XXV - Reconstrução da mente fragmentada

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"Cedo ou tarde todo jogo deve declarar seu vencedor. Após anos de solidão e sofrimento finalmente sinto que sou a vitoriosa deste jogo".

     Esse abraço… Tão caloroso entre as duas que até consigo sentir. As lágrimas escorrem do meu rosto e não desejo contê-las no momento. Há tanto não sentia estes sentimentos aflorarem pelo meu ser e me darem força para continuar de pé. Consigo notar que uma luz fraca se põe a crescer acima de nós, então, ao olhar para o céu, percebo que as nuvens acinzentadas que nos assombravam agora começam a se dissipar, deixando o sol penetrar nas ranhuras que se abrem pelo tecido delas até não restar nuvem alguma, dando lugar a um lindo céu azul iluminado pelo mais radiante sol que já vi.

     A luz do sol me permite agora ver com clareza a grama que agora adquire gradativamente uma pigmentação mais forte e esverdeada enquanto cresce novamente e dá ao jardim do castelo uma nova aparência, bem mais bonita e saudável. As paredes que antes compunham o complexo labirinto pelo qual passava aos poucos vão murchando e dão lugar a inúmeras flores dos mais diversos tamanhos e cores para enfeitar o campo pelo qual nos colocamos a andar em direção ao castelo novamente. O calor que nos acolhe durante a caminhada é incomparável, principalmente dando contraste com o frio que aquele clima noturno e gélido nos fazia sentir. Embora meus sentimentos não estivessem despertos durante aquele tempo inteiro, os arrepios dos calafrios que senti ainda permanecem presentes.

     Ao nos aproximarmos do castelo novamente paramos por um tempo do lado de fora para observar sua estrutura que agora apresentava paredes limpas e vitrais que refletiam a nova luz solar, produzindo feixes de inúmeras cores diferentes. Marianne, que segurava a mão da pequena Amália, depois de alguns instantes no diz:

— Vocês se sentem tão felizes como eu me sinto?
— Certamente. — Respondo, enquanto a garota apenas assente. — Mas ainda há algo faltando…
— Sim… Eu temo que de fato há, minha querida. Qual decisão vai tomar desta vez?
— Eu ainda não sei. E também não sei se chegarei a uma conclusão. Portanto, vamos entrar um pouco. Aposto que agora o interior deve estar bem mais confortável.

     Assim o fazemos, passando pela porta que nos dera acesso ao jardim e novamente estamos dentro do castelo. Desta vez sinto uma sensação diferente. Das outras vezes que cheguei aqui, tudo sempre parecia um sonho. Sentia-me desprendida da realidade. Em alguns momentos não parecia sequer ser visível. Mas agora tudo é muito mais físico. Tátil. Vivo. Meus olhos passaram a enxergar tudo nitidamente e sinto como se conseguisse voltar para cá facilmente quantas vezes eu quisesse. A sensação de conforto é inevitável, claramente.

— O que faremos agora, Amália? — Questiona a baronesa sentada em uma poltrona da sala de estar que se encontra arrumada como nunca havia visto.
— Preciso recuperar a outra parte do quebra-cabeça. A peça de onde tudo isso se originou.
— Está certa de que isto é de fato necessário? Sei que está pronta, mas… Durante anos não conseguimos inverter este jogo.
— Cedo ou tarde todo jogo deve declarar seu vencedor. Após anos de solidão e sofrimento finalmente sinto que sou a vitoriosa deste jogo.
— Eu também posso sentir, minha cara. Você precisa de nossa ajuda?
— Não. — Respondo enquanto me levanto da poltrona oposta à que Marianne se repousa. — Vocês duas já fazem parte de mim novamente. Apenas quero que me acompanhem até lá.
— Você possui um plano? — Pergunta-me ainda sentada enquanto caminho até a janela para observar o lindo tempo que faz no exterior do castelo.
— Não. Mas estou confiante que posso fazer isso.
— Então não temos tempo a perder. — Responde se levantando também da poltrona. — Conduza-nos, Amália.

     Saímos pela porta da frente e nos deparamos com o velho vilarejo que agora possuí casas bem mais apresentáveis, com fachadas construídas em madeira clara e forte e que traziam janelas e vitrais transparentes e rígidos. O odor azedo do lugar agora dá lugar a um cheiro fresco proveniente da vegetação que agora cresceu por entre as moradas, tudo com cores bem mais saturadas do que nunca antes havia visto.

