XIII - Agonia submersa

30 4 0
                                    

"Eu não pertenço a ninguém sequer eu mesma. Quem seria você para ser mais apto que eu mesma para tal posse?"

     Continuo a trilhar meu caminho já sem muita razão para prosseguir. Quantas horas já passei nesse inferno? Quando irei voltar para a realidade? Isto é… Eu irei voltar…? Minha mente está deturpada e sinto dores que se assemelham mais com mil pregos perfurando minha cabeça. Ainda preciso coletar mais duas chaves e não faço a menor ideia de por onde começar.
     Perambulo pela floresta da parte de atrás da vila e, depois de andar por alguns minutos, avisto um pequeno lago que abre um lugar a sol aberto em meio à floresta. Suspiro de decepção comigo mesma e me aproximo da beira para lhe observar melhor. Chego até a beirada e me abaixo. Passo meus dedos levemente pela superfície da água e ela me dá certa sensação de ainda mais tristeza e angústia. Decido, então, tirar minhas sapatilhas e sentar um pouco à beira com meus pés mergulhados no lago. Passo a fitar o ambiente completamente encoberto pelas nuves negras carregadas que se sustentam nas alturas. Já não me sinto capaz de salvar aquele pobre pássaro. Quem sou eu para fazer isso? Como vou salvar este mundo inteiro sendo que mal consigo salvar um ser tão pequeno como aquele? Como vou salvar a mim mesma…?

- Agora já não há mais esperança… - sussuro enquanto fico cabisbaxa olhando para a água.

     Algo neste lago me perturba. A sensação de tristeza é ainda maior com os pés mergulhados nele. Como se a água me transmitisse certa energia negativa ao entrar em contato com a minha pele e me dominasse quase que por completo. Sou capaz, até mesmo, de sentir um medo incontrolável. Ergo minha cabeça e vejo o pequeno rio em sua plenitude. Há algo de estranho neste lago.
     Lanço um olhar assustado no que aparentava ser uma sombra se arrastando pelo fundo do lago e se aproximando da beirada em minha direção. Retiro meus pés rapidamente e volto a calçar minhas sapatilhas enquanto observo com medo aquela sombra tomar conta de toda a profundeza do lago. Ajoelho-me próxima à beirada e fito curiosamente as águas enquanto a sobra se torna ainda mais presente. Estico meu braço até conseguir tocar a superfície e consigo, inclusive, sentir aquela energia negra que me passa ainda mais tristeza.
     Aos poucos meu braço começa a formigar e sinto algo passando pelas minhas veias. Sem hesitar, retiro minha mão da água, mas, de repente, outro braço surge das águas enegrecidas do lago e me puxam violentamente para dentro da água. Foi algo tão súbito que não consegui prender a respiração e comecei a sufocar. Tento desesperadamente subir de volta, mas aquilo ainda prende meus pés e me puxa cada vez mais para o fundo. O lago não parecia ser tão fundo. Pareço estar sendo sugada pelo infinito. Sinto uma dor insuportável nos pulmões e uma enorme agonia por não conseguir respirar. Já não consigo mais ver a luz da superfície tanto por já estar em uma parte muito funda do lago quanto pela minha visão já estar turva. Tento bater minhas pernas, mas meu corpo já está completamente enfraquecido.
     Quando, porém, estou prestes a desmaiar, alguém parece me puxar de volta para fora da água. Minha pulsação já está fraca e não consigo enxergar um palmo sequer à minha frente.  Com muita dificuldade, consigo resistir até ser puxada para a margem e ser colocada deitada no chão. Começo a tossir e cuspir a água à medida que a escuridão agora é preenchida por uma enorme luz do sol que brilha por entre as frestas das nuvens escuras. Ao olhar para o lado, vejo Maudlin me olhando, mas logo me espanto e fecho os olhos forçadamente para não vê-lo. Quando os abro novamente, quem está ao meu lado é Marianne com um radiante sorriso e um olhar acolhedor. Esboço um sorriso inocente e ergo minha mão para acariciar seu rosto, mas, assim que a toco, a moça se dissolve em minúsculas partículas e é levada pelo vento.
     Com meu peito ainda doendo por quase ter sido afogada, levanto-me e observo meu guarda-chuva no chão. Olho, em seguida, para o lago e enxergo por um segundo um lampejo de um jato de água vindo em minha direção. Caio novamente no chão com uma forte dor de cabeça, mas não vejo mais nada de mais. Apenas eu sentava e observando desesperada em volta. Assim que apanho meu guarda-chuva, percebo que, abaixo dele, há uma chave de cor púrpura. Ao tocá-la, sinto minha mente ficar leve e uma energia positiva passeia pelo meu corpo. A chave parece ser feita de ametista e é ainda mais ornamentada do que a de prata que havia visto outrora. Apanho-a, então, e me levanto com meu guarda-chuva em mãos rumo àquela gaiola para libertar o pássaro de outra de suas travas…

- Por onde esteve, Amália? Estávamos lhe esperando. - Diz através dos alto-falantes assim que apareço da densa floresta e tenho visão do palco novamente.
- Estava um tanto ocupada.
- Ainda insiste em se afogar em incerteza e insubordinação? Devo relembrar o quanto você me pertence?
- Eu não pertenço a ninguém sequer eu mesma. Quem seria você para ser mais apto que eu mesma para tal posse?
- Eu!? - Ele ri histericamente. - Eu possuo muitos nomes. Muitos me chamam de razão. Outros de pesadelo. Uns até mesmo contam com meu juízo.
- E qual deles é o correto? - Digo enquanto subo ao palco.
- Correto? Não precisamos ter um correto. Eu gosto de abraçar a diversidade.
- Apenas esqueceu de mencionar que te chamam de meu proprietário. Parece que não tem tanta posse assim. - Respondo apanhando o cadeado.
- Diga por você, mas em seu âmago você sabe quem de fato lhe controla.

     Meu olhar fechado se direciona com raiva para os alto-falantes, mas logo retorna para o cadeado onde insiro e giro a chave. O som da tranca se abrindo invade meus ouvidos como pura melodia. É algo tão belo que já consigo sentir a alegria do meu amiguinho ao sair daquele inferno no qual está aprisionado há tanto tempo.

- Muito bem, minha cara! Estou tão orgulhoso de você. Agora você precisaria de mais uma chave, mas creio que está você não conseguirá obter.
- Não diga tolices. Eu vou até o inferno pela última chave.
- Você já está no inferno. A questão é se pode ir além…
- Eu posso. Não há nada que seja impossível.
- Creio que há, pois você não conseguirá esta última.
- Por que não conseguiria, Maudlin?
- O teste do xadrez… Você falhou…

     Meu coração para por um instante e logo retorna em ritmo acelerado. Eu não posso acreditar que estive tão perto e falhei. Engulo seco e uma lágrima escorre pelo lado esquerdo do meu rosto. Teria perdido a oportunidade de obter todas as chaves…?

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now