XIX - Casca Vazia

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3 anos depois

     Novamente me deparo com esta cena. Deitada no sofá usando um vestido preto amassado e observando as rachaduras do teto acima da minha cabeça tentando encontrar algum resquício de significado para a minha vida. Esta cena tem se repetido com cada vez mais frequência ao longo dos anos. Apanho a garrafa de vidro contendo uma bebida com concentração mediana de álcool. Um licor de cereja barato pelo qual peguei muito apreço depois de bebê-lo algumas vezes. Esta linha é famosa por ser a típica bebida que as pessoas não precisam gastar muito para se embebedarem, pois o álcool e o corante vermelho de má qualidade se misturam e na mesma hora detonam com o estômago e a visão de qualquer um mais vulnerável.
     Não é o meu caso, infelizmente. Não me sinto nada confortável observando o teto enquanto estou sóbria. O pequeno resto do líquido da garrafa se esvai à medida que o consumo, porém este já nem me queima mais a garganta. Sinto-me como se estivesse tomando um suco natural bem leve, contudo com um fundo azedo na composição. Aguardo aquela queimação se instalar em minha garganta, mas nunca vem. Parece que preciso de algo mais forte para o dia de hoje.
     Levanto-me preguiçosa do estofado envelhecido e me encaminho até a mesa de madeira poucos metros à frente. Apanho alguns trocados que alí haviam e também minha cartela de cigarros com meu isqueiro logo ao lado. Antes de sair pela porta, não me esqueço de pegar meu guarda-chuva azul e uma bolsa, também de cor azulada, para guardar meus pertences. Enquanto desço pelos lances de escadas de madeira do prédio, já posiciono um dos cigarros por entre meus lábios para sentir aquela sensação de que um alívio logo chegaria. Assim que saio pela porta da frente, apresso-me a acender o isqueiro e incendiar a ponta do meu parceiro para todas as horas. Logo sinto aquele calor característico na boca e me coloco a andar até o bar de Jeremi estabelecido a alguns quarteirões de onde moro.
     Os comerciantes tentam atrair as atenções minha e de outros pedestres que passam pelas ruas de pedra da cidade, contudo não obtém sucesso. Creio que até eles próprios já estão completamente perdidos e desmotivados. Nenhum deles parece ter um resquício de entusiasmo para nos desviar do caminho de pedras dessas ruas que continuam a cada dia mais acinzentadas. Ao mesmo que é triste, é incrível como é pleno fim de manhã e as ruas possuem uma falta de coloração tão fúnebre. Talvez seja problema meu, mas sinto que esse mal atinge muito mais gente do que eu imagino.
     Após o caminho inteiro ter sido caminhado e meu cigarro ter sido devidamente queimado, aremesso a ponta que sobra na via mais próxima e entro no bar de Jeremi. O tilintar do pequeno sino acima da porta releva o pequeno ambiente com mesas de madeira onde alguns homens do tipo mais nojento que poderia se imaginar. Por tantas vezes vim a este lugar que já sequer me incomodo com os olhares penetrantes e devoradores que me lançam enquanto passo. Como sempre, assim que adentro o recinto, todos decidem parar o que estão fazendo ou conversando para me observar cruzando o bar até o balcão, claramente todos se perguntando o que uma garota tão jovem e frágil faria alí.

— Olá, Jeremi. Preciso de ajuda.
— Amália. Que bom ver você novamente. Quer o mesmo de sempre? — Pergunta simpático o jovem rapaz moreno de cabelos crespos e pele repleta de sardas.
— O comum já não me sacia mais. Recebeu algo diferente ultimamente? — Respondo logo em seguida para assistir Jeremi pensar por longos segundos enquanto observa as garrafas enfileiradas nas prateleiras.
— Seguinte. Uma bebida barata e que se popularizou rápido entre os operários e construtores que passam suas folgas por aqui. Eles chamam de queima-goela.
— Gostei. Parece bem interessante. Deve servir.
— Está certa disso? Eu acho que deve ser coisa bem pesada.
— Relaxe, Jeremi. Você já me conhece há tempo o bastante pra saber que eu bebo o ácido que esses operários brutos provam chorando.
— Sem problemas, Amália. — Responde rindo de forma divertida. — É apenas uma advertência amigável. Digo isso porque você aparenta já ter tido dias melhores.
— Sei disso. — Digo seca enquanto recebo a nova bebida que me oferecera. — E não preciso de copo. — Elevo a mão em gesto de rejeição enquanto corto rápido o rapaz que já me estendia um.
— Você de fato não é brinquedo. Ou você está realmente com grandes problemas.
— Sabe... — Digo intercalando com uma golada. — Eu também já nem faço mais ideia. Não sei ao certo se tenho problemas. De alguns anos pra cá, eu não tenho sentido mais nada. Parece que meu coração se petrificou de vez e nada mais consegue me fazer sentir algo. Eu bebo essa coisa e a ardência é tão leve que me sinto tomando vinho quando tinha meus dezesseis anos.
— É. De fato você possui sérios problemas… Há quanto tempo não tem uma consulta com um bom psicólogo?
— Não sei. Algo em torno de dois anos e meio ou três anos. — Digo com uma longa pausa para degustar mais alguns goles da bebida. — Decidi não passar mais com nenhum desses picaretas.
— E o que houve durante a última consulta?
— Eu sequer me lembro. — Digo com um riso descompromissado e sarcástico. — Eu apenas refleti por um breve período no banheiro e, quando dei por mim, não sentia mais nada. Nem sequer vontade de ficar alí, tampouco medo de qualquer procedimento. Eu apenas saí e não pensei em nada.