     Caminho pela trilha destacada enquanto Marianne, ainda segurando minha mais minúscula versão, segue o meu trajeto. A trilha se perde em meio à floresta, mas ainda consigo me guiar por entre as árvores. Ele está por perto e eu posso sentir isso. Conforme andamos, o ambiente se escurece aos poucos e uma névoa se forma e se torna mais densa a cada passo até que finalmente chegamos ao ponto de origem da mesma.

— Amália… Está certa de que não precisa de ajuda? Nunca o vi tão imerso em escuridão.
— Sim. Estou. Eu também já me tornei a própria escuridão. Estamos em pleno pé de igualdade.

     Ela assente com a cabeça e encaro a cena por alguns instantes. O que vemos à nossa frente é a casa de Maudlin destruída, com vidros quebrados e diversas marcas de impacto e queimaduras pelas paredes. Em frente dela, o proprietário se encontra em pé a observando, portanto aquela mesma espada prateada que ironicamente utilizou para causar uma destruição ainda maior para todas nós. O ambiente em volta dispõe de uma grama queimada que se assemelha a fuligem e uma neblina esbranquiçada dificulta a visão e torna o local ainda mais escuro e assustador, impedindo o sol de penetrar com facilidade pelas árvores acima de nós e iluminar o ambiente.

     Decido caminhar até atingir uma distância de alguns metros do rapaz. Seu corpo demonstra alguns movimentos involuntários parecidos com espasmos como se estivesse em pleno delírio.

— Maudlin. Consciência. Como queira ser chamado. — Falo em voz alta para tentar chamar sua atenção e anunciar minha chegada. — Acabou. Não há mais o que possa fazer. Não há mais ninguém que possa machucar.

— Estive esperando pelo seu retorno, Amália. — Sua voz é rouca, mas ainda forte e grave o bastante para amedrontar qualquer um que esteja mais vulnerável.

— Sim. Eu imagino que tenha aguardado todos estes anos para que eu voltasse. Você veio até mim e me obrigou a voltar para cá. Mas nada foi como havia planejado. Você não contava com tudo isto.

— Devo admitir... — Responde ainda de costas para mim. — Eu não achei que fosse capaz de tamanha façanha, pequena Amália. Você de certo evoluiu muito.

— Exatamente. Tudo o que sofri e aprendi desde a primeira vez que estive aqui se voltou contra você. — Começo a caminhar lentamente em sua direção. — Não precisamos terminar de uma forma ruim. Nós podemos contornar isso.

— Tudo o que fiz… Todos estes anos… Tudo foi em vão. Você conseguiu destruir tudo o que nós tínhamos.

— Não foi em vão. — Retruco enquanto lentamente me aproximo. — Apesar de tudo, você fez de mim forte para muitos impactos que sofri. Muitas vezes eu estaria completamente perdida se tivesse sentimentos.

— Se não foi em vão, por que voltarmos atrás agora? Por que não continuar munida apenas de sua razão. Nada mais lhe aflige. A falta dos sentimentos faz tudo se tornar leve. Sem importância. Sem ameaça. Você se torna completamente blindada a qualquer ataque que possa sofrer.

— Eu sei… Mas tem coisas que merecem ter importância nessa vida. Por muito achei que não precisaria de sentimentos para apreciar experiências, mas quando notei que estava enganada, já era tarde. Diversas experiências que não senti absolutamente nada e que agora não serão mais a primeira ou a segunda vez. Todas serão comuns. Mas o sentimento as renovará. Tenho certeza disso. — Paro meu andar assim que chego a poucos centímetros de Maudlin. — Isto pode soar patético, mas todos nós precisamos de sentimentos. Você pode se unir aos meus e seremos um novamente.

— Tem razão, garota. — Responde após alguns segundos seguido de um riso decochado. — Isso é extremamente patético.

     Enquanto finaliza sua frase, seu corpo se vira para minha direção em um movimento extremamente rápido e impala a lâmina prateada na região do meu abdômen. A mesma que antes havia acertado. Sinto o fio gélido da espada atravessar meu corpo e escapulir pelas minhas costas e apenas consigo ouvir Marianne e a primeira Amália gritarem desesperadamente meu nome. A névoa se torna mais densa, cobrindo minha visão das duas e consigo ter visão apenas do desgraçado logo à minha frente.

— Como já era esperado, mais uma cópia que sucumbe como as outras.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now