XXII - Crueldade libertadora

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Trato de rapidamente me retirar da casa de madeira para prosseguir para a próxima logo à frente. Mesmo não possuindo mais sentimento algum, esta casa com a qual me deparo me causa repugnância. Eu consigo enxergar a mim mesma representada nesta casa. As madeiras completamente quebradas, apodrecidas e empoeiradas. O jardim, o qual, normalmente, é uma porta de entrada agradável e convidativa, se dispõe de flores mortas e pisoteadas. E mesmo que as madeiras e vidraças estejam rachadas e estilhaçadas, a luz externa não consegue penetrar nas pequenas aberturas. A escuridão interna é tamanha que já não se tem como iluminar de fora.
Adentro a casa, passando pelos corredores escuros até que, em meio aos rangidos das madeiras onde piso e ao cheiro de poeira, consigo ouvir uma voz feminina falando. Percorro meu caminho seguindo o som da voz suave que me comanda por estes corredores até que me aproximo de uma porta entreaberta. Observo a fechadura e a mesma apresenta seus mecanismos completamente quebrados, portanto posso julgar que esta é a porta pela qual forcei minha entrada e que neste momento encontrarei a garota que havia ouvido agora há pouco e também há anos atrás.
Abro o restante da porta e consigo notar uma nova réplica andando de um lado para o outro como se divagasse nervosamente sobre alguma coisa. Seus passos são rápidos, seu olhar é preocupado e ela esfrega constantemente as mãos, simbolizando também uma ansiedade tremenda. Aproximo-me lentamente para que ela não me perceba como ameaça e consigo ouví-la repetindo a si mesma:

- Não há escapatória. Estamos presas. Não conseguimos acordar. Este pesadelo irá nos devorar.
- Do que está falando? - Questiono enquanto decido me aproximar lentamente. - Não estamos presas. Podemos resolver isto.
- Presas. Não há escapatória. Não... Não... Não... Não... Não... - Repete ininterrupitamente cada vez mais baixo
- Acalme-se, podemos solucionar tudo isso juntas.
- Não temos ninguém para contar. Estamos sozinhas e a escuridão se aproxima.
- Creio que você também já não possa mais ser salva... Eu sinto muito, minha querida...
- Morreremos uma a uma. Nunca iremos acordar.

Decido conduzí-la até um canto da sala para que se sente, se conforte e não sinta minha ausência ao sair. Quando já me viro para me retirar, ouço-a dizer:

- Tirem-me deste pesadelo. Ponham-me para dormir. Não quero ser mais uma delas.

Desta vez eu entendi claramente. O interior da réplica implora por sua própria destruição. Ela prefere perecer a continuar sucumbindo à loucura. Porém, aparentemente, ela não o pode fazer sozinha. Não tenho certeza se devo ajudá-la visto que é a única coisa que posso fazer por ela.

- Essa dor... Arde como fogo... Borbulha por dentro...

Volto a me aproximar dela e continuo a observar sua feição amedrontada com lágrimas em seu rosto. Tento direcionar seu olhar ao meu para que possa lhe reconfortar.

- Sem vocês eu jamais teria chance de prosseguir. Prometo que irá acabar logo.

Posiciono minhas mãos em volta de seu pescoço magro e começo a apertá-lo aumentando a força gradativamente. Ela se debate e tenta evitar, mas continuo a pressionar ainda mais forte.

- Está frio! Está frio! - Tenta repetir sem voz enquanto a sufoco.

Após alguns segundos, seu corpo se enfraquece e perde todas as forças sem respiração alguma. Fecho seus olhos lentamente e me levanto para finalmente me retirar.

- Não se preocupe. Desta vez eu não falharei ao salvar vocês. Salvarei todas nós.

