XXI - Convergência

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     Caminhando novamente pela floresta silenciosa onde ouço apenas os meus passos apressados, logo me aproximo do primeiro espelho que vira quando cheguei. O enorme espelho se encontra encostado em uma árvore como da outra vez que o vi, contudo percebo algumas perturbações na parte de trás da mesma. Contorno o tronco e me espanto ao perceber uma das réplicas sentada abraçada aos seus joelhos balbuciando coisas sem sentido.

— Olá!? Consegue me ouvir?

     Tento de diversas formas chamar sua atenção, mas ela está completamente catatônica e fora de si. Esta deve ser a que Maudlin mencionou que havia se perdido e enlouquecido por tanto perambular por estas florestas. É curioso como o espelho estava próximo dela e ela não o tenha encontrado.
     Falando no mesmo, me levanto já sem esperança de conseguir algo com esta garota e me volto a atenção ao espelho novamente. Posiciono determinada minha mão no vidro reluzente e fecho meus olhos para me transportar para a minha próxima visão.
     Após a energia se escoar pelo meu corpo, sou transportada novamente para o colégio. A sala está completamente vazia e a porta entreaberta como se alguém tivesse acabado de se retirar às pressas como bem me lembro. Caminho a passos rápidos saindo da sala e cruzando os largos corredores vazios que ecoam meu andar pelo piso. A porta dupla frontal desta vez está completamente aberta para a neve que cai em uma noite escura e gélida. Uma lamparina se dispõe no chão ao lado da saída.Eu o apanho e prossigo adiante caminhando sobre os grandes amontoados de neve, porém, de forma surpreendente, não sinto frio ou tremor algum. Teria minha insensibilidade se tornado de tamanha força…?
     Pouco mais à frente, percebo algo diferente. Há uma lamparina caída próxima a uma árvore e, ainda mais estranho, uma neve que se organizou de forma um tanto bizarra. Parece que há algo debaixo, portanto decido cavar um pouco com as mãos para descobrir o quê. Ao revelar o que havia por debaixo daquela massa branca, engasgo subitamente surpresa pelo que vejo, pois se trata de outra réplica soterrada ne neve. Sua pele é completamente branca com pequenos tons arroxeados, fazendo parecer que está aqui já há muito tempo, além de estar gelada igualmente a neve em volta. É tão assustador que me transfere um sentimento de compaixão e me obriga a acariciar levemente os seus longos cabelos pretos.

— Como sou estúpida. — Castigo-me retirando rapidamente minhas mãos de perto do corpo e fechando os olhos com força para restaurar o foco.

     Há um espelho pouco mais à frente e já até consigo enxergar as formas se desenhando em sua superfície. Aproximo-me do mesmo e vejo uma leve névoa se formando na figura que me é apresentada. Não tenho tempo algum para contemplar nada, então logo toco o espelho para ser transportada para o vilarejo. Aqui foi onde outrora ouvi a voz de Marianne pela primeira vez, mas a mesma não apareceu para mim novamente. Eu temo pelo que tenha acontecido com a baronesa para me permitir vir direto para o quarto de madeira que havia visitado logo após ouví-la.
     As madeiras que rangem aos meus pés e o rádio que toca uma macabra canção ao piano me causam uma pequena irritação. Tenho dúvidas do quão melhor seria voltar a sentir tudo isso, mas se agora estou aqui, preciso ir até o fim. A canção do rádio se parece com uma melodia que eu via minha mãe cantar quando eu era apenas uma criança, mas com um andamento mais lento e algumas notas desafinadas e erradas.
     Continuo a andar sem dar importância para o resto das estranhezas e sigo diretamente para a casa onde encontrei o espelho que me levou à primeira chave para os cadeados da gaiola. Atravesso o vilarejo abaixo do céu escuro e cortando a névoa que se formava preguiçosamente ao redor até alcançar a porta pela qual entro em seguida. A casa está exatamente da forma que deixei na última vez que vim para cá. Completamente revirada e com móveis e utensílios jogados ao chão. O grande espelho recostado na parede é a única coisa que se encontra em seu estado normal. O chão coberto por madeiras envelhecidas range constantemente a cada passo que avanço até o espelho. Esse ser o único som me acompanhando faz tudo parecer muito mais solitário e vazio.
     Toco o espelho e aquele estranho formigamento passeia novamente por todo o meu corpo, transportando-me diretamente para o banheiro onde minha réplica chorava abaixo do chuveiro. A visão se torna pior desta vez, considerando que a réplica optou por pegar o objeto que descartei quando estive aqui. Ela utilizou a navalha que havia caído dentro da pia para abrir seus punhos e o sangramento se escorreu junto à sua vida. É uma cena um tanto chocante para mim ter que ver a mim mesma nesse estado deplorável. Nua, violada, com lágrimas cobrindo todo o meu rosto e os cortes fundos nos punhos. Consigo até mesmo sentir a falta de esperança e o vazio no fundo de seu olhar.
     Observo à minha volta procurando por uma saída, porém não consigo encontrar nenhuma a não ser pelo espelho do armário da pia, que por sinal não está mais quebrado da mesma forma que deixei outrora. Decido me dirigir até ele e o toco, contudo, estranhamente, não sinto aquela sensação da energia correndo pelos meus ossos. Algo não está certo. Não pode ser que aqui é o meu limite, pois estou certa de que estou pronta para seguir adiante. Aquele desgraçado não pode tomar o controle desta forma.
     Afasto-me um pouco do objeto para poder pensar em algo que possa estar executando de forma equivocada, mas não consigo encontrar solução alguma. Neste banheiro, não há portas nem janelas pelas quais possa me esgueirar e minha única saída me priva de prosseguir. Preciso pensar mais.
     Os minutos se passam de forma demorada e enquanto perambulo de um lado pro outro ou, outrora, em círculos na tentativa de traçar um planejamento, mal me importo com o meu corpo nu e sem vida estirado ao chão. Contudo, no momento em que me dou conta, observo a navalha que ele havia usado e logo depois observo o espelho novamente. Uma ideia me vem a cabeça, pois as coisas podem se parecem mais semelhantes aos eventos passados do que de fato aparentam.
     Apanho a navalha da mão do corpo caído e sinto um calafrio extremamente agonizante, como se o fio de seu corte me dilacerasse lentamente as minhas costas. Ao me recompor, retorno a me pôr de frente ao espelho observando meu reflexo novamente. Seguro a haste da navalha com força e cravo sua lâmina exatamente no centro do vidro pelo qual inúmeras rachaduras e ranhuras surgem trincando toda sua extensão. Assim que vejo que está funcionando e sinto a energia atingir meu corpo novamente, torço ainda mais a lâmina para causar ainda mais ranhuras até que um clarão me faz fechar os olhos e me transporta novamente para o quarto de madeira novamente. Parece que tudo o que precisarei fazer será muito mais parecido com a última vez do que eu pensava…

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now