     Jeremi para por alguns instantes enquanto aparentemente pensa consigo mesmo. Aproveito a deixa para beber um pouco mais, porém decepcionada por não conseguir sentir algo decente sequer com algo que possui tanto álcool concentrado.

— Como se sentiu desde aquela consulta?
— Não chegou a ser uma consulta. Após cinco minutos de conversa, eu me escondi no banheiro e só saí de lá para ir embora. Porém, respondendo sua pergunta, não sinti absolutamente nada desde então. Apenas penso e ajo.
— Não compreendo. Está dizendo que não sente mais nada em relação aos problemas?
— Não só a eles, como a tudo. Jeremi, eu não lembro mais como é amar, odiar, sentir nojo ou gosto por algo. Eu me tornei uma casca vazia que apenas usa sua razão.
— É… — Continua incerto enquanto guarda os copos que estava secando. — É muito complicado. Eu penso que deveria tentar outra consulta. No mínimo para deixar seus vícios de lado. Além de uma casca vazia, eles lhe farão perecer mais depressa.
— Talvez nem seja algo tão ruim. Morrer mais depressa não seria um problema. Certamente aliviaria meus problemas.— Retruco enquanto tomo mais algumas goladas.
— Você não é a única que convive consigo, Amália. Pense nisso antes de tomar alguma atitude… — Diz com um tom mais triste.
— Por favor. Já não moro mais com meus pais deve fazer mais de um ano. Não sei nem se ainda estão vivos. Meu aniversário de dezoito anos ocorreu há mais de uma semana e ninguém me felicitou por isso. Apenas você.
— Uma pessoa já é alguém, Amália. Não se esqueça.
— Sei disso também. Mas não posso lhe dizer que farei algo do gênero agora mesmo. — Digo enquanto termino de beber o conteúdo da garrafa.
— Certo, mocinha. E o que achou da bebida?
— O que achei!? — Comento retoricamente rindo de forma sarcástica e dando de ombros. — Acho que vão precisar de operários mais fortes que estes. Estão muito frouxos.
— Você é um doce. — Responde também rindo.
— Não tem como me fornecer um desse para viagem. Gostei do sabor, embora seja fraco.
— Certo. — Continua enquanto apanha uma das garrafas na prateleira. — Agora me dê a sua parte, minha cara.

     Retiro o dinheiro da bolsa e o disponho no balcão. Antes que o pudesse contar, tomo-lhe a bebida e me levanto para sair, andando em direção à entrada.

— Você sabe que não é o bastante e vai estar me devendo, não é?
— Como assim!? Não consegue fornecer um desconto para uma cliente de fé?
— Você não tem jeito mesmo. — Retruca fazendo gesto de negação com sua cabeça. — Até a próxima.

     Após me despedir, saio pela porta da frente do bar de Jeremi já posicionando o cigarro por entre os lábios e o acendendo. Ponho-me a andar com um ar pensativo em relação ao que o garoto havia me dito. Estes problemas que se instalaram em minha pobre vida de fato são perigosos. Eu já não sinto vontade de fazer absolutamente nada.
     Eu bebo e fumo para suprir uma ansiedade que nem tenho certeza se de fato existe. Apenas trabalho em uma companhia praticamente falida para ganhar um pouco dinheiro para sustentar meus vícios e um pequeno apartamento velho que foi onde consegui me instalar para ficar longe dos meus pais. Eu definitivamente não me lembro a sensação que é sentir alguma coisa. Sentir afeto, raiva, tristeza ou até mesmo angústia. Ando deixando até mesmo de sentir coisas físicas. Estas bebidas antes certamente devastariam com meu estômago e minha mente, mas hoje as bebo como se fosse água. Sinto que estou piorando, mas não consigo me fazer melhorar. Eu de fato não sei o que e nem como fazer para mudar isso tudo.
     Chegando ao velho prédio onde moro, atiro a ponta restante do cigarro ao chão novamente. Evidente que por tantas vezes que fui e voltei do bar do Jeremi, já tenho calculado que tenho exatamente um cigarro de distância pra percorrer entre minha casa e o estabelecimento. Subo as escadas até finalmente me encontrar dentro de meu apartamento. Decido deixar o maço e o isqueiro na mesa novamente e me desfaço da bolsa e do guarda-chuva para poder novamente deitar no sofá e contemplar as ranhuras do teto enquanto tento sabotar minha mente com a ingestão da bebida que ganhei de Jeremi. Hora de beber um pouco mais e tentar me manter o menos sóbria possível.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now