Saio rapidamente do quarto e encosto a porta com seus mecanismos arrebentados para poder prosseguir. A adrenalina ainda percorre pelo meu corpo e minhas mãos tremem devido à força que fiz e também ao ar melancólico pelo qual estive junto àquela pobre réplica. Sem escolhas, decido continuar andando pelo escuro corredor da casa destruída. Guio-me por um fio de luz que consigo ver por entre as frestas do labirinto que se torna este lugar. Ao chegar na origem da luz, me deparo novamente com aquela cópia do meu quarto perfeitamente arrumado da forma que cheguei aqui pela primeira vez. Tudo exatamente organizado como eu normalmente deixaria, exceto pelas pilhas de livros acima da penteadeira logo à frente da cadeira de madeira. Aproximo-me da mesma e posiciono meus dedos sobre seu encosto. Não sei dizer se é devido a eu já ter ciência desses jogos, mas eu quase consigo sentir uma leve corrente elétrica emanando da madeira, fazendo meus dedos formigarem com pequenos choques, o que seria impossível em condições normais. Sinto alguns tremores e uma raiva interna inusitada que me fazem atirar a cadeira ao chão.
Pisco meus olhos rapidamente durante o ato e percebo ter sido transportada novamente para a cena do xadrez amaldiçoado. A cadeira que derrubei dava lugar ao desgraçado que me eletrocutava a cada erro que cometia. Agora que estou no lugar dele, posso ver a minha réplica do passado desacordada. Não sei dizer se está apenas desmaiada ou se teve um destino ainda pior. Na escuridão do outro lado da mesa, consigo notar uma mão feminina apoiada na madeira à sua frente. Decido acender a luz logo acima delas para que me revele finalmente quem jogou comigo por este tempo todo. Ao fazê-lo, não sinto muita surpresa ao perceber apenas mais outra versão de mim vestida com um olhar assustado e suor em seu rosto. A garota possui diversos ferimentos por toda a extensão do seu corpo, principalmente em seus braços e pescoço, e se encontra atada a uma cadeira elétrica como já tive o desprazer de estar. Ela suplica para que eu não a machuque e tento rapidamente reconfortá-la.

- Acalme-se e conte-me sua história. Não lhe farei mal algum.

Ela suspira com um grande alívio. Parece ainda estar um tanto sã, então preciso coletar o máximo de informações para prosseguir.

- Não podemos detê-lo. É impossível.
- Não diga coisas sem sentido. Se me ajudar, eu libertarei a todas nós. Diga-me o que devo fazer para continuar.
- Não... Eu não posso. Ele já me maltratou o suficiente. Não faça isso. Eu lhe suplico.

Percebo que, além da alavanca que alí havia para me dar descargar elétricas, também há uma nova alavanca do lado da garota. Eu creio que não terei saída, mas prefiro confirmar.

- Esta alavanca é a saída... Não é?
- Não! - Seus olhos choram e me olham assustados. - Não é! Não há escapatória deste lugar. Por favor, não a puxe. Eu já sofri demais.
- Eu prometo que farei valer, parceira. Peço perdão por ser necessário fazer isso. Todas estarão libertas em breve.
- Não! Por favor, não. Eu quero viver!
- Perdoe-me. - Digo-lhe enquanto puxo a alavanca por toda sua extensão e descarregando uma carga de extrema intensidade na pobre cópia.

Ela se debate rapidamente na cadeira por alguns segundos até que finalmente se acalma em um sono eterno e profundo. Para finalizar, seguro a parte de baixo da mesa onde o xadrez se localiza e a arremesso para cima no intuito de virá-la e destruir esta cena. O jogo foi finalizado. Não há mais o que se fazer.
Após fazê-lo, em um piscar de olhos, retorno ao quarto onde estava. Os livros que estavam na penteadeira e a cadeira à sua frente desapareceram. Isto foi claramente uma alusão à forma que eu cobrava e punia a mim mesma na época de escola. Estudava por muito mais do que suportava e se isto não fosse o suficiente para ter um desempenho perfeito, eu me punia ferindo meu corpo de diversas formas. Agora começo a entender o quanto que este lugar, de certa forma macabra, representa todos os pontos da minha trajetória. Eu sempre fui mesmo uma criança mais racional desde quando me lembro, mas nunca é tarde para alterar o destino. É para isso que voltei aqui. Uma última vez...

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now