uma personagem histérica a plateia alguma.

O olho dela inchou, como que para reforçar tamanha covardia do homem que por anos ela chamou de "Meu amor". Nem ao menos foi um tapa. Foi um soco! Norberto havia sido capaz de fechar o punho e dar um soco na cara de May para fazê-la engolir a última frase. Não que um tapa deixasse de ser agressão física ou fosse menos pior, mas... Ele já queria me bater antes, ele já queria explodir comigo! O soco, refletiu ela, foi a libertação dele. Como se o punho levantado fosse uma camuflagem do grito: "Sou gay, e daí?!"

Sentindo-se mais fora de si que nunca, completamente desestruturada e sem saber o que faria em seguida, ela berrou:

- Por que não me deixou morrer naquele dia? Você me salvou para isso? Para acabar comigo dessa forma? Por quê?! - Ele só balançava a cabeça, negando. - Vá embora! Suma daqui, covarde! - Uma mão apontava para a porta (como se ele desconhecesse a saída) e a outra ainda segurava o lado direito do rosto.

Ela gritou mais umas três vezes a dupla de comandos com o mesmo sentido.

Norberto passou as mãos pelos cabelos várias vezes. Lágrimas retardatárias caíram dos seus olhos verdes avermelhados. Tarde demais para arrependimentos! Você já vem errando comigo faz tempo... Ela viu Norberto desabar no sofá. May tentou adivinhar os próximos movimentos dele. Aparentemente ele não deu bola aos brados de "Vá embora; suma daqui!" Indignada, May perguntou já com a voz rouca de tanto gritar:

- Você não vai embora?!

E ele, passivo:

- Não.

Ela esperava, no mínimo, um: "Me perdoa, querida. Eu não queria fazer isso. Saí do controle". Mas o "Não" dele a pegou de surpresa. O novo Norberto gostava de surpreender.

Ela parecia... estarrecida, perdida e louca: um belo trio de adjetivos para descrevê-la.

Norberto permaneceu jogado no sofá sustentando a expressão preocupada. A típica veia vertical saltou na testa.

Em seu íntimo, May sabia que a preocupação dele não tinha nada a ver com ela, e isso a enervou mais ainda. Será que ele está pensando em algum lugar para fugir? Seus pensamentos pareciam espiralados. Ela não sabia se deveria chamar a polícia e meter uma Lei Maria da Penha nele, ou se corria para o quarto chorar as pitangas com o olho ficando roxo a cada minuto que se estendia.

Segundo novelas e filmes assistidos por ela e que eram baseados em brigas familiares: o homem, mesmo desprovido de arrependimento, era quem dava as costas e saía pela porta. Porta esta que, como dizia o ditado: era a serventia da casa.

Indignada, tomou as rédeas da situação. Já que o homem não tinha sido macho o suficiente para dar o fora, restou a ela a atitude que cabia na cena. Bufando feito uma fera - ou "como uma doida varrida" (também serviria) -, ela pegou a bolsa que estava estatelada na poltrona e, perguntando-se se aquilo estava acontecendo mesmo, rumou até a maldita porta.

Já era hora de Norberto se levantar e fazer alguma coisa. De pé, ele se aproximou dela, com dois passos largos, e segurou o braço dela no maior estilo clichê do cinema: "Não se vá, darling". Ela virou-se para ouvir as súplicas de perdão dele. Mas ele não falou nada disso.

- COVARDE! Me solte! - Soltando fogo pelas ventas e com os olhos vidrados, ela ameaçou: - Jamais encoste a mão em mim, seu nojento, senão eu o denuncio para a polícia. Frouxo!

O recado foi dado. May bateu a porta com a maior violência que conseguiu, fazendo o som ecoar pelo corredor daquele pavimento. Diferente das brigas de casais pobres nas periferias: nenhum Zé-povinho apareceu nas portas a fim de chafurdar a vida alheia; o que foi bom.

O elevador desceu pesado; abarrotado pelo desejo diabólico da única ocupante. Você vai me pagar por isso, filhodaputa! Nem que eu precise fazer com as minhas próprias mãos!

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Where stories live. Discover now